Burocracia faz bioquerosene usado no Brasil ter de ser importado
Numa iniciativa louvável, serão realizados 200 voos comerciais abastecidos com biocombustíveis partindo do Rio em direção às demais cidades-sede da Copa do Mundo. Pasmem: nenhuma gota desse biocombustível é brasileira.
A iniciativa pretende usar eventos internacionais como a Copa para promoção e teste de biocombustível em escala comercial. É uma importante contribuição ao desafio do setor aeronáutico de atingir crescimento neutro em carbono até 2020 e reduzir em 50% suas emissões em 2050, comparado a 2005. Um desafio dessa magnitude abre uma enorme oportunidade para o Brasil.
Durante anos temos acompanhando a evolução da iniciativa de substituição do querosene fóssil de aviação por bioquerosene (bioQAV). Nossas estimativas indicam que a substituição do fóssil pelo bioQAV pode reduzir as emissões de carbono em mais de 80% e, ainda, atender aos padrões internacionais de sustentabilidade social e ambiental. A combinação de aeronáutica e biotecnologia industrial tem despertado interesse em diferentes partes do globo. A disponibilidade de matéria-prima agrícola (particularmente cana-de-açúcar) nos coloca ainda em certa vantagem quando comparada a outras alternativas renováveis.
O que nos espanta é a razão pela qual nenhum dos 200 voos realizados no espaço aéreo brasileiro trouxe produto do Brasil em seus tanques. Não é uma questão de competitividade, uma vez que a cana-de-açúcar, apesar de sofrida, ainda é muito eficiente na produção de energia. Tampouco se trata da falta de disponibilidade do produto no Brasil. O que impede o uso do produto brasileiro é o excesso de burocracia, disseminado em vários setores e, em particular, no nosso governo.
Por ser um combustível usado em condições extremas, o querosene de aviação deve passar por rigorosos testes de qualidade e conformidade. Internacionalmente, a especificação ASTM para Jet A/A1 é exigida e aceita para voos comerciais. No Brasil é necessária regulamentação complementar, devendo ser aprovado no padrão QAV-1, o que requer resolução específica da Agência Nacional do Petróleo (ANP).
Com a aprovação do bioquerosene produzido do açúcar da cana pela ASTM em meados de junho, que na prática é de origem brasileira, estamos diante de uma situação esdrúxula. Ele pode ser usado em voos comerciais em escala global, incluindo voos da Europa e dos EUA rumo ao Brasil, mas não pode decolar do Rio de Janeiro. A iniciativa de promoção de descarbonização da aviação comercial via biocombustíveis no Brasil, durante a Copa, só é possível com biocombustível importado.
Não temos, é claro, nada contra bioquerosene produzido no exterior. Também não pretendemos minimizar o mérito da promoção dos biocombustíveis de aviação. O momento da Copa parece perfeito. É uma frustração e quase um desabafo. Em tempos de Copa, seria como ver um dos nossos jogadores ser barrado na imigração no início de junho por uma pane no sistema da Polícia Federal. Sim, ele poderá entrar, mas só daqui a um mês.
Discriminação contra um produto importado não é permitida em comércio internacional. Mas contra um produto local é a primeira vez que ouvimos falar, ainda mais no país do conteúdo nacional.
Vale ressaltar que a resolução da ANP não traz nenhuma modificação técnica nos parâmetros da ASTM. Assim, por mais louvável que sejam os motivos para a ANP ter resolução própria, nenhum teria sido mais nobre do que permitir que os voos viessem a ocorrer com bioquerosene nacional.
E, pior ainda, não há definição tributária para o novo produto renovável, o que leva o biocombustível a cair na "regra geral", que pode significar que ele terá carga tributária maior do que o fóssil. Lembrando que a tributação do fóssil segue um regime especial, que não se aplica automaticamente por definição ao biocombustível.
Se o governo quer inovar, que tal deixar de lado a cola e incentivar as tecnologias limpas com menos impostos? É mais uma triste evidência de que combustíveis renováveis não estão na pauta de prioridades de quem gerencia as políticas do setor energético no Brasil.
André Meloni Nassar e Marcelo Moreira - diretor e pesquisador da Agroicone