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Especificação: mudanças à vista


Edição de Out / Nov de 2011 - 15 out 2011 - 12:16 - Última atualização em: 25 jan 2012 - 17:37
ANP prepara nova instrução normativa para especificação do biodiesel, mas, sozinho, endurecimento esperado nas regras não deverá resolver os problemas com a qualidade

Rosiane Correia de Freitas, de Curitiba

A crônica do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB) contém episódios de drama, aventura e comédia. Drama porque, mesmo nunca havendo existido uma sinalização de que a mistura iria para além do B5, temos hoje uma capacidade de produção muito acima da demanda, e essa situação tende a se agravar. A aventura fica por conta dos milhares de quilômetros que o combustível viaja desde as unidades produtoras até os centros de consumo – até recentemente era comum que ele cruzasse as fronteiras entre as diferentes regiões do país. A comédia é proporcionada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que repete à exaustão os números da inclusão social como exemplo de sucesso, mas no final os dados são majoritariamente dependentes da Petrobras, uma empresa controlada pelo próprio governo. As placas em postos de gasolina por todo o país que anunciam biodiesel, muito embora o B5 vendido no varejo possa ser considerado apenas um aditivo, dão o toque final à parte cômica. Nos últimos meses, no entanto, o setor ficou temporariamente envolto em outro gênero: o suspense.

Tudo porque a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) está para lançar uma nova resolução com mudanças na especificação do biodiesel, que deverá substituir o conjunto atual de regras contidas na resolução ANP Nº 7 de 2008. O novo texto é resultado do trabalho de um grupo da agência que vem analisando a situação do biocombustível nesses três anos desde o lançamento da mistura obrigatória e, especialmente, os problemas que vêm sendo registrados desde 2010.

De acordo com informações repassadas pela assessoria de imprensa da ANP, a previsão é que a nova especificação brasileira entre em processo de consulta pública em novembro. “Passados três anos, o conhecimento acerca do comportamento deste biocombustível evoluiu. A ANP vem realizando uma série de reuniões com agentes de mercado com o objetivo de discutir mais profundamente o tema. Com isso, busca-se alinhar, na medida do possível, a nova especificação às demandas do mercado, tendo sempre como primeira preocupação o atendimento aos interesses do consumidor”, declarou a agência por meio de sua assessoria.

Para compor a nova especificação, os técnicos da ANP precisaram caminhar sobre uma corda bamba para tentar conciliar dois interesses aparentemente incompatíveis: de um lado, distribuidores e revendas reclamando da qualidade do produto; do outro, as usinas defendendo o veto a mudanças que acrescentem novos custos e que possam onerar o já problemático uso de matérias-primas alternativas locais.

Não é exagero dizer que as mudanças na especificação têm potencial para mudar todo o futuro deste combustível no Brasil. A questão é que a qualidade (e a garantia da qualidade) tem sido vista como um dos principais entraves que precisam ser removidos antes que o caminho esteja aberto a novos aumentos do teor de biodiesel no diesel mineral.

Uma das razões para permanecermos paralisados no B5 (sigla que representa a adição de 5% de biodiesel renovável no combustível de origem fóssil), é que os problemas com a qualidade ficam limitados pelo teor consideravelmente baixo de adição. Acontece que a ambição da indústria de biodiesel é chegar ao B20 o quanto antes, multiplicando por quatro o seu faturamento e, não vamos esquecer, os benefícios ambientais e sociais trazidos pelo programa por meio da geração de mais empregos e, em teoria, mais renda para a agricultura familiar. O contratempo é que isso também multiplica na mesma medida as dificuldades que o setor vem enfrentando.

Para as distribuidoras e postos de revenda de combustíveis, o aumento no uso de biodiesel significou um crescimento sensível no volume de reclamações contra o combustível renovável. A principal queixa é a formação de borras nos tanques, o que acarreta um aumento de despesas com troca de filtros e manutenção das instalações. “Essa é uma bandeira (da qualidade) que defendemos, tendo em vista que, na prática, a adição do biodiesel ao diesel resultou em algumas dificuldades”, aponta o consultor Delfim Oliveira, da Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e Lubrificantes (Fecombustíveis).

Oliveira acredita que a mudança nas especificações do biodiesel deve incluir uma redução no teor de água de 500 para 200 partes por milhão (ppm). “Um teor menor de água elimina parte das dificuldades encontradas no manuseio do combustível”, destaca. Ele aposta que, somada a uma adesão maior às práticas corretas para o manuseio do produto (o que inclui medidas custosas como o uso de caminhões exclusivos para o transporte do biodiesel), a nova especificação será capaz de reduzir significativamente as reclamações dos distribuidores e, consequentemente, os problemas dos consumidores.

A ANP avalia que o conhecimento acerca do comportamento desse combustível evoluiu nestes anos de PNPB e “foi observado que a especificação poderia contribuir também para aprimorar o processo logístico, considerando os problemas que foram enfrentados ao longo de 2010”.

