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A farra do boi


Edição de Dez / Jan 2008 - 14 dez 2007 - 17:52 - Última atualização em: 17 dez 2012 - 10:12
Mesmo sem incentivos fiscais do governo federal, o uso do sebo bovino desponta como uma das opções mais interessantes para a produção de biodiesel competitivo e em grande escala no Brasil.

Rosiane Correia de Freitas, de Curitiba

A gordura animal tem sido o patinho feio na história do biodiesel brasileiro. Isso porque até o momento o insumo não recebeu nem de perto a atenção que merece. O governo federal, por exemplo, deixou a matéria-prima em segundo plano no Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel. Porém, como na história infantil, com o decorrer do tempo o patinho que parecia fadado a permanecer um personagem secundário deve se tornar figura central na produção do combustível no Brasil.

Os hiatos do programa governamental nesse tema são muitos. O primeiro e mais importante é a falta de incentivo fiscal para o produtor. Quem produz biodiesel a partir de óleo vegetal pode receber benefícios importantes se completar os requisitos exigidos pelo governo. Já quem aposta na produção do combustível a partir de matéria-prima animal não conta com essas facilidades e precisa, por exemplo, pagar normalmente PIS/COFINS. Só esses dois impostos representam um adicional de R$ 0,22 no preço por litro de combustível ao final do processo – o que é, obviamente, uma desvantagem comercial significativa para o produtor. “O programa do governo tem falhas de planejamento e as gorduras animais são uma delas”, opina Cláudio Bellaver, pesquisador de nutrição e resíduos animais da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

Apesar do descaso federal pela matéria-prima, os especialistas acreditam que a gordura animal vai ter uma fatia importante do mercado de biodiesel, além de poder se transformar no elemento-chave para se produzir combustível renovável de origem biológica. “Quem sabe agora se entenda que os insumos de origem animal podem ser a salvação do biodiesel no Brasil”, diz Bellaver.

Com o óleo de soja a R$ 2,00, não há como vender biodiesel a R$1,90. Isso sem considerar os R$0,50 por litro relativos ao custo de fabricação, o que resulta em um preço final de R$ 2,50 para o biodiesel produzido com a oleaginosa. “Mais de 90% dos óleos vegetais produzidos no Brasil vêm da soja e o mercado dessa commodity encontra-se em alta”, explica o pesquisador Renato Roscoe, mestre em agronomia pela Universidade Federal de Lavras e doutor em Ciências Ambientais pela Wageningen University and Research Centre, na Holanda. “Por isso, a busca por gorduras animais tende a aumentar.” Os custos do sebo de origem bovina e de outras matérias graxas animais são tradicionalmente mais baratos do que osque derivam de produtos vegetais. Conclusão? “Se mudarmos os preços das matérias-primas, muda a história”, arremata.

O crescimento da procura pelo sebo para a produção de combustíveis foi um impulso extra para os pecuaristas – que tiveram a chance de somar ao preço final dos negócios algo que muitas vezes chegava a ser considerado um mero rejeito. “Até meados de 2006, o sebo vinha sendo comercializado a valores em torno de R$ 550,00 a tonelada. Ao final daquele ano, as cotações haviam dobrado e os preços permanecem em alta até hoje”, diz Roscoe. Mesmo com a elevação do custo, a diferença de valores ainda é significativa em favor da gordura animal. “Historicamente, o sebo tem um preço menor que os óleos vegetais”, afirma César Abreu, diretor industrial da Bertin Biodiesel. A indústria, instalada em Lins, no interior de São Paulo, afirma ter a maior capacidade instalada do mundo para produção de biodiesel de origem bovina.

Abreu, porém, alerta que nem tudo são flores. O sebo bovino é mais barato, mas exige um tratamento diferenciado, o que pode equilibrar os valores em relação ao material de origem vegetal. “É uma matéria-prima que tem particularidades quanto a recebimento, tratamento e manuseio. Uma usina que está preparada para trabalhar somente com óleos vegetais certamente terá problemas ao utilizar o sebo, pois é uma gordura sólida em temperatura ambiente, diferente da maioria dos óleos vegetais”, afirma. Para ele, a relação custo/benefício é melhor quando se usa o sebo, mas o investimento em instalação industrial nesse caso é superior – o que pode deixar o jogo empatado entre os dois lados.

Fartura

Uma das principais vantagens dos insumos animais é que, afinal de contas, a matéria-prima já está aí, totalmente disponível para uso. Segundo a Pesquisa do Abate de Animais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referente ao terceiro trimestre de 2007, o Brasil é o país com maior rebanho bovino comercial do planeta e é o segundo maior produtor de carne bovina, atrás apenas dosEstados Unidos. São 8,8 milhões de toneladas de carne produzidas por ano. O país também é o terceiro maior produtor de carne de frango, atrás de Estados Unidos e da China. E o quarto maior produtor de carne suína, com 2,7 milhões de toneladas por ano.

