Dependência de diesel na Amazônia ainda é significativa
Na comunidade de São Francisco do Caribi, em Itapiranga (AM), a vida da produtora Elizangela Cavalcante gira em torno do combustível fóssil - em lugar de natureza exuberante na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Uatumã, de onde retira o sustento. Além de pagar R$ 375 semanais no transporte de barco para vender tucumã e outros frutos nativos na cidade, são gastos R$ 600 mensais com diesel para operar a movelaria familiar que processa madeira do manejo florestal. Longe da rede elétrica, ela ainda paga a cota de R$ 80 por mês para o óleo do gerador de energia comunitário, e outros R$ 40 para a bomba puxar água do poço e abastecer a residência. No fim das contas, 40% da renda são consumidos pela dependência do petróleo, agravada na região devido à mudança climática.
Na seca extrema amazônica, quando é difícil a navegação nos rios, como ocorreu no ano passado, conseguir o combustível fica ainda mais caro. Junto aos custos, há emissão de carbono e poluição sonora pelo barulho noturno dos geradores. “Energia limpa é o sonho dos sonhos, porque não quero que essa dependência continue na geração da minha neta”, afirma Cavalcante, integrante de pequenos negócios que precisam da floresta em pé, a exemplo da pousada comunitária que necessita do diesel rateado pelos moradores para abastecer o gerador.
Sob a influência da Hidrelétrica de Balbina, inaugurada na década de 1980, a região do rio Uatumã onde vive Cavalcante sofreu impactos ambientais severos, sem que a usina tivesse contribuído para o abastecimento de energia de comunidades distantes das cidades. “A fonte fóssil eleva custos de produção, principalmente no beneficiamento, e encarece produtos da bioeconomia”, aponta André Luiz Menezes Vianna, diretor técnico do Idesam, organização parceira de projetos na região.
“É um problema para um país que sediará a COP30 e quer ser exemplo para o mundo”, adverte Vinícius Silva, líder de projetos do Instituto Energia e Meio Ambiente (Iema). Na Amazônia Legal há 175 centrais de energia isoladas, como pequenas e médias usinas termelétricas não conectadas ao Sistema Interligado Nacional, que abastecem 2,5 milhões de pessoas. Pelos dados do Iema, há ainda 1 milhão de habitantes sem acesso a qualquer serviço público de energia, dependentes de geradores a diesel ou gasolina - os “motores de luz” só ligados à noite por quatro horas nas comunidades.
No programa Energia da Amazônia, vinculado à privatização da Eletrobras, o governo federal tem meta de investir R$ 5 bilhões para universalizar o acesso à eletricidade na região, substituindo fontes sujas por renováveis (solar, eólica, biomassa, hidrelétricas de pequeno porte) em sistemas isolados. “Se quisermos baratear o custo de energia [não só na Amazônia, mas nas contas de luz dos brasileiros como um todo], é necessário encontrar meios para que a receita do setor elétrico nacional consiga resolver a dependência fóssil dos sistemas isolados”, diz Silva. Reverter o cenário tem implicações políticas, porque Estados e municípios são remunerados pela geração de termelétricas e substituí-las significaria menor arrecadação.
Locomoção pelos rios, luz, comunicação por internet, atividades produtivas, conservação de alimentos e água gelada dependem do combustível fóssil na Amazônia. “O futuro da região, essencial ao clima do planeta, passa por soluções energéticas que tragam melhor qualidade de vida na floresta”, aponta Ademar Cruz, coordenador de articulação institucional da Fundação Amazônia Sustentável (FAS), com ações junto à população de 28 reservas ambientais. “O ponto principal é organizar comunidades isoladas para que tenham força de mobilização e políticas públicas”, destaca.
Segundo Cruz, o preço da gasolina em áreas remotas chega ao dobro do verificado nos municípios com rede elétrica. O mercado é dominado por poucos com poder político e econômico, e ter boas relações com donos de postos de combustível é chave para não ficar no escuro. “É cada vez mais comum o uso de botijão de gás de cozinha no lugar da gasolina para locomoção nas rabetas [pequenos barcos regionais], com fácil adaptação dos motores”, aponta.