A Fecombustíveis é a protagonista das principais queixas contra o biodiesel. Para o mercado de distribuição de combustíveis, a implantação do PNPB significou a necessidade de vultosos investimentos em tancagem própria para receber o novo produto e custos adicionais relacionados ao processo de adição do biocombustível ao diesel mineral. Fora isso, a federação também diz que as empresas do setor precisam amargar gastos adicionais por causa das limpezas mais frequentes em seus tanques, cujas paredes ficam cobertas de resíduos. Tudo isso se traduz da seguinte forma: custos maiores, margens de lucro menores. Não chega a ser difícil entender por que a ideia de novos aumentos na mistura não empolgue esse grupo.

Outro lado

Como se sabe, o preço do biodiesel ainda é o ponto mais sensível do PNPB. O combustível de origem renovável tem várias vantagens ambientais sobre o concorrente mineral, mas, em compensação, ainda é mais caro. Endurecer as exigências de qualidade pode ter o efeito negativo de aumentar ainda mais os custos de produção, o que poderia assustar o mercado consumidor e levar a um pisão ainda mais brusco no freio. Por isso tornar a especificação do biodiesel muito mais rigorosa pode não ser tão bom negócio, avaliam as usinas.

Para a Associação dos Produtores de Biodiesel (Aprobio), há um risco adicional ainda maior. Uma especificação excessivamente dura poderia enterrar de vez projetos da indústria para a produção de biodiesel a partir de matérias-primas típicas do Brasil. Uma indústria mais avessa ao risco aumentaria ainda mais a dependência em relação ao óleo de soja.

Água na fervura

Um dos pontos mais polêmicos entre as várias modificações que a ANP poderia promover na especificação do biodiesel é o da regulamentação que estabelece o limite de água diluída no biodiesel. A Aprobio defende o limite em 300 ppm por considerar que é uma redução significativa e que já está alinhada com a ideia de aumentar a qualidade. A sugestão foi oficialmente encaminhada pela associação à ANP em um documento que discute as mudanças propostas ponto a ponto.

Se a nova resolução, no entanto, fixar mesmo o limite em 200 ppm, como muita gente do setor vem apostando, as regras brasileiras para esse parâmetro superariam de longe as exigências europeias. Embora a especificação europeia determine que o teor máximo de água no óleo diesel deva ser de até 200 ppm, no caso do biodiesel puro o limite está fixado nos mesmíssimos 500 ppm da atual regra brasileira. No entanto, lá, assim como aqui, esta mesma discussão está ganhando corpo.

Para Oliveira, da Fecombustíveis, em princípio não há nada de errado em a mudança trazer custos adicionais para os produtores. “Fica mais caro, mas é o que se espera da indústria. Hoje todo mundo contribui [para a cadeia de biodiesel]. O distribuidor, por exemplo, tem esse ônus de gastar com a troca dos filtros. Se o produtor fizer melhor o refino do combustível, vai contribuir com o todo”, defende.

“Temos que avançar na qualidade não só nas usinas, mas em toda a cadeia”, argumenta o presidente do conselho da Aprobio, Erasmo Battistella. Para o empresário, a mudança na especificação não pode inviabilizar matérias- -primas. “Defendemos a mudança gradual, alinhada à entrada do S50 e do S10 no mercado”, aponta. O S50 e o S10 são tipos de óleo diesel com menor quantidade de enxofre em suas composições, o que diminui a poluição do ar causada por sua queima. A Aprobio também defende um controle de qualidade do combustível feito pela Petrobras. “Só isso garantirá maior qualidade para o consumidor final”, diz. A Ubrabio foi procurada para se manifestar sobre a questão, mas não retornou nenhuma solicitação.

Novos ensaios

Para o diretor do Laboratório de Análises de Combustíveis Automotivos (Lacaut) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Carlos Yamamoto, a maior novidade será a incorporação de normas para os ensaios especialmente adaptadas à realidade brasileira. “A norma que é usada hoje no Brasil foi estabelecida com base na experiência europeia e americana. Mas muitos dos ensaios são caros”, avalia. Com a mudança, soluções made in Brazil tornariam o controle de qualidade mais barato e mais adequado aos padrões do país.

“As mudanças devem valorizar a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) ao mesmo tempo em que precisam atender aos acordos internacionais”, completa Yamamoto. Este ano, a ABNT publicou duas novas normas de ensaios para biodiesel: uma delas diz respeito à determinação do teor total de ésteres por cromatografia gasosa, enquanto a outra dá conta da determinação de glicerina livre, monoglicerídeos, diglicerídeos, triglicerídeos e glicerina total por cromatografia gasosa.

As mudanças na normatização de ensaios, no entanto, não devem ter um impacto tão imediato na qualidade do combustível que se compra nos postos, opina Yamamoto. “O ensaio é uma fotografia do momento. O produto pode atender à especificação na saída da usina, mas apresentar problemas durante o transporte, armazenamento e manipulação, inclusive por defeitos nesses processos”, destaca. “A mudança por si só não resolve todas as dificuldades”.

