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Valorização do glicerol


Edição de Dez 2010 / Jan 2011 - 15 dez 2010 - 11:39 - Última atualização em: 22 dez 2011 - 13:41
Alexandre Perez Umpierre e Fabricio Machado

O desenvolvimento de tecnologias para a valorização do glicerol é uma das realizações indispensáveis para a continuação e ampliação da produção de biodiesel [1]. Isso é verdade porque o principal processo de obtenção de biodiesel atualmente é a transesterificação de oleaginosas com etanol ou metanol, que produz aproximadamente 10 % em massa de glicerol em uma fase aquosa com alta concentração de base. A transesterificação de oleaginosas produz no Brasil aproximadamente 1 mi ton ano-1 de biodiesel, equivalente a 100 mi ton ano-1 de glicerol.

Esse número deve aumentar significativamente, pois vivemos um cenário bastante otimista, que indica a entrada do B20 a partir de 2020, o que resultaria em um mercado cerca de quatro vezes maior. Os principais mercados do glicerol são as indústrias cosmética, farmacêutica, do tabaco e alimentícia, que consomem derivados do glicerol na forma de ésteres, poliglicerina e resinas, além de consumir glicerol como umectante, solvente, agente suavizante e de troca térmica, lubrificante e agente de preservação para bactérias, entre outras aplicações, conforme é apresentado na Figura 1 [2]. Embora esses dados estejam desatualizados em quase dez anos, ainda é razoável considerar sua validade em termos de aplicações para o glicerol.

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Figura 1: Tendência dos mercados consumidores de glicerol [2].

Glicerol ou glicerina são nomes comuns do 1,2,3-propanotriol. Normalmente, usa-se o termo glicerina para designar o produto vendido no comércio varejista ao consumidor final, que é uma solução aquosa contendo entre 50 % a 90 % de 1,2,3-propanotriol. Já o termo glicerol é normalmente atribuído ao 1,2,3-propanotriol puro. O glicerol é principalmente um insumo e uma matéria-prima para a indústria química. Sua utilização como produto final é limitada a quantidades menores. A estabilidade química e o baixo poder calorífico do glicerol limitam sua utilização como combustível e sua conversão em outros produtos. As principais rotas de conversão do glicerol na indústria são processos fermentativos de baixo rendimento, caros e de alto impacto ambiental, que utilizam oxidantes fortes como permanganato de potássio e ácidos crômico e nítrico em quantidades estequiométricas [3].

A principal alternativa a esses processos é a conversão catalítica do glicerol sobre catalisadores suportados. A hidrogenólise catalítica a propeno e a desidratação catalítica a acroleína e a ácido acrílico são exemplos clássicos [4]. O glicerol também pode ser craqueado cataliticamente a gás de síntese (mistura de CO e H2, matéria-prima para o processo exotérmico Fischer-Tropsch, visando a produção de hidrocarbonetos de cadeia longa) por catalisadores suportados de Pt em um processo endotérmico a 350 °C [5]. A associação do processo Fischer-Tropsch à produção de gás de síntese a partir de glicerol é uma boa alternativa para valorização do glicerol em combustível em um processo energeticamente econômico [6]. Adicionalmente, o radical TEMPO (2,2,6,6-tetrametilpiperidina- 1-oxil) foi descrito como espécie cataliticamente ativa para a conversão de glicerol a ácido cetomalônico em presença de NaOCl como oxidante primário em condições relativamente brandas (pH = 10, 2 °C) dissolvido em água e sobre xerogéis dopados com o radical.

Outra opção é a oxidação catalítica, que tem sido estudada extensivamente nos últimos vinte anos em grupos de excelência em catálise. Os sistemas de oxidação catalítica do glicerol utilizam condições reacionais de brandas a moderadas e catalisadores suportados à base de Au, Pd e Pt em meio aquoso com oxigênio molecular puro ou ar. Os produtos da oxidação, com alto valor agregado, são ácidos em sua maioria, à exceção da dihidróxi-acetona, produzida pela primeira vez em 1898, por Bertrand, através da fermentação de glicerol [7], sendo usada como intermediário ou como agente de bronzeamento na indústria de cosméticos. O ácido mesoxálico (ou ácido cetomalônico, o produto completamente oxidado do glicerol) é um diácido de alto valor agregado com aplicação como synthon [8] orgânico cuja clorofenilhidrazona recentemente teve demonstrada sua atividade biológica como agente anti-HIV [9].

