Biodiesel versus montadoras: uma nota baixa
Ontem (09) uma nota assinada por nove entidades empresariais foi distribuída criticando fortemente os produtores de biodiesel. Essa briga de notas já vem se repetindo há alguns anos e sempre é exagerada, tanto por parte das usinas quanto daqueles que se opõe ao biodiesel.
Ainda assim, a nota mais recente é particularmente forte e ofensiva. Marca uma subida de tom na discussão. Por isso decidi rebatê-la ponto a ponto. O texto da nota está escrito em azul.
Nas últimas semanas, buscando pressionar membros do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), a indústria do biodiesel no Brasil tem chamado a atenção dos meios de comunicação com notas agressivas e distorcidas.
Realmente as notas sobre biodiesel tem chamado a atenção, mas não só as que vem dos produtores de biodiesel. A nota da CNT e esta nota aqui se enquadram perfeitamente na definição de nota agressiva e distorcida. Nesse quesito, está cada um defendendo o seu lado com uma postura agressiva que cabe mais em discussões de colegiais via mídias sociais. Agora a tática parece ser quem grita mais e retorce melhor alguns fiapos de verdade de forma a defender seus interesses.
Utilizando-se da urgência na atenção ao meio ambiente e à adoção de práticas sustentáveis – preocupação real de toda a sociedade –, esses agentes econômicos buscam acobertar seus reais interesses: garantir uma reserva de mercado contra a concorrência de biocombustíveis mais modernos.
Aqui são dois pontos interessantes. O primeiro é que esse grupo de empresas concorda que é preciso ter atenção ao meio ambiente e que sejam adotadas práticas sustentáveis. E de forma urgente. Palavras das empresas, não minhas. Guardem essa afirmação que vamos voltar nela alguns parágrafos a frente.
O segundo ponto, é que essas empresas querem garantir uma reserva de mercado contra biocombustíveis mais modernos. Aqui começa o terreno nebuloso. Nenhum setor quer mais concorrentes, vide o que parte da mesma turma que assina a nota fez para atrasar a chegada do carro elétrico no Brasil. Tudo o que eles levantam como sendo prática das usinas de biodiesel poderia ser dito sobre as práticas de algumas das associações com relação aos veículos elétricos. Daria muito bem para dizer: esses agentes econômicos buscam acobertar seus reais interesses: garantir uma reserva de mercado contra a concorrência de veículos mais modernos.
Mas não é porque a indústria automobilística nacional faz lobby contra os carros elétricos que o setor de biodiesel deveria poder fazer lobby contra o diesel verde. Acontece que o setor não fez nada expressivo contra o HVO. Fez – isso sim – contra o diesel Rx da Petrobras, por medo do que a petroleira poderia fazer em relação aos preços de um produto final que contenha 6% de diesel renovável e 94% de diesel. Como a Petrobras não consegue separar um do outro e ela tem toda a cadeia do diesel sob seu controle, o setor tem receio de que a estatal passe a vender o diesel Rx dela abaixo do custo e, dessa forma, tire mercado das usinas. A grita do setor contra o diesel Rx foi grande, mas não era voltada ao HVO.
Não é porque o setor adore o HVO e queira ele logo por aqui. Mas porque o HVO custa mais caro que o biodiesel e o Brasil ainda não produz esse biocombustível.
O que era, inicialmente, uma proposta de economia solidária e de incentivo ao uso de energia limpa, além de fonte de renda para a agricultura familiar e para o agricultor de baixa renda – com o plantio de palma e mamona para produção de biodiesel –, transformou-se em um negócio rentável apenas para os grandes produtores.
O programa de biodiesel sempre teve esse vínculo com o social, mas nunca foi só sobre isso. Tanto que desde o começo, só parte da matéria-prima usada para fazer biodiesel precisava vir da agricultura familiar. Mas é fato que o programa do Selo Combustível Social, que, mais tarde, viraria Biocombustível Social (na minha opinião, um rebaixamento uma vez que todo o biocombustível é um combustível, mas o contrário não é verdade), nunca funcionou como deveria e acabou virando, na maior parte, um programa de renda extra para produtores de soja do Sul do país.