Acompanhar os teores de mono, di e triglicerídeos no biodiesel é importante porque, segundo estudos, eles apresentam tendência de se aglutinar e formar depósitos sólidos, o que contribui para aumentar a formação das borras que tanto têm incomodado os setores de distribuição e de varejo. Existe, inclusive, a proposta de limitar a quantidade dessas substâncias em 0,8%, 0,2% e 0,2% – respectivamente – da massa total do biodiesel.

Catalisadores e Aditivos

Uma especificação mais rigorosa poderá obrigar as usinas a aumentar a concentração de catalisadores e aditivos usados no processo de produção para tornar a reação de transesterificação do biodiesel mais completa e limpa. Segundo o diretor de químicos industriais da Basf para a América do Sul, Carlos Eggers, isso não implica necessariamente aumentos significativos nos custos de produção. “A participação do custo do catalisador no investimento total da usina na produção de biodiesel é muito pequena. Então, mesmo que exista um aumento no consumo, o impacto não será relevante”, analisa.

Para Eggers, mesmo que o uso de catalisador tenha sua concentração dobrada, o balanço das usinas mudaria muito pouco: o aumento na concentração garantiria uma reação mais completa e um produto final mais estável. De fato, conforme o executivo explica, o biodiesel não tem um “tempo de prateleira” ilimitado, mas alguns cuidados na produção e na manipulação do combustível podem melhorar consideravelmente o seu desempenho e, consequentemente, reduzir a ocorrência de problemas.

Carlos Araújo, coordenador de Negócios da Evonik, tem opinião semelhante: “Uma especificação mais rigorosa contribui sim para a qualidade do biodiesel, entretanto não deve ser o único ponto de atuação. O monitoramento de todas as etapas da cadeia logística [manuseio, transporte e armazenagem] deve ser feito e o estabelecimento de práticas para cada etapa também é necessário”.

Araújo levanta um ponto interessante, onde a nova especificação aproximaria o biodiesel brasileiro dos padrões europeu e americano. “É importante focar nos benefícios que um biodiesel de ótima qualidade pode trazer, como, por exemplo, maior aceitação do produto pelo mercado consumidor e a possibilidade de atender especificações internacionais, visando à exportação do biodiesel”, afirma.

A indústria de catalisadores acredita que alterações na norma levarão as usinas a buscar produtos de maior qualidade. “Critérios mais rigorosos certamente exigirão maior esforço dos produtores, tanto na produção em si, como no pré-tratamento da matéria-prima e no pós-tratamento do biodiesel. Dessa maneira, o uso de aditivos já disponíveis no mercado se torna uma opção para atingir esta especificação mais rigorosa”, explica Araújo.

O maior uso de aditivos no biodiesel poderia contribuir principalmente na melhora de dois parâmetros importantes: a estabilidade à oxidação e o ponto de entupimento.

Atualmente a regra da ANP demanda que o biodiesel brasileiro resista a 6 horas no Rancimat – um tipo de teste que submete o biodiesel às piores condições possíveis para medir quanto tempo ele leva até oxidar. Apesar de o número ser idêntico ao da norma europeia e o dobro do exigido pelos Estados Unidos, já se fala de ampliar para 8 horas a exigência do biodiesel nacional. Isso é o mesmo que a Argentina a exige de seus produtores. Mas temos uma distinção importante a fazer nesse ponto: a indústria de biodiesel argentina tem como alvo o mercado externo, o que exige que o biodiesel faça demorados translados nos porões de navios de carga. O mesmo não acontece com o produto nacional.

Já no caso do ponto de entupimento – parâmetro que, grosso modo, determina em qual temperatura o biodiesel começa a congelar –, a ideia é adotar uma tabela de referência que varie em função da localização e do mês (veja tabela). O sistema seguiria os mesmos moldes que a resolução ANP 42 de dezembro de 2009 adota para o óleo diesel. Isso seria uma forma de evitar problemas durante os rigorosos inversos da região Sul do país sem acrescentar custos desnecessários durante o verão equatorial da região Norte [para mais detalhes, veja a reportagem “Passaporte para o Frio” publicada na edição 23 da Revista BiodieselBR].

Mas nem tudo pode ser resolvido usando aditivos. De acordo com Eggers, o aumento no teor de água presente no biodiesel “não ocorre pela qualidade do produto e sim pela condição de tancagem”. Ele não acredita que possamos ter, no curto prazo, aditivos que contribuam para a solução do problema da água.

Está bem claro que a qualidade do biodiesel tem que ser garantida em toda a cadeia. E os gargalos, pelo menos por enquanto, estão por toda a cadeia. Por isso há muito o que se fazer. A resolução da ANP, seja ela como for, ainda será apenas mais um passo rumo ao final feliz que o mercado brasileiro de biodiesel tanto espera.