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Emissões

Diferença entre petróleo mais ou menos ‘sujo’ já mobiliza empresas


Veja - 26 abr 2024 - 10:05

Mais de 8 000 executivos se reuniram em março, em Houston, na CeraWeek, evento celebrado com apelidos como “Davos da energia” e “Super Bowl do petróleo e gás”. Passaram por lá neste ano 76 CEOs, incluindo os chefes de gigantes como Aramco, Chevron, Eni e Exxon, as secretárias de Energia dos Estados Unidos e da União Europeia, representantes de outras dezenas de governos e o visio¬nário-¬tecno¬lógico-¬e-¬agora--ambien¬talista Bill Gates. Do Brasil, estiveram o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, e o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira. Como vem ocorrendo nas últimas edições, um certo tema abocanhou mais um espacinho na programação e nas conversas, em relação ao ano anterior: quais empresas e países produzem o petróleo menos “sujo” — ou seja, com a menor emissão de carbono da extração ao refino.

Esse fator, chamado intensidade de carbono, passou a ser calculado pelas companhias do setor na década passada, conforme cresceu a pressão de governos, academia e sociedade civil por cortes nas emissões dos gases causadores do efeito estufa e da mudança climática. Em 2020, pela primeira vez, um grupo de doze dessas empresas (incluindo a Petrobras) definiu metas públicas a respeito. Dois anos depois, a S&P — empresa de análise financeira que calcula, entre outros, os índices Dow Jones e S&P500 — passou a informar as intensidades de carbono do petróleo de diferentes origens no Oriente Médio.

O setor, que já diferenciava petróleo “doce” e “azedo” (pela quantidade de enxofre), passou a discutir a procedência da matéria-prima como se tratasse de finos vinhos e azeites. Do ponto de vista de cada empresa, essa atenção tem sentido financeiro: todas se preparam para a possibilidade de o mercado se afunilar e exigir petróleo mais “limpo”. “Em 2050 a matriz energética global ainda vai ter um lugar para o petróleo, e nós estamos preparados para oferecer o produto com menos emissões de carbono em relação à média do setor”, afirma Mauricio Tolmasquim, o primeiro diretor de transição energética da história da Petrobras.

A intensidade de carbono em qualquer produto pode fazer mesmo a diferença entre a vida e a morte de grande parte da humanidade, se quisermos cumprir o Acordo de Paris — ou seja, impedir que o aquecimento global médio passe de 1,5 grau, preferencialmente, ou, na pior hipótese, não passe de 2 graus. Pelos modelos matemáticos atuais, qualquer aquecimento além disso levará a alterações imprevisíveis do clima global, com consequências potencialmente catastróficas em termos humanitários e econômicos. Por isso, importa muito a diferença de carbono emitido na produção de duas unidades aparentemente similares de qualquer produto — podem ser toneladas de fertilizante, sacas de café, automóveis de luxo. Há uma expectativa de que essa diferença passe a ser cada vez mais notada por governos (autoridades tributárias e regulatórias), investidores, compradores intermediários e consumidores finais. A União Europeia iniciou em 2023 a fase de transição para taxar aço, alumínio, cimento, eletricidade, ferro, fertilizantes e hidrogênio, com base nas emissões de cada fabricante. Outros produtos poderão ser incluídos no mecanismo ao longo do tempo.

No caso do petróleo, a intensidade é usualmente medida em quilos de carbono (kg CO2e) emitidos por barril produzido (boe). Muitos fatores fazem diferença nessa conta: o consumo de energia para extrair o petróleo (superficial ou profundo, fluindo facilmente de poços novos, ou com dificuldade, de poços maduros), a queima de gás natural que sai dos poços, o consumo de energia para refinar o óleo (a depender de sua pureza e de qual derivado se deseja obter), a fonte dessa energia, o volume de escape de metano durante o processo, a existência ou não de uma estrutura de captura e reinjeção de gases de carbono no poço e a distância a transportar o produto. Nessa equação, conta contra a Petrobras o fato de grande parte do petróleo brasileiro ser pesado (viscoso e impuro) e estar a grande profundidade, sob o leito oceânico. Conta a favor o fato de alguns campos do pré-sal serem novos (assim, o petróleo flui facilmente) e a empresa ter o maior programa do mundo de reinjeção de gases de carbono nos poços. A Petrobras reduziu em 14% a intensidade das emissões em parte de sua operação (da extração até antes do refino) entre 2018 e 2022 e chegou a uma intensidade de 15 kg CO2e/boe — na arena global, um desempenho bom, mas não excepcional. A norueguesa Equinor, que atua no Brasil desde 2001 e usa intensidade de carbono como variável na remuneração de seus executivos, emite 7 kg CO2e/boe na mesma fase de sua operação e costuma aparecer nas análises com o petróleo menos sujo do mundo.