A oxidação catalítica de glicerol foi reportada pela primeira vez por Kimura e colaboradores em 1993 [10], em um sistema reacional aquoso alcalino à base de Pt, obtendo ácido glicérico como produto principal. Posteriormente, Kimura publicou uma série de trabalhos sobre a produção de polímeros à base de glicerol via polimerização assistida por oxidação [11, 12] e o uso de diversos produtos da oxidação de glicerol como monômeros para produção de polímeros biodegradáveis [13]. A descoberta de uma rota de polimerização de glicerol em meio aquoso abriu novos horizontes para a valorização do glicerol. Os resultados com maiores rendimentos foram obtidos por catalisadores suportados à base de Pd ou Pt-Bi em meios alcalino e ácido, respectivamente. Catalisadores de Pd em meio aquoso com pH = 11 pode conduzir a um rendimento de 70 % em ácido glicérico com uma conversão de 90 %. Já catalisadores de Pt-Bi em meio aquoso com pH = 2 chega a um rendimento de 37 % em dihidróxi-acetona com uma taxa de 75 % de conversão, e subseqüentemente leva a um rendimento de 61 % em ácido tartrônico com 94 % de conversão. Em meio ácido também é possível converter ácido glicérico em ácido hidróxi-pirúvico e ácido tartrônico a ácido mesoxálico usando catalisadores suportados de Pd. O uso de Bi como modificador em sistemas à base de Pt serve a duas funções: prevenir oxidação do catalisador e direcionar a seletividade catalítica para a oxidação do álcool secundário.

Besson e colaboradores realizaram um extenso e detalhado trabalho focalizado na busca por catalisadores de melhor desempenho, avaliando o efeito do pH sobre as propriedades catalíticas, e a ação de modificadores [14-17]. Os resultados em linhas gerais indicam que catalisadores de Pt suportados em meio alcalino são seletivos para a oxidação dos álcoois primários e catalisadores de Pd suportados. Os melhores resultados obtidos com a completa conversão de glicerol foram obtidos com 70 % de seletividade em ácido glicérico [15]. Em presença de modificadores de Bi, a seletividade em dihidróxi-acetona pode chegar a 50 % com 70 % de conversão [16]. Por exemplo, o gliceraldeído é produzido com 55 % de seletividade e 90 % de conversão em catalisadores de Pt/C. A seletividade a dihidróxi-acetona é de somente 12 %. Entretanto, a seletividade para oxidação da hidroxila secundária aumenta com a adição de Pb ou Bi ao catalisador de Pt [17]. Em conversões mais altas nesse sistema foi observado o envenenamento do catalisador.

A adição de Ce, Bi e Pb em catalisadores de Pt suportados através de co-precipitação permite orientar a seletividade catalítica para a oxidação dos álcoois primários e do álcool secundário e retarda a desativação [18,20]. É importante destacar que a oxidação seletiva de glicerol a dihidróxi-acetona foi descrita pela primeira vez usando catalisadores bimoleculares de Bi-Pt/C com produtividade muito superior ao processo de fermentação [21].

Mallat [22] sugere que o envenenamento do catalisador seja proporcional à concentração de oxigênio dissolvido. Isso justifica o fato de os sistemas catalíticos à base de catalisadores suportados de Pd e Pt operarem em fluxo constante de ar. A oxidação catalítica do glicerol (I) produz os ácidos glicérico (II), tartrônico (III), hidróxi-pirúvico (VI), mesoxálico (VII), o gliceraldeído (IV), a dihidróxi-acetona (V), além do ácido oxálico (IX) e do ácido glicólico (VIII). O gliceraldeído é tipicamente um intermediário do ácido glicérico, mas nem sempre pode ser isolado porque é rapidamente oxidado (Figura 2).

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Figura 2: Oxidação catalítica do glicerol

Mesmo à temperatura de reação branda, os catalisadores de platina tendem a sofrer envenenamento por oxidação, o que leva à necessidade de reduzir a pressão de oxigênio. Além disso, o controle estereoquímico da reação exige controle rigoroso de pH. Por esses motivos, a oxidação catalítica de glicerol por catalisadores suportados de platina exige admissão contínua de oxigênio e de solução ácida (ou alcalinas), conforme seja a orientação desejada da seletividade catalítica. Sistemas reacionais isentos de base foram recentemente descritos por Liange e colaboradores [23,24] para oxidação de glicerol a ácido glicérico catalisada por nanopartículas de Pt suportadas em carvão e nanotubos de multi-paredes.

A oxidação catalítica de glicerol sobre nanopartículas de Au (15-30 nm) suportadas em grafite com alto rendimento em ácido glicérico e conversão moderada em meio neutro foi descrita por Hutchings e colaboradores [25,27]. Partículas maiores (50 nm) mostraram-se inativas mesmo em concentrações altas de base. A elevada concentração de base pode levar à quebra de ligações C-C, além de inviabilizar o processo por aspectos ambientais.