Dito isso, é preciso destacar a imprecisão da afirmação de que é “um negócio rentável apenas para os grandes produtores”. De que produtores a nota se refere? De biodiesel ou de soja? Em nenhum dos dois casos a frase estará correta. Primeiro porque produtores de biodiesel pequenos já ganharam bastante dinheiro. Muitos também quebraram e saíram do mercado. Segundo que tem muito produtor médio vendendo biodiesel para os associados da federação Brasilcom. E terceiro que a chegada do biodiesel distribui renda para toda a cadeia da soja, que vai dos produtores, aos cerealistas, traders, corretoras, empresas de insumos, prestadores de serviços dos mais variados tipos, e até veículos de imprensa.
Falar que só usinas ganham dinheiro produzindo biodiesel é o mesmo que dizer que só o posto ganha dinheiro com a venda de gasolina ou só a Fiat ganha dinheiro vendendo o Uno.
Em resumo, é uma frase de efeito colocada para manipular o leitor a se voltar contra o biodiesel, e não uma verdade. Tirando que, vinda de entidades que contam com algumas das maiores empresas do país – quando não do mundo – entre seus associados, essa crítica contra grandes produtores parece fora de propósito.
O biodiesel produzido hoje no Brasil é o de base éster. A característica química desse biodiesel gera problemas como o de criação de borra, com alto teor poluidor. Na prática, esse sedimento danifica peças automotivas, bombas de abastecimento, geradores de hospitais, máquinas agrícolas e motores estacionários. Outro dano ocasionado pela borra é o congelamento e contaminação do insumo. O biodiesel cristaliza em baixas temperaturas em motores quando as situações climáticas envolvem variação de temperatura e umidade.
Quem acompanha o setor lê esse parágrafo com cansaço. Esses argumentos vem sendo requentados desde o começo do programa de biodiesel e muito já foi feito para resolvê-los. A especificação do biodiesel já mudou várias vezes para mitigar os problemas relacionados à formação de borras. Tivemos: redução na quantidade de água, aumento no tempo de estabilidade oxidativa e muito mais. Além disso, foram feitos testes. O governo conduziu testes junto com as montadoras, fabricantes de peças e usinas para poder aumentar a mistura para B15. O governo publicou o relatório final aprovando o B15 em 2019, mas as montadoras até hoje dizem que não é bem assim.
O que aconteceu nos dias finais da elaboração desse relatório mereceria uma minissérie. Ou um daqueles documentários de true crime que andam tão na moda. Mas o que se tem reportado é que, de última hora, duas montadoras decidiram que não estavam mais de acordo com o relatório e se recusaram a assinar. Os motivos reais dessa mudança são todos especulativos.
Com a mesma soja e demais biomassas que se faz o biodiesel de base éster é possível fazer o diesel verde (HVO) – este, sim, sustentável e funcional. Mas as discussões sobre o incentivo à produção e uso de diesel verde não evoluem também por questões econômicas e políticas. Quem produz o biodiesel não quer o HVO. A verdade é que os atuais produtores de biodiesel não querem perder o lucro fácil e rápido do biodiesel de base éster, nem investir na modernização do processo industrial para produzir diesel verde.
Chegamos ao HVO! E esse parágrafo contém a maior quantidade de opinião sem alicerce na realidade e de obviedades de toda a nota. Primeiro, dizendo indiretamente que o biodiesel não é sustentável e funcional. Pode até dizer que o biodiesel é feio e chato, mas dizer que não é sustentável um combustível que reduz as emissões de carbono em comparação ao diesel e mais de 1,5 toneladas para cada m³ produzido é de uma bobagem. Se precisarem de adjetivos ruins para pesar as notas, me liguem. Eu ajudo vocês a acharem algo que tenha o mínimo de verossimilidade. E dizer que não é funcional um biocombustível que é vendido e usado todos os dias há mais de 15 anos no país é algo que eu não esperava de algumas das instituições que assinam a nota. De outras, eu esperava até coisa pior.
Dizer que as discussões sobre produção e uso de HVO não evoluem por questões políticas e econômicas é dizer o óbvio e que pode ser dito sobre qualquer coisa que não avança no mundo. “O fim da guerra da Rússia e Ucrânia não avança por questões políticas e econômicas” ou “a fome no mundo não acaba por questões políticas e econômicas”. Dá para passar o dia falando isso de tudo quanto é tema e vai ser sempre verdade.
