PUBLICIDADE
CREMER2024 CREMER2024
003

Lenha na fogueira


Edição de Fev / Mar 2008 - 15 fev 2008 - 11:33 - Última atualização em: 17 dez 2012 - 09:17
O aumento da produção de biodiesel reacendeu a discussão sobre a liberação de carros de passeio a diesel no Brasil – hoje proibidos de serem comercializados em território nacional.

Raquel Marçal, de Curitiba

O Brasil produziu em 2007 mais de 24 mil e 700 carros de passeio com motores a diesel, segundo dados da Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Todos para exportação, já que nenhum deles poderá circular pelas ruas do país. A explicação está em uma portaria do antigo Departamento Nacional de Combustíveis (DNC), publicada na época em que a crise internacional do petróleo assombrava o mundo. Era 1976 e, por causa da crise, o governo brasileiro passou a subsidiar o diesel e autorizou o uso apenas para caminhões, picapes, utilitários e outros veículos com peso superior a uma tonelada. Em 1994, uma nova portaria do DNC manteve a proibição.

Mas a entrada em vigor do B2 deu novo fôlego à discussão sobre a possibilidade de permitir que o diesel – agora com a mistura de biodiesel – abasteça os carros de passeio do país. Paraalguns especialistas, a limitação do combustível a caminhões e utilitários já não faz mais sentido. “Na época da portaria nós importávamos 90% do diesel que consumíamos, hoje estamos importando 7%”, argumenta o pesquisador Miguel Dabdoud, do Laboratório de Desenvolvimento de Tecnologias Limpas (Ladetel), da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto.

Outra vantagem seria a maior eficiência de um motor a diesel comparado a um a gasolina de igual tamanho – o primeiro é de 20 a 40% mais econômico, segundo o Diesel Tecnology Forum. O consumo menor acaba resultando também em menos gases poluentes jogados na atmosfera. “O diesel é o combustível que tem o menor consumo energético, seria fantástico para o Brasil”, defende José Edison Parro, presidente da Associação de Engenharia Automotiva (AEA). Segundo Parro, um dos fatores que motivou a proibição nos anos 70 – os motores diesel poluíam demais – também já não procede. “Hoje, os veículos leves a diesel têm tecnologia avançada, os níveis de emissões e de ruído são muito baixos”. E agora eles contam com a obrigatoriedade de uma mistura de biodiesel de 2%.

Testes positivos

Além da diminuição das importações de petróleo e do avanço tecnológico dos motores a diesel, os resultados de experimentos feitos no país com veículos rodando com misturas de biodiesel jogam a favor de uma mudança na lei. Um dos mais adiantados vem sendo realizado desde 2006 pelo Ladetel, que testa carros das marcas Peugeot e Citroën com sistema de injeção eletrônica.

O Peugeot é fabricado na Argentina e o Xsara, na fábrica da Citroën em Porto Real (RJ). Na primeira fase dos testes, encerrada em julho de 2007, um Peugeot 206 e um Xsara Picasso rodaram 200 mil quilômetros abastecidos com B30 (mistura de 30% de biodiesel ao diesel mineral). A cada 20 mil quilômetros os veículos foram submetidos a provas de rendimento, consumo, potência, torque e emissões, e passaram com louvor.“Houve redução significativa de dióxido e monóxido de carbono e de hidrocarbonetos totais não queimados, sem perda de performance”, afirma o pesquisador Miguel Dabdoud, responsável pelos testes.

Os bons resultados foram atestados na França, onde os motores dos carros foram abertos. “Não houve problema nenhum, nem nos filtros”, comemora Dabdoub. O sistema de injeção eletrônica, uma grande preocupação da equipe, também reagiu bem. “Existia uma dúvida muito grande no mundo todo sobre o que aconteceria com veículos utilizando biodiesel em injeção eletrônica. Chegamos à conclusão de que não havia problema algum”, comemora Dabdoub.

Os testes agora estão na segunda fase e envolvem seis veículos – além do 206 e do Xsara entraram modelos Berlingo e Partner. Os automóveis estão rodando com biodiesel feito não só de óleo de soja, como na primeira etapa, como também de dendê e de uma mistura de 75% de óleo de soja e 25% de óleo de mamona, todos com biodiesel fabricado pela rota etílica. “Com essa mistura de soja e mamona nós conseguimos atender aos padrões de lubricidade e viscosidade da norma européia”, garante Dabdoub. Cada veículo já rodou 20 mil quilômetros e todos foram aprovados nos testes preliminares, que avaliaram, entre outros itens, emissões, óleo lubrificante e filtros.