Os catalisadores à base de Au são mais resistentes ao envenenamento do que os catalisadores de Pd e Pt, o que permite trabalhar a pressões de oxigênio mais altas (3-6 atm) [28, 29, 30]. Esse sistema é bastante ativo e bastante seletivo para a oxidação dos álcoois primários, produzindo sempre ácido glicérico subseqüente à oxidação de gliceraldeído, embora seja requerido o uso de base, que também favorece a interconversão dos produtos intermediários. Portanto, em meio alcalino é possível controlar a seletividade de dihidróxi-acetona (e de seus podutos de oxidação: ácidos hidróxi-pirúvico e mesoxálico) pela escolha judiciosa do catalisador.

A oxidação catalítica do glicerol em uma escala industrial exige sistemas catalíticos mais robustos do que aqueles baseados em Pd e Pt e mais ativos e/ou mais baratos do que o Au. Sistemas não convencionais como Au/Ni2O5 [31] e ligas metálicas de Au-Pd/C [32] têm sido descritos como alternativas para modular as propriedades catalíticas e, portanto, controlar a conversão de glicerol e os rendimentos dos produtos.

A despeito de sua estabilidade química, o glicerol pode ser convertido em uma grande variedade de produtos através de processos catalíticos. É possível converter o glicerol em gás de síntese por craqueamento, em acroleína por desidratação, em propeno por hidrogenólise, em dihidróxi-acetona e em ácidos glicérico, mesoxálico e oxálico por oxidação, produtos com valor de mercado superior ao glicerol. O desafio que se apresenta à indústria é o desenvolvimento de tecnologias capazes de utilizar essas rotas catalíticas na indústria. Esses processos devem ser quimicamente robustos (catalisadores resistentes a envenenamento e capazes de regeneração), limpos e energeticamente econômicos. Particularmente, a valorização do glicerol via oxidação catalítica sobre catalisadores suportados pode representar uma grande oportunidade para a produção de polímeros biodegradáveis, intermediários da indústria de fármacos e eliminar um dos obstáculos para a produção de biodiesel via transesterificação de oleaginosas.


Referências Bibliográficas
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[5] R. R. Soares, D. A. Simonetti, J. A. Dumesic, Angewandte Chememie International Edition, 45, 3982, 2006.
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[10] H. Kimura, K. Tsuto, T. Wakisaka, Y. Kazumi, Y. Inaya, Applied Catalysis A: General, 96, 217, 1993.
[11] Veja por exemplo: a) H. Kimura, Journal of Polymer Science: Part A Polymer Chemistry, 34, 3615, 1996. b) H. Kimura, Journal of Polymer Science: Part A Polymer Chemistry, 34, 3607, 1996. c) H. Kimura, Journal of Polymer Science: Part A Polymer Chemistry, 34, 3595, 1996. d) H. Kimura, Journal of Polymer Science: Part A Polymer Chemistry, 36, 195, 1998.
[12] H. Kimura, Applied Catalysis A: General, 105, 147, 1993.
[13] Jpn. Patent 151462, 1993 e Jpn. Patent 41544, 1995.
[14] R. Garcia, M. Besson, Gallezot, Applied Catalysis A: General, v.127, p.165, 1995.
[15] R. Garcia, M. Besson, Gallezot, Applied Catalysis A: General, 127, 165, 1995.
[16] M. Besson, Gallezot, Catalysis Today, 57, 127, 2000.
[17] Fordham, M. Besson, Gallezot, Appl. Catal. A 1995, 133, L179.
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[24] J. Gao, D. Liang, Chen, Z. Hou, X. Zheng, Catalysis Letters, 130, 185, 2009.
[25] S. Carrettin, McMorn, Johnston, K. Griffin, G. J. Hutchings, Chemical Communications, 696, 2002.
[26] S. Carrettin, McMorn, Johnston, K. Griffin, C. J. Kiely, G. J. Hutchings, Physical Chemistry Chemical Physics, 5, 1329, 2003.
[27] S. Carrettin, McMorn, Johnston, K. Griffin, C. J. Kiely, G. A. Attard, G. J. Hutchings, Topics in Catalysis, 27, 131, 2004.
[28] L. Prati, M. Rossi, Journal of Catalysis, 176, 552, 1998.
[29] F. Porta, L. Prati, M. Rossi, S. Coluccia, G. Martra, Catalysis Today, 61, 165, 2000.
[30] S. Biella, G. L. Castiglioni, C. Fumagalli, L. Prati, M. Rossi, Catalysis Today, 72, 43 2002.
[31] K. Musialskaa, E. Finocchiob, I. Sobczaka, G. Buscab, R. Wojcieszakc, E. Gaigneauxc, M. Zioleka, Applied Catalysis A: General, 384, 70, 2010.
[32] N, Dimitratos, A. Villa, L. Prati, Catalysis Letters, 133, 334, 2009.


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