Com tantas variáveis, a produção de um barril de petróleo mais sujo pode emitir 150 vezes mais carbono que um barril do mais limpo, advertiu em fevereiro um trio de especialistas com análise publicada pelo Fórum Econômico Mundial. No artigo, os três (Hannah Hauman, da Suíça, Bassam Fattouh, do Reino Unido, e Tatsuya Terazawa, do Japão) alertavam que a diferença extrema faz com que não tenha sentido pensar em média de emissões por setor. Essa diferença esquenta também debates globais de outra natureza.

Conforme o mercado de petróleo se afunilar, o mundo vai escolher o produto menos sujo? É possível. Há diversos mecanismos já em discussão. Governos podem criar tributos sobre o carbono, como o mecanismo europeu, ou alocar limites de emissões para cada refinaria, ou exigir cortes e compensações de emissões, ou criar selos para identificar produtos mais limpos. Não se discute no momento proibir a produção do petróleo mais sujo, mas ajustes regulatórios podem reduzir a competitividade desses produtos a ponto de empurrá-los para fora do mercado.

Mas aí entram na equação outros problemas. Dar prioridade à matéria-prima mais limpa — uma boa medida para conter a crise climática — pode significar favorecer produtores ricos (em detrimento dos mais pobres) ou ditaduras (em detrimento de democracias). As atuais guerras na Palestina e na Ucrânia só tornam ainda mais complexo o desafio de obter suprimentos seguros de energia. Em março, um grupo de pesquisadores liderado pelo economista ambiental Lorenzo Pellegrini, da Erasmus University Rotterdam, propôs na revista Nature um “atlas do petróleo inqueimável” no mundo, indicando as reservas que deveriam permanecer nas profundezas da Terra, a fim de preservar populações indígenas e locais com alta biodiversidade. É um critério defensável — mas é apenas um critério, entre vários possíveis. “A discussão é técnica, mas é também geopolítica e ética”, diz Alexandre Szklo, pesquisador e professor de planejamento energético na Coppe, o núcleo de pós-graduação e pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Szklo trabalha com um dos modelos matemáticos mais completos do mundo para simular cenários globais de mitigação das mudanças climáticas. O modelo, apelidado Coffee, foi desenvolvido na Coppe e usado no relatório mais recente do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC).

O debate todo exige ainda outra reflexão: às petroleiras interessa muito concentrar a discussão na intensidade de carbono. Afinal, esse critério observa apenas a redução de emissões em proporção à produção, e não em termos absolutos, que é o importante para a saúde do planeta. Essas empresas mantêm ainda a conversa centrada em partes de sua operação, sem a visão global. Algumas avaliam a intensidade de carbono apenas nas operações sob seu controle direto (denominadas “escopo 1”, nos inventários de emissões); no máximo, incluem as emissões da energia que compram (denominada “escopo 2”). “Isso é pouco, bem pouco”, afirma Szklo, da Coppe/UFRJ. “Mais de 90% das emissões do setor resultam do uso do produto, a queima dos combustíveis, que está no escopo 3”.

A Agência Internacional de Energia também atribui à intensidade de carbono papel complementar na responsabilidade do setor. A organização propõe um cenário em que a intensidade de carbono do setor petroleiro caia mais de 50% de 2022 a 2030, um corte muito mais profundo e acelerado do que as empresas conseguiram até agora. Esse corte ainda precisaria ser acompanhado de uma queda no consumo de petróleo e gás natural, a fim de reduzir em 60% as emissões do setor, nos escopos 1 e 2, até 2030. Como a demanda global de energia continua crescendo, o caminho é aquele que as petroleiras fingem não enxergar: precisamos trocar combustíveis fósseis por fontes limpas — e em velocidade e escala muito maiores do que fazemos atualmente — se quisermos evitar a catástrofe.

Marcos Coronato – Veja