Quem produz biodiesel não quer HVO. Da mesma forma que quem vende carro a combustão não quer carro elétrico. E da mesma forma que a farmácia da esquina não quer outra farmácia na outra esquina. Ninguém quer concorrentes. O HVO é de fato melhor que o biodiesel da mesma forma que o veículo elétrico é melhor que os carros a combustão. E o motivo pelo qual não se vende HVO no Brasil é o mesmo pelo qual não se vende uma quantia significativa de carros elétricos: por questões políticas e econômicas. Desculpem, não resisti! Mas o motivo principal é que o HVO é mais caro e não existe produção para atender a demanda. Igualzinho ao carro elétrico, que hoje é mais caro e, mesmo assim, vende tudo o que é fabricado. Isso leva a aumentos na capacidade produtiva e, consequentemente, a queda no custo de produção. Ciclo que vem preocupando montadoras e fabricantes de autopeças. Especialmente em países que estão atrasados na eletrificação.
Se hoje o governo mudasse a lei e permitisse o uso de HVO no percentual destinado ao biodiesel, sabem quanto de HVO seria adicionado ao diesel? Zero! Isso porque ele é mais caro que o biodiesel. As distribuidoras, que ficam brigando para não comprar biodiesel 1 centavo mais caro que o concorrente, vão aceitar comprar o HVO por um ou dois reais acima do que seu concorrente que está comprado biodiesel?
Os responsáveis pela produção de biodiesel buscam empurrar essa realidade para debaixo do tapete.
A realidade que querem empurrar para baixo do tapete é que nos últimos 4 anos valeu a máxima de que preço baixo é mais importante do que o meio ambiente ou a saúde pública. Que falar alto e criar narrativas não relacionadas com a verdade era o importava, desde que o público acreditasse nelas.
A realidade das instituições que assinam a nota é que elas estão tentando postergar o uso de renováveis o máximo que puderem. Elas falam bem do HVO porque sabem que simplesmente não existe produto para ser comprado. E falam mal do biodiesel porque sabem que existe uma capacidade de produção enorme pronta para entrar em funcionamento.
Não temos como esperar que se montem várias refinarias de HVO no Brasil para, só então, reduzir as emissões dos veículos diesel. Existe “uma urgência na atenção ao meio ambiente e à adoção de práticas sustentáveis” e quem diz isso não sou eu, mas as instituições que assinam a nota.
Ora, se há urgência, temos que fazer algo para já, com o que temos disponível. Mas também é preciso nos prepararmos para o futuro. Por isso é preciso criar um programa nos moldes do programa de biodiesel para o HVO, onde ele tenha uma reserva de mercado da mesma forma que o biodiesel tem. Sem esse mercado reservado, o HVO não será capaz de competir com o biodiesel. E esse é um projeto que tem que ser pensado pelo Governo Federal, como uma política de estado.
O tema do uso do biodiesel e a sua atual forma de produção no Brasil precisam ser revisitados. Isso implica a promoção de estudos para identificar os impactos em toda a cadeia produtiva do Brasil, dos motores dos ônibus e caminhões, passando pelo distribuidor e pelo revendedor do diesel, até o transportador.
Estudos são sempre bem-vindos. Mas sempre alguém tem que pagar a conta, organizar, marcar as reuniões, analisar os interesses envolvidos, dar prazo para que testes de longa duração sejam feitos, algumas vezes refazer os testes. Enfim, é algo que toma tempo. E como as próprias entidades concordam o tema é urgente, não dá para esperar. Uma ideia é usar os testes do B15 que já foram feitos, liberar a mistura até esse percentual e ir fazendo esses estudos que foram sugeridos.
A indústria automotiva tem sofrido consequências com as avaliações de padrão de qualidade: perda da eficiência de motores, aumento do consumo de diesel e, consequentemente, mais poluição.
Donos de postos de combustíveis, além de problemas que enfrentam nas bombas, encaram a ira de motoristas que abastecem com a mistura de biodiesel e voltam para reclamar de pane em seus veículos, como se o combustível estivesse adulterado.
O transportador – que move este país –, por sua vez, tem se deparado com problemas mecânicos relacionados ao descompasso entre o teor do biodiesel e as limitações das tecnologias veiculares e peças automotivas. Além de gastar mais com um combustível que não é ambientalmente sustentável, ainda fica por vezes parado na estrada, perdendo tempo e aumentando seu prejuízo.
Esses prejuízos se dão em virtude do desgaste prematuro de peças veiculares; da descompensação ambiental das emissões de poluentes; e da onerosa participação do biodiesel no preço final do diesel comercializado.
