Biodiesel 20 Anos: O lado social do biodiesel
BIODIESEL 20 ANOS É UMA SÉRIE EM TRÊS PARTES PUBLICADA POR BIODIESELBR.COM ENTRE OS DIAS 06 DE DEZEMBRO E 13 DE JANEIRO.
- Na primeira parte acompanhamos a criação do programa pelo governo federal;
- Na segunda parte acompanhamos como foi para os pioneiros do setor industrial;
- Na terceira exploramos a relação entre PNPB e a agricultura familiar;
Desde os primórdios, o Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB) foi pensado como uma ferramenta para o fortalecimento da agricultura familiar. Este era um ponto que já estava claro na primeira reunião do grupo de trabalho criado em julho de 2003 para avaliar a viabilidade da proposta de introduzir um novo biocombustível que poderia substituir o diesel, apresentada semanas antes pelo (então) ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, ao presidente Lula que – na época – estava iniciando seu primeiro mandato [leia mais sobre a concepção do PNPB na reportagem “O programa que mudou o Brasil” desta mesma série].
“Já no primeiro encontro do GT do biodiesel, o [então ministro-chefe da Casa Civil] Zé Dirceu nos disse que o presidente Lula só tinha interesse [no biodiesel] se fosse com agricultura familiar. (...) Eles não queriam repetir o Proálcool que tinha ficado para os grandes produtores de cana”, lembra o diretor de abastecimento da Conab, Arnoldo de Campos, que, na época, ocupava um posto no Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). “O recado que veio para a gente era que o biodiesel não deveria ser apenas para uma região ou para uma única cultura agrícola. Que tínhamos que diversificar”, complementa.
Foi a partir dessa ‘encomenda’ que a equipe liderada por Arnoldo passou meses refinando uma proposta para assegurar que a agricultura familiar teria um espaço na futura indústria do biodiesel. O resultado foi o Decreto 5.297/2004, o documento que oficializou o Selo Combustível Social (renomeado, em 2020, para Selo Biocombustível Social) como uma política que oferecia reduções nas alíquotas do PIS e da Cofins – e até isenção total – para usinas que topassem comprar parte de suas matérias-primas de fornecedores da agricultura familiar e manter programas de assistência técnica e extensão rural.
Mais tarde, os benefícios para esses fabricantes seriam reforçados com um acesso privilegiado ao mercado. Ao menos 80% do volume de biodiesel comercializado no Brasil precisa vir de usinas detentoras do Selo Social.
E foi por pouco que o Selo Social não se tornou obrigatório. “Eu fui voto vencido. Para mim, o Selo deveria fazer parte dos documentos que uma usina precisa ter para poder operar”, conta Arnoldo, revelando que a obrigatoriedade só não foi para frente porque o Planalto temia a judicialização do PNPB. “Avaliou-se que a exigência de um percentual mínimo poderia ser derrubada judicialmente”, prossegue.
Fora da zona de conforto
Essa proposta de uma união entre grandes empresas e pequenos produtores rurais foi encarada com certa ambivalência no começo do programa. “Tínhamos resistência [ao Selo] porque não estávamos acostumados a criar toda uma estrutura de assistência técnica com agrônomos e treinamentos”, admite o conselheiro da Caramuru, Alberto Borges. “Mas, para cumprir as exigências do programa, nós saímos de nossa zona de conforto. (...) Foi um desafio muito grande! No início, parecia uma coisa impossível, mas, ao longo do tempo, fomos aprendendo a trabalhar com o agricultor familiar”, afirma.
E não faltou quem acusasse o Selo de funcionar como uma reserva de mercado, argumento que exaspera Arnoldo. “Essa acusação não se sustenta! Se formos por aí, biodiesel e o etanol anidro também são reservas de mercado. Mas esses pouca gente questiona”, ironiza, apontando que, se não fosse a decisão do poder público de bancar a mistura obrigatória, o biodiesel não teria como competir com o diesel de petróleo. “Se fosse para trabalhar só com o mercado, não existiria biodiesel. (...) Ele é resultado de uma política pública que, hoje, vemos que foi corretíssima”, completa.
Esse desconforto, contudo, nunca se transformou em oposição aberta. “Tinha ficado muito claro que o governo só ia bancar a mistura se o setor se comprometesse com a inclusão social. E o setor privado também viu nisso um ganho de imagem”, pondera Arnoldo, dizendo que, pelo menos nas reuniões que teve com os empresários do setor, todos sempre trataram o Selo Social “como um fator positivo”.
