Acordo sobre compra e financiamento de soja cultivada na Amazônia ainda gera conflito
A safra de soja deste ano deve atingir o recorde histórico de 169,5 milhões de toneladas, 14,7% a mais que o volume do ano passado, segundo estimativas da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). A produtividade também é a maior já registrada, com alta de 11,2%, para 3.560 quilos por hectare cultivado. Os resultados vêm da combinação de clima favorável, avanços tecnológicos e crescimento de 3,2% na área cultivada. Mas, se o cenário vai bem na lavoura, no campo jurídico a situação é outra. Produtores, respaldados pela bancada ruralista no Congresso Nacional, e exportadores, com apoio de ambientalistas, travam disputas no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), no Supremo Tribunal Federal (STF) e na Justiça do Mato Grosso. No centro do embate está a moratória da soja, que veta, para os signatários, compras e financiamento de soja cultivada em áreas do bioma amazônico desmatadas após 2008.
Com adesão voluntária, o acordo nasceu em 2006 na esteira de protestos de ambientalistas europeus contra o desmatamento da Amazônia para o plantio de soja. Entre os participantes estão a Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais (Abiove), Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), empresas como Amaggi, Cargill e Bunge, o Banco do Brasil e ONGs como World Wide Fund for Nature (WWF) e Greenpeace.
Com o acordo, a expansão da soja na Amazônia caiu de 73% para 8% da área total de avanço das plantações entre os períodos de 1990–2007 e 2008–2023, segundo dados do MapBiomas compilados pela WWF. “Isso mostra que a moratória da soja foi altamente eficaz em reduzir o desmatamento, emissões de carbono e perda de biodiversidade na Amazônia ao mesmo tempo que promoveu aumento da produção de soja, com abertura de novos mercados, principalmente na Europa, onde consumidores rejeitam produtos associados ao desmatamento”, diz Tiago Reis, especialista em conservação da ONG.
Segundo a Abiove, entre as safras 2006/2007 e 2022/2023, as exportações de soja originadas na Amazônia cresceram 516%, para 18,5 milhões de toneladas. No mesmo período, a área de cultivo no bioma aumentou 420%, com o plantio em áreas como pastagens degradadas. “Os resultados mostram que é plenamente possível conciliar expansão agrícola e conservação ambiental”, defende, em nota, a Abiove.
Do lado oposto, a Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado do Mato Grosso (Aprosoja-MT) alega que a moratória extrapola os limites do Código Florestal brasileiro, que permite o desmatamento de até 20% no bioma amazônico. Na visão da associação, as tradings e agroindústrias signatárias do tratado, por dominarem o mercado, acabam forçando produtores a não plantar em áreas autorizadas pela legislação brasileira ou a trocar a soja por culturas menos lucrativas. De acordo com a organização, 65 municípios e 2,7 milhões de hectares são afetados pela iniciativa, com perdas anuais de cerca de R$ 20 bilhões aos produtores.
No esforço para derrubar o pacto, a entidade atua em três frentes. Na primeira, acionou o Cade, alegando que a moratória possibilita ação coordenada entre as empresas para formação de um cartel de compra. O órgão analisa a queixa junto com representações semelhantes da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e da Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados.
Mas, para o secretário extraordinário de Controle do Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), André Lima, a acusação de formação de cartel é infundada. “Tanto consumidores individuais como consumidores coletivos, dentro de uma associação, têm todo o direito de escolher se querem comprar produto que venha de desmatamento legal”, argumenta.
Na segunda investida, a Aprosoja-MT moveu ação civil pública em Cuiabá pedindo indenização de R$ 1 bilhão por danos morais coletivos à Abiove, Anec e 25 tradings e agroindústrias participantes do pacto. “Como todas as grandes empresas, que comercializam mais de 90% da soja do Mato Grosso, aderiram à moratória, produtores deixam de ter opções economicamente viáveis e ficam com áreas produtivas limitadas às terras desmatadas até 2008, sem a opção de usar a terra como a legislação permite”, alega o vice-presidente da entidade, Luiz Bier. A posição da CNA é parecida. “Municípios inteiros são sufocados economicamente por restrições que não têm respaldo no ordenamento jurídico brasileiro”, afirmou em abril o presidente da Comissão Nacional de Cereais, Fibras e Oleaginosas da CNA, André Dobashi.
A terceira frente do combate ao acordo vem de assembleias legislativas estaduais. Com apoio de parte dos produtores, os Estados de Mato Grosso, Rondônia e Maranhão aprovaram leis que impedem benefícios fiscais e a concessão de terrenos públicos a empresas participantes da moratória da soja e eventuais outros acordos que “imponham restrições à expansão da atividade agropecuária em áreas não protegidas por legislação ambiental”.
Para a tributarista Marília Toffolis, sócia do escritório BNT Advogados, “se mantidas, essas leis inviabilizam a atuação das agroindústrias de exportação, com redução média de cerca de 70% no ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços]”.
As novas leis foram alvo de ações diretas de inconstitucionalidade movidas por partidos políticos (PCdoB, Psol, PV e Rede Sustentabilidade) e pela Abiove. Até agora, só houve manifestação do STF no caso do Mato Grosso. Em liminar concedida em abril, o ministro Flávio Dino reconsiderou decisão anterior, em que havia suspendido a restrição aos incentivos fiscais e à utilização de terrenos do Estado. Com isso, autorizou, a partir do ano que vem, o fim dos benefícios às signatárias da moratória. Conforme a decisão, que ainda depende do voto do Plenário para aprovação definitiva, a adesão das empresas à moratória é livre e continua válida. Mas ele ressalta que o poder público não é obrigado a conceder incentivos a empresas com exigências ambientais mais rigorosas que as da legislação brasileira.
“Os ataques à moratória da soja, se bem-sucedidos, criam precedente perigoso na luta contra as mudanças climáticas, porque, para reduzir emissões, é importante a participação de todos os setores da sociedade, incluindo não só governo, empresas e sociedade civil”, avalia a porta-voz do Greenpeace no Brasil, Cristiane Mazzetti. Para ela, o desmatamento zero é ponto-chave para que o Brasil consiga cumprir os compromissos assumidos em sua NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada) para a COP30 em um momento em que o país busca protagonismo da agenda climática. Afinal, argumenta, mudanças no uso da terra respondem por mais de 40% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa.
Lima, do MMA, concorda: “Nós não vamos alcançar nossa meta de desmatamento zero só com comando, controle, punição e fiscalização do Estado. Nós vamos alcançar com incentivos e desincentivos de mercado”. O secretário também questiona juridicamente o fim dos incentivos fiscais. “Ao punir quem não quer incentivar desmatamento, descumpre-se um princípio fundamental da ordem econômica e financeira nacional estabelecida no artigo 170 da Constituição”, afirma. Isso porque, alega, o artigo menciona, entre os princípios da ordem econômica, “a defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços”.
Enquanto o impasse continua, um grupo de 60 empresas — entre elas, McDonald’s, Danone e a rede de supermercados Tesco — divulgou em julho manifesto de apoio à moratória. Nesse cenário, a Abiove e a Anec temem pelo rumo das exportações. Mesmo não afetadas pelas tarifas de 50% anunciadas pelo governo de Donald Trump, já que o Brasil não vende soja aos Estados Unidos, para as associações as vendas para outros mercados podem ser prejudicadas.
Carin Petti – Valor Econômico