Ainda segundo o IBGE, a indústria da pecuária abate por trimestre 7,6 milhões de cabeças de gado no país – e estamos falando apenas de bovinos. Segundo Cláudio Bellaver, a cada animal abatido se pode retirar, em média, de 15 a 17 quilos de sebo.

Mas essa quantidade é apenas uma mínima parte do total da gordura animal que poderia estar disponível no mercado. “As estimativas não são exatas, pois as fontes de informação variam e todas são via cálculos de dados primários”, afirma Bellaver. Mesmo assim, o pesquisador da Embrapa arrisca um número nacional para o mercado. “Cerca de três milhões de toneladas/ ano é um dado aceitável de toda a produção animal do Brasil. Esse total engloba gorduras de primeira, comestíveis, óleos e gorduras para a indústria cosmética, rações animais e outras indústrias – sem contar as gorduras ácidas e não-desejáveis para a alimentação animal”.

Até hoje, o sebo era considerado um subproduto do boi, que servia principalmente para a indústria alimentícia e para a indústria de cosméticos. Os produtores de sabões são grandes beneficiários da gordura animal. “O setor saboeiro consome cerca de 500 mil toneladas de gorduras por ano”, afirma Zoé Morés, executiva da Associação Brasileira das Indústrias Saboeiras e Afins (Abisa). “Desse total, cerca de 450 mil toneladas por ano são de sebo bovino”, complementa.

Ou seja: 90% de toda a gordura que serve para produzir sabonetes, sabão em pó e outros produtos do gênero vêm dos bois do país. O surgimento da indústria do biodiesel como concorrente na compra dessa matéria-prima preocupa o segmento. “A Abisa está observando cuidadosamente a evolução do mercado de gorduras e, em particular, a evolução do mercado de sebo”, diz Morés. “A entrada de um novo consumidor dessa matériaprima, atuando em escala muito elevada, como é o caso do setor de combustíveis, deixa todos apreensivos”, desabafa.

Fome zero

Outro ponto positivo em favor do biodiesel animal é que não há Hugo Chávez que possa colocar defeito no processo. O presidente da Venezuela, seguido por diversos outros políticos em todo o mundo, levantou dúvidas sobre a validade de se usar produtos de origem vegetal em produção de combustíveis. A teoria dele é de que o novo uso da matéria-prima poderia aumentar preços e contribuir para o avanço da fome no Terceiro Mundo.

Tese favorável, evidentemente, a um país que depende brutalmente das receitas trazidas pelo petróleo e tem motivos de sobra para defender o seu produto de exportação. Mas experiências passadas acabam por servir de embasamento para a tese do venezuelano. “A competição foi visível no caso do álcool e açúcar no mercado global, levando ao desabastecimento de álcool no Brasil no início dos anos 1990 – o que proporcionou um completo descrédito dos clientes de álcool combustível na época”, afirma Cláudio Bellaver, da Embrapa. Mas o sebo do boi e os outros óleos de origem animal não sofrem este risco de “competição”, já que muito pouco desse material é hoje usado como insumo de produtos alimentícios no país e no mundo.

Quem aposta no sebo

A Bertin é a única indústria do país que atua exclusivamente hoje com a produção de biodiesel a partir de produtos de origem animal. No entanto, o insumo vem ganhando adeptos e parece cada vez mais fortalecido no mercado nacional. Uma pesquisa recente realizada pelo grupo BiodieselBR mostra que das 119 usinas comerciais instaladas ou em implementação no Brasil, 42 informaram que pretendem utilizar sebo entre suas matérias-primas. Isso não quer dizer que elas desejem deixar de lado as gorduras vegetais: a idéia é somar forças.

O caso da Bertin, que investiu R$ 42 milhões para ter uma indústria capaz de gerar 110 milhões de litros de biodiesel por ano, é bastante específico. A empresa já trabalhava com matéria-prima bovina para outros gêneros de produção. Com a chegada do projeto de biodiesel, o investimento necessáriofoi consideravelmente reduzido. Agora, com a obrigatoriedade da inclusão de 2% do combustível verde no diesel de petróleo a partir de 2008, a empresa paulista prevê um crescimento para o mercado.

O processo utilizado para produzir biodiesel a partir de gordura animal é basicamente o mesmo dos óleos vegetais: é a transesterificação. Trata-se da reação da gordura com um álcool, impulsionada pela presença de um agente catalisador.

No caso da Bertin, o álcool utilizado é o metanol. Como resultado, obtém-se biodiesel e glicerina. E como nesse mundo nada, ou quase nada, se perde, também a glicerina pode acabar tendo uma finalidade industrial. Se aproveitada, ela pode virar insumo aos segmentos farmacêutico, cosmético e químico.

