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Uma solução para o problema da rastreabilidade da soja brasileira


BiodieselBR.com - 27 set 2023 - 21:08 - Última atualização em: 28 set 2023 - 10:54

Era para ser tudo igual. Mas a verdade é que nunca foi. Já tem muito tempo que a definição de dicionário pela qual as commodities são produtos básicos indiferenciados entre si – com uma saca de soja ou de milho, por exemplo, equivalendo a qualquer outra – está em crise. Afinal de contas uma delas pode ter sido cultivada seguindo os mais estreitos padrões socioambientais, enquanto a segunda pode ser o produto das piores mazelas. O que faltava para separar as duas era a capacidade técnica para distingui-las e a vontade política para incentivar os bons exemplos.

Felizmente, isso está mudando. Dentro de mais 18 meses quem quiser exportar óleo de palma, gado, soja, café, cacau, madeira e borracha – ou derivados de qualquer um destes – para a União Europeia (UE) vai ter que comprovar que sua produção vem de áreas que tenham sido abertas antes do final de 2020.

O endurecimento nas regras é fruto da aprovação do Regulamento 2023/1115. A nova lei que foi aprovada pelo Parlamento e pelo Conselho europeus quer impedir que os países do bloco sigam financiando o desmatamento mundo afora. Manter acesso a um mercado de 447 milhões de consumidores e um PIB combinado de US$ 16,6 trilhões – 16,5% do total global – aumenta a pressão para que os grandes players das cadeias de commodities acelerem a adoção de melhores práticas.

E este é um ponto que se soma às crescentes exigências do consumidor cada vez mais preocupado com as questões socioambientais. Não apenas no resto do mundo, mas também aqui no Brasil.

Firmada há mais de 18 anos, a Moratória da Soja impede que as maiores indústrias do complexo soja nacional negociem grãos plantados em áreas de desmatamento na Amazônia. Uma medida parecida está sendo implementada também para o cerrado chamada Controle de Supressão Autorizada (CSA Cerrado).

O RenovaBio também inclui exigências. Os produtores de biocombustíveis precisam comprovar que suas matérias-primas vieram de áreas que não foram desmatadas após dezembro de 2017 para terem direito de emitir Créditos de Descarbonização (CBios). Só assim eles podem participar de um mercado que, só no ano passado, movimentou mais de R$ 6,95 bilhões.

Conhece-te a ti mesmo

Dá para ver que a ‘vontade política’ está ganhando tração tanto lá fora quanto por aqui. Mas só isso não basta. Para colocar de pé essas políticas é preciso conseguir rastrear as matérias-primas cadeia acima até suas áreas de origem para identificar quais delas foram cultivadas de forma correta e quais não foram.

É algo que está se mostrando particularmente complicado de fazer para grãos. Afinal de contas eles são, como dito há pouco, “produtos básicos indiferenciados entre si” que ainda por cima circulam por cadeias comerciais das mais complexas.

Um bom sinal do tamanho do problema vem do fato de que foram precisos quatro anos para que fossem elaboradas as regras que asseguram a sustentabilidade na cadeia de custódia de grãos para o RenovaBio. E que, mesmo assim, a ANP não vê um salto na elegibilidade do etanol de milho ou do biodiesel no curto prazo.

Para conseguir avançar, as cadeias de grãos vão precisar atingir um novo nível de autoconhecimento através da tecnologia. É onde entra uma nova safra de empreendedores que vem se dedicando a auxiliar as empresas do agro nesse processo. É o caso da MerX, startup liderada por três ex-executivos do banco BTG Pactual, Guilherme Dominici, Gustavo Vazquez e Paolo Silva. A missão da empresa é conectar o campo ao mercado financeiro e as oportunidades que esta nova economia verde pode trazer. “Entendemos que a dificuldade em rastrear a matéria-prima poderia se tornar uma grande oportunidade para as indústrias, comerciantes e produtores rurais brasileiros. Esta nova forma de encarar o mercado é suportada por uma plataforma digital que facilita e organiza a gestão da cadeia e permite a escalabilidade necessária para lidar com o expressivo volume gerado pelo agro brasileiro” detalha Gustavo Vazquez, CEO da empresa.