Em alguns grotões, o desafio do combustível se mescla ao contexto de atividades ilegais e aumento da violência. “Devido ao custo alto e ao medo instalado nos rios, ribeirinhos reduzem viagens até as cidades para receber o Bolsa Família”, observa Cruz. Ele lembra que as limitações interferem na bioeconomia: além das dificuldades no transporte, a produção não é maior por falta de meios seguros de refrigeração onde não há energia o tempo todo. Sistemas solares chegam como alternativa, diz Cruz, mas “é preciso uma política de preços e linhas de crédito específicas e acessíveis aos ribeirinhos”.
“É uma questão de segurança, autonomia e qualidade de vida”, diz Tayane Belem, diretora de marketing e parcerias do Litro de Luz, organização presente em 15 países para tornar a iluminação solar acessível à população de baixa renda. A tecnologia social de postes e lampiões solares, lançada nas Filipinas a partir de uma invenção brasileira, chegou ao país há 11 anos e já beneficiou 140 comunidades, muitas na Amazônia.
Com uso de materiais simples como cano PVC, garrafas PET e lâmpadas de LED, a solução é de fácil manutenção pela própria comunidade. “A luz possibilita maior renda na pesca ou extrativismo, ao permitir ganho de tempo com o início do trabalho na madrugada”, explica Belem. A tecnologia viabiliza o trabalho de costura, tarefas escolares e afazeres domésticos durante a noite, sem a dependência de geradores. Em junho, foram instalados cerca de 100 postes solares em comunidades quilombolas da ilha do Marajó (PA).
Nesse arquipélago, na ilha das Cinzas, a energia solar abastece agroindústria recém-instalada para o beneficiamento da amêndoa de murumuru, da semente de ucuuba e do fruto de patauá, visando o fornecimento de óleos e manteigas a indústrias de cosméticos, com renda 60% maior em relação à venda do produto in natura. “É uma oportunidade de inspirar modelos adaptáveis à nossa realidade e mostrar que é possível fazer a transição energética”, ressalta Francisco Malheiros, presidente da associação local, a Ataic, com 470 famílias fornecedoras, na foz do rio Amazonas.
O sistema solar é monitorado à distância pela WEG, em Santa Catarina, que levou para a comunidade o seu primeiro modelo de equipamento com fonte solar, em cooperação com a empresa W-Energy. “A redução de combustíveis fósseis faz parte da nossa meta de zerar emissões líquidas de carbono até 2030, com impactos na produtividade e autonomia das comunidades fornecedoras”, diz Fernanda Facchini, líder de mudanças climáticas e economia circular da Natura, parceira na instalação da agroindústria. A expectativa da Ataic é faturar neste ano R$ 2,2 milhões com produção de 40 toneladas de bioinsumos.
Em Oriximiná (PA), produtores indígenas, quilombolas e ribeirinhos negociam com compradores a ajuda no combustível para viabilizar a coleta de cumaru, a baunilha amazônica de alta demanda, vendida a R$ 200 o quilo. “O peso da carga e o trajeto nos rios - contra ou a favor da correnteza - influenciam no consumo de diesel”, conta Naildo Jesus, auxiliar de logística da Cooperativa Mista dos Povos e Comunidades Tradicionais da Calha Norte (Coopaflora). O grupo é apoiado pelo Imaflora no Programa Florestas de Valor, que fortalece técnicas de produção sustentáveis na Amazônia.
Foi necessário racionalizar o transporte dos produtos da floresta até a cidade. Com internet, reuniões virtuais substituíram longas e caras viagens para assistência aos extrativistas. São custos nem sempre embutidos nos preços, mas hoje há o alívio de sistemas solares que fornecem energia a diversas comunidades do município.
No território quilombola Alto Trombetas II, a rotina está livre do combustível fóssil dos geradores, só utilizados para garantir luz e o som alto nos grandes festejos. Já não é necessário pagar R$ 60 por família ao mês para ter energia suja nas casas das 18h às 22h. Com eletricidade o dia todo sem dependência do diesel, conta Jesus, “moradores se sentiram estimulados a comprar TV, freezer e iluminação nova para o terreiro”. Muitos passaram a estudar à noite e tiveram mais tempo para trabalhar de dia, com ganhos na bioeconomia.
Sérgio Adeodato – Valor Econômico