Sinal verde

Outro experimento que vem apresentando resultados positivos é feito em Curitiba, no Centro Brasileiro de Referência em Biocombustíveis (Cerbio), ligado ao Instituto de Tecnologia do Paraná. Lá os pesquisadores testam um Golf Turbo Diesel ano 2001, que desde 2002 roda abastecido com uma mistura de B20. O carro, que é um dos modelos a diesel da Volkswagen fabricados no Brasil para o mer- cado externo, já percorreu 120 mil quilômetros e tem alcançado níveis excepcionais nos quesitos emissões e consumo.

Segundo o engenheiro mecânico Bruno Pessuti, do Cerbio, as emissões de Nox, que tendem a aumentar quando se utiliza o biodiesel, estão abaixo do limite de 1 g por milha fixado pela norma americana (US-FTP75). “Com o B20, a média foi de 0,7 g por milha”, afirma. E o carro ficou também mais econômico. O consumo médio do veículo abastecido com B20 é de 12 quilômetros por litro, na cidade, contra 15,2 quilômetros por litro do carro na estrada. De acordo com Pessuti, até agora houve um único defeito. A vida útil do filtro de combustível foi reduzida à metade e a peça teve de ser trocada aos 15 mil quilômetros. “Pode ser pelo fato de o filtro original não ter sido projetado para biodiesel”, cogita. “Mudamos para um filtro de mercado e ainda estamos analisando, mas o novo tem se mostrado mais robusto”, diz. Os testes vão terminar quando o veículo chegar aos 160 mil quilômetros rodados, meta prevista para o final de 2008.

Sinal vermelho para o Brasil

Apesar do envolvimento de montadoras nos testes, não há indícios de que o setor automotivo tenha interesse na liberação dos carros a diesel. O grupo PSA, que reúne a Peugeot e a Citröen, tem 800 veículos rodando com B30 na Europa, e garante seus motores até essa porcentagem de mistura desde que o biodiesel siga as normas européias. Mas a empresa é cautelosa ao opinar sobre o tema no Brasil. “A pesquisa com biodiesel no Brasil é, para a empresa, uma ação de responsabilidade social”, resume Rodrigo Junqueira, diretor de Relações Externas da PSA Peugeot Citroën do Brasil.

O executivo explica que a intenção é aplicar os resultados obtidos aqui na Europa. “Optamos pelo B30 por ser a mistura ideal para testar nossos veículos na Europa sem a necessidade de qualquer adaptação no motor.” Segundo Junqueira, os testes brasileiros também são importantes para testar os motores com o biodiesel nacional, diferente do europeu em dois aspectos: em relação à matéria-prima e ao processo de fabricação (etílico, no caso do biodiesel usado pelo Ladetel).

Disputa diesel X álcool

A Anfavea confirmou o pouco interesse do setor automobilístico no debate. Segundo a assessoria de imprensa da entidade, “esse assunto nunca esteve na agenda.” Mas com tantas aparentes vantagens do diesel, por que o assunto não entra na pauta de discussões da indústria automotiva?

Para a Anfavea, a explicação é muito simples: os veículos leves brasileiros estão muito bem servidos pelo álcool. “Não há nenhum horizonte de se permitir o diesel em veículos leves. Seria um contra-senso do governo, que está estimulando o álcool”, declarou a instituição.

Mas para os defensores da mudança na lei, a competição entre as duplas diesel-biodiesel e gasolina- álcool não deveria existir. “A introdução do veículo a diesel não é o fim do veículo a álcool ou a gasolina”, pondera Miguel Dabdoub. “O consumidor tem o direito de ter a opção do veículo diesel”, insiste.

Para o presidente da AEA, José Edison Parro, alternativas energéticas nunca são demais. “Veja o que está acontecendo agora com o gás natural. Está faltando gás e criou-se essa confusão.” Já Bruno Pessuti, pondera que a liberação do diesel para veículos leves neste momento é muito difícil. “Teríamos de aumentar o consumo do diesel, a menos que utilizássemos B100,” acredita.

Além disso, ele teme que o combustível possa sofrer resistência dos motoristas. “O consumidor já está acostumado com a gasolina e com o álcool – que também sofreu resistências.”

Para Miguel Dabdoud, caso houvesse mudança, a lei deveria prever a introdução gradual do combustível e criar mecanismos para que o mercado limitasse naturalmente a adesão ao combustível. “Poderia haver uma tributação um pouquinho maior para o veículo a diesel”, sugere. “Assim só iria comprar quem realmente tivesse o melhor custo-benefício. Para quem roda muito, sairia mais barato.”

Também afirma que essa limitação seria importante pelo fato de que a liberação criaria a necessidade de aumentar drasticamente a produção de biodiesel. “Temos de estar conscientes de que precisamos de um volume maior de biodiesel, porque não existe tudo aquilo que o país precisa, apesar do que o governo diz.”

