É preciso deixar de financiar novos campos de petróleo e gás e minas de carvão, defende Guterres
A ação climática deve ser imediata e global. “E começar com o coração poluído da crise climática: a indústria do combustível fóssil”, disse António Guterres em entrevista a jornalistas. Foi a fala mais dura do secretário-geral da ONU em relação a investimentos em carvão, petróleo e gás.
“Os planos de transição da indústria do combustível fóssil têm que ser planos de transformação, que conduzam as empresas às energias limpas e longe de um produto incompatível com a sobrevivência humana”, disse em discurso nas Nações Unidas. “Caso contrário [os planos de transformação do setor de combustíveis fósseis], serão apenas propostas para se tornarem destruidores de planetas mais eficientes.”
Ele também pediu que o setor financeiro impulsione a transição energética do setor de combustíveis fósseis com metas para 2025 e 2030 e com uma estratégia transparente para retirar gradativamente esses ativos de suas carteiras e migrar para energias limpas. E que pare de fazer lobby para combustíveis fósseis, que deixe de investir e emprestar recursos para carvão em qualquer lugar – incluindo infraestrutura, logística, usinas e minas.
“As instituições financeiras têm que se comprometer a parar de financiar e investir na exploração de novos campos de petróleo e gás e na expansão das reservas de petróleo e gás existentes, e investir, em vez disso, na transição justa do mundo em desenvolvimento”, disse.
Exploração na Foz do Amazonas
Respondendo a uma pergunta do Valor sobre a polêmica brasileira em torno da exploração de petróleo na Margem Equatorial, Guterres afirmou:
“Não conheço bem o projeto, mas estou certo que todo o petróleo e o gás que já foi descoberto não será usado pela humanidade. Tenho certeza absoluta que uma parte considerável do petróleo e do gás que já foi descoberto irá ficar no solo para sempre”.
“Não sou contra empresas de combustíveis fósseis, ao contrário. Encorajo as empresas que, agora, têm enormes lucros a usá-los e dirigi-los às renováveis e à economia verde”, disse o secretário-geral da ONU. “Isso quer dizer que conseguirão sobreviver à transição energética e permanecer como atores importantes e relevantes na economia global”.
Discussão climática internacional
Guterres lembrou que a indústria de petróleo e gás teve um lucro líquido extraordinário de US$ 4 trilhões em 2022. “E para cada dólar gasto na exploração de petróleo e gás, só 4 centavos foram para energias limpas e captura de carbono”.
“Vamos encarar os fatos: o problema não é só as ‘emissões’ dos combustíveis fósseis. O problema ‘são’ os combustíveis fósseis.”
Guterres se referia à atual divergência da discussão climática internacional. Os países árabes defendem que a próxima Conferência do Clima das Nações Unidas, a COP 28, tenha como meta reduzir ou até acabar com as “emissões dos combustíveis fósseis” e não com o uso e produção dos combustíveis fósseis.
Nesse jogo de palavras está a premissa dos produtores de petróleo de continuar produzido e capturando e sequestrando carbono, tecnologia conhecida por CCS que até hoje não é comercialmente viável.
Isso vem sendo defendido pelos Emirados Árabes Unidos, que irão sediar a COP 28 em dezembro. E também, de forma indireta, pelos países do G20 (grupo das principais economias mundiais), que defendem acabar com o uso de combustíveis fósseis “unabated”, o que quer dizer a mesma coisa – contar com tecnologias que sequestrem o carbono emitido.
“A solução é clara: os países precisam, progressivamente, deixar o petróleo, o carvão e o gás no solo onde pertencem e investir maciçamente em energias renováveis”, disse.
“É hora de acordar”
“Estamos rumando, de olhos bem aberto, em direção ao desastre, com muitos querendo apostar em desejos, tecnologias não comprovadas e soluções de balas de prata. É hora de acordar”, disse o secretário-geral das Nações Unidas.
Guterres seguiu: “Não faz sentido apostar em mais e mais combustíveis fósseis, usar os lucros apenas para os acionistas e não vislumbrar essa oportunidade com sua capacidade, tecnologia e recursos de serem líderes no desenvolvimento das energias renováveis”.
Esse ponto, para o secretário-geral da ONU, é essencial na COP 28, em Dubai, em dezembro. “É preciso garantir que aqueles que são mais ligados aos setores que mais se beneficiaram da economia do passado reconheçam a importância de liderar a criação da economia do futuro.”
Pressão da opinião pública
“Estou sinceramente esperançoso que a opinião pública irá colocar mais e mais pressão nos governos, porque, agora, se trata de saúde pública, segurança pública e de afetar a economia”, disse Guterres, referindo-se aos impactos dos eventos climáticos extremos com inundações e incêndios na Itália, Estados Unidos e Canadá. “Espero que a opinião pública exija e pressione por mais ações e justiça climáticas”, seguiu.
Guterres tem pedido há tempos que os países acelerem sua agenda climática, entregando compromissos mais ambiciosos de net zero e participando do evento climático de Nova York, em setembro, com um plano de transição energética.
“Estou muito preocupado de onde estamos na questão climática”, disse. “Os países estão longe de cumprir suas promessas climáticas e compromissos. Vejo falta de ambição, de confiança, de apoio, de cooperação e uma abundância de problemas de clareza e credibilidade.”
“Num momento em que deveríamos acelerar a ação, há retrocessos. Quando deveríamos estar preenchendo as lacunas vemos as lacunas se alargando”, seguiu.
Lembrou que os compromissos atuais levam o mundo a 2,8°C de aumento de temperatura até o final do século. “Isso quer dizer catástrofe.”
Pacto de solidariedade climática
O secretário-geral da ONU fez uma proposta, aos países do G20, de um pacto de solidariedade climática em que os maiores emissores, como Estados Unidos e a China, decidiriam fazer mais. A ideia de Guterres abrange os países desenvolvidos e as economias emergentes, em sintonia com o princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas, e de acordo às capacidades nacionais.
Guterres pede que países ricos alcancem o net zero o mais perto possível de 2040 e as economias emergentes, o mais perto possível de 2050. “Não estou pedindo o impossível”, diz ele, lembrando que há países industrializados anunciando a meta para 2035 e emergentes, como o Vietnã, que se comprometeram com 2050. É o que ele chama de “Climate Solidarity Pact” e uma “Acceleration Agenda”.
“Não peço o impossível, mas algo que exige vontade política e visão dos industrializados e emergentes, e, ao mesmo tempo, justiça climática para os países em desenvolvimento”, disse em discurso.
Ele também diz que os países ricos deveriam pressionar os Bancos Multilaterais de Desenvolvimento a adaptar seus modelos de negócios e abordagens de risco para que se consiga muito mais finança privada a custos razoáveis para permitir investimentos maciços em renováveis.
A proposta de aceleração na agenda climática de Guterres propõe:
- Compromisso com nenhuma nova mina de carvão;
- Deixar o carvão em 2030 nos países da OCDE e 2040 em outros lugares;
- Acabar com todo financiamento ao carvão, público e privado;
- Deixar de dar licenças e financiar novos campos de petróleo e gás;
- Parar a expansão de novas reservas de petróleo e gás e apoiar a transição justa de países em desenvolvimento impactados.
Além disso, o plano da ONU recomenda um preço ao carbono e transferir os subsídios atuais dados aos combustíveis fósseis para renováveis e transição energética.
E estabelecer um caminho gradativo para eliminar a produção atual de petróleo e gás, para que se chegue a emissões net zero em 2050.
Daniela Chiaretti – Valor Econômico