Na Bioverde, a estratégia tem sido utilizar 30% de biodiesel feito de gordura animal e 70% de óleos vegetais (soja). Isso dá um resultado com bom custo e boa qualidade. Lá, eles venceram o desafio de adaptação dos tanques de produção para uma temperatura mais alta, para derreter o sebo animal. “Como o ponto de endurecimento é diferente, temos que trabalhar com aquecimento”, afirma José Pereira Júnior, da usina Bioverde, que fica em Taubaté, São Paulo.

Para os técnicos da usina, um dos problemas do mercado é que a indústria farmacêutica pega o melhor pedaço da gordura animal. Ao biodiesel, muitas vezes resta o material de segunda linha, com mais impurezas. Como os cosméticos têm contratos mais antigos e longos, essa situação deve demorar alguns anos para se resolver.

Tecnologia

A técnica usada no Brasil é importada da Europa, onde o sebo já é usado para produção de combustíveis. No caso da Bertin, os equipamentos foram implantados por uma empresa brasileira, a Dedini, a partir da tecnologia da italiana DeSmett Ballestra.

No entanto, é possível encontrar no Brasil tecnologia para produção desse tipo de combustível. A Unicamp, através de sua Agência de Inovação, já requereu quatro patentes de soluções desenvolvidas por seus pesquisadores para a produção de biodiesel de gordura animal.

Há algumas dificuldades extras envolvidas no processo, segundo os produtores especializados. Uma delas está no fato de se tratar de um produto sólido em temperatura ambiente. “Se durante o processo produtivo ocorre alguma parada na fábrica, corre-se o risco de as tubulações entupirem”, afirma César Abreu. “Dessa forma, temos que tomar todos os cuidados durante o processamento.”

Quando há a necessidade de parada na fábrica para manutenção, por exemplo, todas as tubulações e reatores têm que ser drenados, a fim de prevenir o endurecimento do sebo e posterior dificuldade do retorno da operação.

Nada que tire o sono de quem decidiu investir no biodiesel animal. E nada que chegue a desestimular quem já pensa em entrar no mercado. Afinal de contas, muito em breve, o percentual obrigatório de biodiesel no diesel de petróleo aumenta para 5%, necessariamente. E isso implica uma demanda de dois bilhões de litros de óleo renovável a mais por ano. Nesse novo quadro que se apresenta, o biodiesel de gordura animal pode ter papel decisivo no panorama do biodiesel nacional.

Três idéias para o futuro da gordura animal

O pesquisador de nutrição e resíduos animais Cláudio Bellaver, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), considerado um dos principais estudiosos dessa matéria-prima no país, sugere três ações fundamentais para o governo federal garantir o futuro da produção de biodiesel de gordura animal no Brasil. Conheça as principais orientações de Bellaver sobre o assunto:
1. Incluir nas estratégias governamentais de estímulo à bioenergia e no Plano Nacional de Agroenergia um item específico para as gorduras animais;
2. Estimular e financiar projetos de pesquisa e de desenvolvimento que tratem de: - preparação tecnológica (pré-processos) das gorduras animais para iniciar o processamento na planta de biodiesel; - processos de produção de biodiesel e seus respectivos parâmetros, ajustados para as gorduras animais; - desenvolvimento de novos produtos a partir de subprodutos do biodiesel e de subprodutos da indústria de farinhas e gorduras animais; - melhoria da qualidade das gorduras animais, definindo parâmetros analíticos e estimulando a classificação baseada em variáveis laboratoriais e análises de risco sanitário.
3. Promover o financiamento do setor, com facilidades para o retorno de investimentos na produção de biodiesel a partir de gorduras animais.

Os reis do gado

As regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul devem ser as maiores beneficiadas com a produção de biodiesel de origem animal no Brasil. Quando pensou em regular o uso dos insumos vegetais, o governo federal deu prioridade ao Norte e Nordeste, regiões mais pobres do país. No caso da gordura animal, a realidade é outra.

O sebo bovino deverá vir dos estados onde está hoje a maior parte do gado nacional. Pela ordem, os maiores rebanhos do país estão em Mato Grosso, São Paulo e Mato Grosso do Sul. Juntos, esses estados são responsáveis por mais de três milhões de cabeças de gado abatidas por trimestre no país, ou 40% da produção total brasileira.

No caso dos óleos de frango e de porco, os maiores produtores são os estados do Sul. Apenas a ordem de classificação varia um pouco. Para o frango, Santa Catarina lidera, com Rio Grande do Sul em segundo e Paraná em terceiro. Juntos, eles têm 69,64% da produção nacional. Já o Paraná é o mais importante na produção de porcos, seguido de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul completando o pódio. O Sul é produtor de 61,08% do total de suínos do país.