Na visão da MerX o mercado agro apresenta baixas margens das commodities agrícolas; inexistência de lucro recorrente; alta demanda de capital; baixa rastreabilidade ao longo da cadeia; crença de que o ESG é uma obrigação e não uma oportunidade; defasagem em relação as exigências do consumidor final; e a falta de comunicação entre os elos da cadeia. “Os players do mercado veem esses pontos como isolados, mas vemos eles conectados. Por isso criamos uma plataforma, que é mais que uma ferramenta para as empresas, é um modelo de negócio inédito dentro do setor de grãos do Brasil” define Gustavo.

O negócio da startup é suportado por 3 pilares: a inteligência de mercado, que analisa o potencial mercadológico e socioambiental das propriedades; serviços financeiros, que auxiliam os produtores a financiar, proteger e movimentar a sua safra; e, a plataforma comercial que faz a gestão dos contratos, rastreabilidade e acesso ao mercado de exportação. “O mercado tem as empresas de análises geoespaciais, que processam as imagens de satélite e cruzam os dados para fazer inteligência de mercado. Tem as plataformas que fazem análises de crédito e o mercado financeiro a procura de operações sustentáveis – socioambiental e economicamente. São todos negócios separados que não adicionam muito valor para os elos da cadeia. Quando conectamos tudo isso dentro do MerX, geramos valor para os participantes do mercado, enriquecendo os dados gerados pela cadeia adicionando mais retorno sobre as operações” elucida o CEO.

“A gente entendeu que tinha um espaço para digitalizar o agro”, explica Paolo Silva, cofundador da empresa. “O produtor [rural] brasileiro se desenvolveu muito nos últimos 20 anos. Ele investiu em novas tecnologias e se tornou um dos melhores do mundo. Mas isso foi da porteira para dentro porque, da porteira para fora, o Brasil ainda tem vários desafios que não foram adequadamente superados”, pondera Paolo.

“Nosso papel é organizar e enriquecer as informações. De onde veio aquela soja ou aquele milho e quais destinos ele pode acessar (...) ajudar os elos da cadeia a conversarem” complementa Guilherme Dominici, cofundador da MerX. Ele informa que, para conseguir desenrolar esse fio, a empresa vem focando nos pontos de entrada da cadeia. “A parte mais difícil de resolver é o ‘varejo’ onde uma empresa compra grãos de vários produtores e, depois, consolida os volumes dentro de um armazém. Se a gente não tem [a informação] no primeiro ponto, não tem mais como fazer a rastreabilidade”, prossegue.

De forma muito resumida, o sistema criado pela MerX cruza as informações a respeito dos produtores dos grãos com uma série de bancos de dados públicos – CAR, Ibama, ICMBio, secretarias estaduais do meio ambiente entre outras fontes – com informações proprietárias geradas por IA, como as áreas de produção agrícola, para determinar se o material atende às exigências dos principais programas e mesmo se as propriedades têm, de fato, a capacidade de produzir o volume que grãos que estão tentando vender. “A gente cadastra a carteira de fornecedores de um cerealista ou de uma cooperativa e fazemos um ‘raio x’ socioambiental dela, possibilitando aos comerciantes acessarem as melhores oportunidades de comercialização que o mercado verde está criando, além do atendimento aos requisitos de operações financeiras”, explica Gustavo.

Não quer dizer que a plataforma resolva absolutamente tudo. “[A ferramenta da MerX] nos dá os subsídios para uma tomada de decisão segura dizendo para a gente qual é o grau de conformidade de uma área específica e até se tem áreas próximas que têm complicações”, explica o diretor de compliance da Fazendão Agronegócio, Leandro Silva, que vem usando a plataforma da MerX desde a safra 2021/22 para orientar sua política de compras. “A decisão final [de compra] não é da ferramenta, temos um comitê que analisa os casos”, ressalta.

Outro dos clientes da MerX é a líder do mercado nacional de biodiesel – com quase 14% de participação –, a Be8 (ex-BSBios) que usa a plataforma para assegurar que seus produtos cumprem as exigências legais de várias certificações – além de participar do RenovaBio, a empresa conta com certificações aceitas no mercado Europeu e dos Estados Unidos.