No final, o setor acabou abraçando – ou, pelo menos, se acomodando – ao Selo. “[O Selo] se mostrou um item vencedor”, reconhece Alberto. Tanto que, segundo dados da plataforma BiodieselDATA, nenhuma das 58 usinas comerciais autorizadas a fabricar biodiesel está fora do Selo Social. A adesão mais recente foi da Petrobio, em meados de dezembro passado.
Tiro n’água
Apesar da adesão de 100% das usinas, nem tudo o que Brasília esperava do Selo se concretizou.
A aposta de que o programa de biodiesel teria força suficiente para alavancar novas cadeias de oleaginosas em rincões do país não se pagou. O caso mais simbólico foi o da mamona. Brasília tinha esperança de que essa oleaginosa viabilizasse a produção em larga escala no interior do Nordeste. “Já tinha plantio de mamona pela agricultura familiar no Nordeste. Então, o governo entendeu que seria possível expandir para o biodiesel”, relata o conselheiro financeiro da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Antoninho Rovaris.
Não deu certo. Apesar de a ricinocultura ter voltado a crescer nas últimas safras, até hoje se colhe menos mamona no Brasil do que se fazia em meados da década de 1980.
E a mamona não foi o único tiro n’água. Segundo Antoninho, foram feitas tentativas de viabilizar a produção familiar de oleaginosas como pinhão-manso, macaúba, girassol e dendê, que também foram malsucedidas. “Tivemos muitas experiências para diversificar [a produção], mas nenhuma conseguiu fazer frente à soja. O fomento às novas atividades acabou em frustração”, diz, acrescentando que, em muitos casos, faltaram ferramentas de financiamento e seguro rural desenhadas para os projetos de diversificação.
Segundo a liderança da Contag, quando ainda era um dos grandes players do setor de biodiesel, a Brasil Ecodiesel (atual Terra Santa) tentou levantar um financiamento junto ao Banco do Nordeste para tirar do papel um projeto de fomento ao plantio de mamona. “O valor que eles pediram como garantia era tão alto que inviabilizou”, recorda-se.
Nem mesmo a produção de óleo de palma, que chegou a ter seu próprio programa de incentivo – o Programa de Produção Sustentável de Palma-de-Óleo, lançado em maio de 2010 – com linhas de crédito especialmente planejadas, decolou. “E, mesmo assim, não decolou”, lamenta Arnoldo.
Esses esforços em prol da diversificação eram vistos com ceticismo até dentro do próprio governo. Roberto Rodrigues disse à reportagem de BiodieselBR.com que, em sua ideia original, o biodiesel seria feito de óleo de soja ou de outras matérias-primas da agricultura comercial. “Eu não acreditava no biodiesel de mamona. Minha ideia era usar produtos como soja, algodão, sebo bovino... produtos da agricultura comercial que permitiriam ter volumes maiores de produção. Sem isso, ficaria uma coisa restrita, que não teria importância econômica e social”, explica.
Domínio da soja
Para Erasmo Battistella, presidente da Be8, não dá para dizer que essa tentativa tenha sido um ‘erro’. “Foi uma aposta e ela teve seu valor. (...) O papel da política pública é induzir investimentos que o setor privado não faria por conta própria”, avalia. Esses esforços, contudo, acabaram se afogando numa enxurrada de óleo de soja. “Não foi bem o que faltou [da parte do governo], mas o que sobrou. A soja deu um show. Ela cresceu numa proporção enorme e com um óleo muito competitivo, o que fez com que o processo de diversificação fosse muito mais lento”, diz, reforçando acreditar que a diversificação das fontes de óleos e gorduras da indústria virá cedo ou tarde.
Com tanta soja à disposição, não é de surpreender que – a despeito dos esforços do governo federal – ela tenha dominado o mix de matérias-primas usadas pelo setor de biodiesel, com participação média de 73,8% desde o lançamento da mistura obrigatória em 2008. Seu pior momento foi em 2022, quando teve uma fatia de 65,8%.
E vale mencionar também que não foi só a soja que ajudou o biodiesel. A via foi de mão dupla. “Indiretamente, o PNPB salvou a soja”, crava o presidente da Oleoplan, Irineu Boff, lembrando que, na época do lançamento do PNPB, o mercado de óleo de soja vivia um momento de baixa que dificultava a viabilidade da cadeia no Centro-Oeste. “O governo tinha que dar subsídio para a soja ir até os portos. Com o biodiesel, o preço do óleo mudou de patamar, o que permitiu remunerar os produtores”, avalia.
Segundo Alberto Borges, da Caramuru, o biodiesel também ajudou a indústria da soja a compensar os efeitos da Lei Kandir – lei de 1996 que isenta de ICMS as exportações de produtos primários. “Isso criou um mecanismo que incentivava muito a exportação de soja in natura; o biodiesel criou uma rede de proteção para as indústrias”, elogia.