Todos esses parágrafos são para mostrar os problemas causados pelo biodiesel. O problema é que quase nunca dizem qual foi o caminhão que estragou, quando, qual era o posto, de que bandeira, em qual estado. É sempre uma afirmação genérica, tipo “sempre chove em Finados”. Sempre chove onde? No Brasil todo chove no dia 2 de novembro? No sertão nordestino chove nesse dia? Mas é uma das frases que as pessoas se habituaram a dizer sem pensar.
Uma exceção conhecida é o trabalho feito pela distribuidora Petro Bahia, que coletou os problemas em sua rede de distribuição e os catalogou. Eles não afirmam que o problema o biodiesel, mas suspeitam. O setor produtivo nunca foi atrás para desfazer essa dúvida.
Não há mais tempo para ‘achismos’ (qual é a mistura ambientalmente mais viável, afinal?). Nem é momento, diante de tantas dificuldades já enfrentadas, de o país se curvar aos interesses econômicos de um setor que, sob o falso pretexto socioambiental, só quer lucrar mais.
Não dá para negar que, se aumentar a mistura, os empresários do setor vão ganhar mais dinheiro. Da mesma forma, não dá para negar que eles usam de argumentos bonitos como que usar mais biodiesel “reduz mortes” ou “aumenta a geração de empregos e renda no país” com o objetivo claro de aumentar seu faturamento. Mas isso não quer dizer eles estejam mentindo.
As vezes na vida acontece de uma empresa estar do lado certo do desenvolvimento do mundo. Está claro que precisamos diminuir as emissões de carbono da mesma forma que está claro que o biodiesel não é a solução final para isso. Mas é uma solução que temos disponível. Tem que incentivar o HVO? Com certeza. E o mais rápido possível. Só que agora, não dá para usar ele.
Reclamar que empresário quer ganhar dinheiro é coisa de estudante idealista que está entrando na faculdade, não de instituições que representam empresas multinacionais, listadas em bolsa de valores e que podem ser usadas como exemplificação do funcionamento do capitalismo no mundo.
O Brasil deve olhar para a experiência mundial. A mistura para o consumidor final, para os motores funcionarem a contento, garantindo a redução de emissões, é de 7% na Comunidade Europeia; 5% no Japão e Argentina; de 1% a 5% no Canadá; e de 5% nos Estados Unidos, usualmente. E esses países estão na linha de frente das preocupações climáticas. Aqui, já se pratica um percentual de 10%.
O outro lado desse parágrafo é “esses países devem olhar para o Brasil que já usa 10% e pode chegar a 15% esse ano”. Mas a verdade é que esses países não usam mais porque não têm matéria-prima para produzirem, eles mesmos, o biocombustível que precisam. Nos EUA, no estado de Iowa, grande produtor de soja, o percentual chega a 20%. A Argentina, até pouco tempo atrás, usava 10%. E nem vamos falar da Indonésia com seus 35%...
Me chamou a atenção que está cheio de país com clima frio nessa lista usando um percentual relativamente alto de biodiesel. O biodiesel não é ruim por que congela no frio? Ou será que existe solução para esse problema que a nota convenientemente esqueceu de mencionar?
Ouvir todos os setores que possam contribuir com o entendimento técnico do que representa a adição do biodiesel ao diesel nas atuais configurações é dever do Governo e do Legislativo brasileiros, porque isso afetará toda a sociedade. É o que todos esperamos.
Eu também espero muita coisa desse governo e do legislativo. Ouvir todos os lados é fundamental. E foi isso que o governo fez em 2019, quando foram feitos os testes do B15 e sua aprovação foi garantida. Querer trazer essa discussão de volta a mesa, da forma como essa nota coloca, é querer achar formas de adiar o uso de um combustível menos poluente, mais sustentável e que traz mais benefícios econômicos para o país do que o diesel fóssil.
Miguel Angelo Vedana – BiodieselBR.com
Ps.: Entendo que as entidades não vão gostar do que eu coloquei. Vão me desqualificar por ter um portal que fala de biodiesel e dizer que, por isso, estou do lado dos produtores. Mas vão esquecer todas as vezes que critiquei o setor pela forma como os leilões eram feitos, como eles precificavam o biodiesel, como defendiam um modelo falido, como quando disse que pedir leilão sem preço máximo era bobagem e eles não estavam entendendo o problema, ou quando critiquei o Selo Biocombustível Social. Faz parte.