Pote de ouro

Esse trabalho todo – obviamente – não sai de graça. De alguma forma ele precisa compensar para as partes envolvidas. Acontece que isso ainda não está resolvido.

Para alguns elos da cadeia os incentivos da rastreabilidade são evidentes. É o caso dos fabricantes de biocombustíveis com o RenovaBio. Para outros atores, entretanto, as vantagens não são tão imediatas – legalmente falando os produtores rurais que fornecem a biomassa para as usinas não têm qualquer direito ao dinheiro que circula no mercado de CBios.

 

 

“A possiblidade de prêmio [para grãos sustentáveis] existe, especialmente na cadeia de biocombustíveis da Europa e EUA, mas são prêmios que acabam sendo pagos às usinas estrangeiras e que não chegam aos produtores rurais e cerealistas que originam esses grãos diferenciados”, lamenta Gustavo apontando que essa lacuna acaba levando os agricultores a enxergarem as exigências de sustentabilidade que estão surgindo como parte da economia verde “como um problema e não uma oportunidade”. De qualquer forma, ela ressalta que os prêmios já existem e tendem a ser melhor repartidos depois que o mercado estiver mais bem organizado. “A rastreabilidade é o que vai permitir que produtores, cerealistas e até indústria brasileira acessem esse potencial”, estimula.

Há movimentos nesse sentido, embora ainda de forma individualizada. Em agosto do ano passado, a Be8 lançou o Programa 2SC que distribui uma parte dos ganhos da empresa no mercado de carbono para os fornecedores de matéria-prima que atendam regras de sustentabilidade. De acordo com uma nota encaminhada pela assessoria de imprensa da fabricante de biodiesel, a plataforma da MerX ajuda na gestão desse programa que oferece bônus maiores para fornecedores que consigam atingir metas ambientais mais rígidas.

Embora reconheça como positiva essa possibilidade de obter preços melhores nas negociações com as usinas, Leandro Silva acha que o mercado precisa amadurecer. “Esperamos que esse reconhecimento seja regulamentado”, diz refletindo esforços que têm sido feitos já tem alguns anos por uma série de entidades representantes do agronegócio.

Dinheiro, contudo, não é a única questão. Para a Fazendão, por exemplo, a motivação para investir em rastreabilidade é a reputação da companhia. “Esse é o nosso pote de ouro, mas é um processo que se constrói aos poucos. Nosso maior desafio é buscar uma diferença entre iguais, porque se você faz o mesmo que os outros vai ter os mesmos resultados que todo mundo”, acrescentando que os ganhos reputacionais também podem acabar virando vantagens financeiras. “A gente se beneficia disso no mercado financeiro”, complementa.

Esse é o aspecto também trazido por Gustavo. Já existem linhas de financiamento e fundos que premiam quem produz corretamente. “Tem fundos verdes que remuneram produtores que preservam mata nativa e bancos que oferecem condições melhores para quem produz para quem produz corretamente”, exemplifica explicando que a MerX também auxilia os produtores rurais a acessarem esses benefícios indiretos.

Catalisador

Para Gustavo, a nova regra europeia pode muito bem funcionar como um catalisador para o amadurecimento do mercado. “A norma da UE vai deixar mais explícito que há prêmios para serem capturados”, diz.

Embora ainda não esteja 100% claro, é bem possível que o Regulamento 2023/1115 exija a segregação completa entre produtos certificados e não certificados ao longo de toda a cadeia. “Da forma como o texto está hoje teria que ter uma segregação total”, opina Guilherme.

Isso tende a levar o mercado a pagar prêmios pelos produtos certificados gerando justamente aquele incentivo a mais que os produtores estão em busca. “Como é preciso ter uma segregação entre produtos aderentes e não aderentes os preços tendem a ser maiores”, encerra Guilherme.

Em um mundo cada vez mais dinâmico, as cadeias produtivas se tornam mais conectadas e a rastreabilidade dos produtos do campo ao consumidor vai passar a ser cada vez mais exigida. Se hoje a venda de produtos rastreados é a exceção, no futuro a tendência é ser a regra.

Fábio Rodrigues – BiodieselBR.com