Sucessos parciais
O domínio quase absoluto da soja obrigou as usinas a buscarem os agricultores que precisavam para ‘fazer o Selo’ principalmente na Região Sul – onde havia produção de soja em propriedades familiares. O resultado foi uma grande concentração nos gastos das usinas. Cerca de quatro de cada cinco reais que o setor de biodiesel gastou com o Selo foi para o Sul, frustrando a meta de que o Selo alavancasse a renda de produtores das regiões mais pobres do país.
Esse não foi o único ponto onde o Selo Social acabou se desviando da rota esperada pelo Planalto. O objetivo inicial era chegar a 200 mil famílias; número que nunca foi atingido pelo programa. Em seu melhor ano (2011), o Selo beneficiou 104,3 mil famílias e, desde então, os resultados vêm declinando. “O número de agricultores caiu porque as empresas têm priorizado agricultores com maior produtividade”, avalia Antoninho.
Em 2022 – dado mais recente do MDA – foram 54,3 mil famílias, fazendo deste o pior ano desde 2009. Dois fatores ajudam a explicar essa nova queda. O primeiro deles é que 2022 não foi um ano particularmente bom para o setor de biodiesel, em função das reduções da mistura obrigatória determinadas pelo governo Bolsonaro. Isso fez com que a produção nacional de biodiesel recuasse cerca de 500 mil m³ – 7,5% – em relação ao ano anterior. Além disso, a safra de soja 2021/22 apresentou uma quebra de 45% na Região Sul, o que contribuiu para derrubar os números do Selo em sua região mais importante.
Segundo o MDA, a quebra de 2022 afetou aspectos nos quais o Selo sempre se saiu muito bem: os volumes, os valores e a renda gerada para cada família. Hoje, o Selo Biocombustível Social é a maior iniciativa de geração de renda para a pequena propriedade. “Praticamente ninguém sabe disso, mas o Selo é o maior programa de compras da agricultura familiar. Enquanto o [Programa Nacional de Alimentação Escolar] não chega a R$ 1,5 bilhão, já o biodiesel comprou perto de R$ 9 bilhões. O problema é a concentração no Sul”, ressalta Arnoldo.
Não que o agricultor do Sul não mereça ganhar um dinheiro a mais. Esse só não era o objetivo do Selo. Afinal de contas, eles já são bastante tecnificados e estão inseridos numa cadeia próspera que não dependia dessa injeção extra de recursos, a ponto de ter tido gente dentro do Planalto considerando barrar completamente seu uso no biodiesel. “Eu sempre fui contra [proibir a soja]. Eu sabia que a soja seria a base do programa”, diz Arnoldo. “A diversificação é um pano de fundo importante, mas não acho que seja um fracasso fazer biodiesel de soja”, contemporiza.
Há ainda outro aspecto no qual o programa parece acertar. Ele, de fato, chega a quem tem menos terra. Cerca de três quartos dos agricultores que venderam para usinas em 2022 tinham áreas com até 40 hectares, sendo que o maior grupo – 16,2 mil – estava na faixa entre 20 e 40 hectares.
E há um outro ponto que é encorajador. Embora a soja siga sendo a grande vencedora, as outras matérias-primas vêm crescendo de forma contínua desde 2014 e, em 2022, somaram mais de R$ 645 milhões dos R$ 5,95 bilhões movimentados pelas usinas. É o maior volume já destinado a óleos e gorduras diferentes da soja em toda a história do programa.
São mudanças que já vinham se tornando perceptíveis antes das modificações mais recentes no regulamento do Selo Social promovidas pelo governo federal. Em agosto de 2023, a Portaria Interministerial MME/MDA 2/2023 tornou obrigatório que, a partir de 2024, parte das compras do Selo viesse do Norte, Nordeste e Semiárido. Este ano, o percentual deverá chegar a 15% e passar para 20% a partir de 2026. Já a Portaria MDA 28/2024 abriu a possibilidade de as usinas contratarem outros produtos da agricultura familiar além de oleaginosas.
Essas mudanças empolgaram Arnoldo, que vê nelas o potencial de entrelaçar a indústria de biodiesel com a produção de alimentos no Norte e Nordeste. “O resultado disso pode ser algo extraordinário!”, anima-se, apontando que, 20 anos depois de seu lançamento, tanto o PNPB quanto o Selo Social continuam evoluindo. “Até hoje estamos aperfeiçoando. Isso é natural para todo setor regulado. Você não pode ficar engessado”, finaliza.
Leia a segunda parte da sérei "Biodiesel 20 Anos"
Fábio Rodrigues – BiodieselBR.com