Crescimento mundial

Enquanto no Brasil o uso do diesel está restrito aos veículos com peso superior a uma tonelada, no resto do mundo eles circulam pelas ruas em quantidade cada vez maior. A mais recente estimativa da consultoria norte-americana J.D.Power, divulgada em 2006, mostra que a demanda global por carros de passeio a diesel deve quase dobrar até 2015 – passando de 15 milhões de unidades vendidas em 2005 para 29 milhões. Segundo a empresa, Europa Oriental, Estados Unidos e Canadá aparecem como os mercados de maior potencial de crescimento para os veículos leves movidos a diesel.

Só nos Estados Unidos, as vendas desses automóveis devem atingir 10% de participação na próxima década. Nada mal para um país onde os carros a diesel sofreram uma crise de popularidade ao longo dos anos 80 e 90. O cenário, no entanto, mudou há cerca de quatro anos quando começaram a chegar aos showrooms das montadoras veículos com tecnologias que melhoram a resposta dos motores, como o sistema de injeção de combustível Common- Rail, e equipados com filtros de partículas. No Salão de Detroit, realizado em janeiro, cerca de 20 novos carros, picapes e utilitários esportivos foram expostos e, pelo menos 13 deles – fabricados por 12 montadoras – chegarão ao mercado norte-americano ainda neste ano.

Um dos trunfos da indústria tem sido justamente o fato de oferecer modelos que ao mesmo tempo agradem ao consumidor e atendam às normas de controle de emissões, cada vez mais restritivas tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Em 2008 os norte-americanos poderão comprar os primeiros carros a diesel que atendem às mais rigorosas normas de controle de poluentes do país, adotadas nos estados da Califórnia, Massachusetts, Nova York e Vermont.

Dois desses modelos virão da líder mundial do mercado de veículos leves a diesel, a Volkswagen. A fabricante alemã planeja para abril o lançamento do Jetta e do novo Golf Variant, ambos equipados com o motor Clean TDI. Segundo a montadora, os carros também contam com dois sistema de purificação, desenvolvidos especialmente para o mercado americano, que reduz “em até 90%” as emissões de óxido de nitrogênio (NOx), um dos vilões do efeito estufa.

A estratégia das fabricantes no mercado norteamericano segue a conduta já adotada na Europa, onde segundo a European Automobile Manufacteres’s Association os veículos leves a diesel são 51,2% do total. Lá, as montadoras já precisavam quebrar a cabeça para entregar modelos que se encaixem nos índices máximos de emissões de poluentes.

A partir de 2009, entra em vigor o padrão Euro 5. No caso de veículos a diesel, a norma limita a emissão de Nox a 180 mg/km. O valor – 20% menor do que o estabelecido anteriormente na Euro 4 –, vai cair mais 80% a partir de 2014, quando passa a valer um padrão ainda mais rígido, o Euro 6.

Na terra, na água e no mar

Conheça as utilizações do biodiesel em motores ao redor do mundo.

França: as 24 Horas de Le Mans, uma das provas mais tradicionais do automobilismo mundial, terá na disputa de 2008 um protótipo equipado com motor a biodiesel. O carro foi desenvolvido pela equipe francesa Welter Racing e vai correr na categoria LPM2 para veículos de no máximo 3.400 cilindradas. O projeto teve a participação da Associação de Desenvolvimento de Combustíveis Agrícolas da França, país onde 70% dos carros de passeio são a diesel. A Audi, que com seu protótipo R10 tem dominado as corridas em Le Mans, também anunciou que neste ano o R10 usará um novo combustível da Shell, o BTL (Biomass to Liquid), descrito como uma versão avançada de biodiesel. Os testes feitos com o protótipo devem servir de base para a futura incorporação do BTL aos modelos de série da marca.

Estados Unidos: uma motocicleta movida a B100 bateu, em 2007, o recorde mundial para motos a diesel. A BMW R1150 RT, equipada com o motor turbodiesel BMW 3 de dois litros, chegou a 210,203 quilômetros por hora em testes. Os fabricantes apostam que a moto possa atingir 260 quilômetros por hora.

Inglaterra: um trem da empresa Virgin Trains abastecido com B20 começou a ser testado. A empresa pretende usar biodiesel em todos os seus trens e espera cortar as emissões em 14%.

Espanha: em 2008 o neozelandês Pete Bethune tentará pela segunda vez bater o recorde de volta ao mundo com o Earthrace, um barco movido a biodiesel feito de óleo de cozinha. Bethune, cuja primeira tentativa fracassou no ano passado, vai zarpar de Valência no dia 1° de março.

Estados Unidos: pesquisadores do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos tentam obter um biodiesel que possa ser utilizado como combustível em aviões. O desafio dos cientistas é desenvolver um biodiesel que não forme partículas sólidas a temperaturas abaixo de zero e eles já tiveram sucesso na faixa entre zero e -46° C. Em testes feitos no laboratório, o biodiesel foi capaz de fazer motores funcionarem em temperaturas de -15°C.