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Regulação

Preços precisam de mais transparência, diz diretor da ANP


Valor Econômico - 15 abr 2019 - 10:03

Os preços do óleo diesel praticados atualmente pela Petrobras estão mais próximos das referências internacionais do que estavam em 2016. "Hoje [o preço] não está distorcido", disse ao Valor Décio Oddone, diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Mesmo assim, Oddone lidera uma cruzada por maior transparência nos preços dos derivados (diesel e gasolina) divulgados pela estatal e por outros agentes da indústria de petróleo e gás.

A discussão sobre transparência, diz ele, se acelerou depois da greve de caminhoneiros, em maio do ano passado. Oddone, que trabalhou por 30 anos na Petrobras e foi responsável pelos negócios da petroleira na América Latina, considera, porém, que a forma como a estatal divulga os preços da gasolina e do diesel não é a mais apropriada. "É no mínimo incompleta", afirmou. Para ele, o modelo concentrador da indústria de petróleo nacional, nas mãos da Petrobras, criou um longo período de desalinhamento nos preços ao longo dos últimos 20 anos. Oddone considera ainda que a única maneira de reduzir preço de combustível de forma estrutural no Brasil é seguir a paridade de importação. Ele afirma, no entanto, que a atual discussão sobre reajuste do diesel evidencia apenas uma parte do problema, pois a commodity representa cerca de 50% do preço. A parcela restante corresponde a outras variáveis importantes, como as margens da distribuição e da revenda e os impostos.

Nesse contexto, ele é favorável a uma maior competição no segmento de distribuição. Leia a seguir os principais trechos da entrevista, concedida ontem, no Rio.

Valor – Como avalia a intervenção do governo depois de a Petrobras ter anunciado um aumento de 5,7% no preço do diesel?

Décio Oddone – Acho que é um episódio isolado e não senti em nenhum momento, de todos os contatos que tive com o governo desde a época da transição, nenhum viés intervencionista, nenhuma intenção de não praticar regras de mercado, nenhum sinal de descontinuidade na adoção de práticas modernas, competitivas, abertas. Então acho que foi episódio isolado.

Valor – O mercado interpretou como sinal de intervenção...

Décio Oddone – O mercado interpreta essas questões com volatilidade. O que acontece no Brasil é que estamos em uma transição que é a maior transformação que já vivemos no setor de petróleo e gás. Não canso de repetir, mas vou dizer de novo: quando a Petrobras foi criada, nos anos 1950, o Brasil era um país rural e agrário. Somente 36% da população moravam nas cidades e praticamente não havia atividade econômica a não ser a agropecuária. Ao longo de mais de 60 anos em que a sociedade brasileira se modernizou e o Brasil industrial se criou, a indústria de petróleo sempre foi a Petrobras do monopólio. No Brasil, tivemos [nos anos 1950] a famosa campanha de "O petróleo é nosso!". Então isso sempre esteve latente nas discussões sobre petróleo. E nunca conseguimos, efetivamente, enfrentar esses debates de forma pragmática. Até que chegou um ponto em que esse modelo que praticamos durante décadas fracassou rotundamente.

Valor – Um modelo concentrado?

Décio Oddone – Um modelo concentrador em que a Petrobras era a indústria de petróleo e gás no Brasil, em que a Petrobras fazia tudo, tinha as refinarias, operava campos maduros de um barril por dia e o pré-sal com poços de 50 mil barris/dia; uma empresa que está na distribuição e que concentra todas as atividades do gás natural. Esse modelo fracassou. A Petrobras não tem recurso para fazer tudo. As oportunidades de investimento no setor de petróleo e gás no Brasil foram muito além da capacidade de investimento de uma empresa só por maior e mais emblemática que ela seja. Nesse modelo vimos a Petrobras [ser] incapaz de explorar os recursos de petróleo e gás de maneira plena. A Petrobras não tem capacidade financeira e nem operacional para tocar todo o pré-sal sozinha; não tem recursos nem condições de investir mais no parque de refino. Somos importadores de derivados porque falta capacidade de refino, nossa indústria de gás é incipiente. Os preços [dos combustíveis] foram liberados em 1º de janeiro de 2002. Mas esse modelo bateu na parede em 2014, quando a Petrobras enfrentou a crise da Lava-Jato e da alavancagem.

Valor – Apesar de a prática de paridade dos preços com o mercado internacional ter começado em 2002, as intervenções nos preços têm sido permanentes. Por quê?

Décio Oddone – Há dificuldade de fazer uma transição para um modelo aberto [de competição] porque trata-se de um processo. Não vai ser em linha reta, vamos ter percalços como foi com a greve dos caminhoneiros no ano passado e, quanto mais distorção tiver no mercado, mais percalços vamos ter.

Valor – Na prática, a liberação dos preços dos combustíveis em 2002 significou o quê?

Décio Oddone – Em 1997, a Lei do Petróleo [9.478/97] foi aprovada e o monopólio formal da Petrobras deixou de existir. Foi criada a ANP. A Petrobras vendia derivados no Brasil a preços controlados pelo governo e a diferença era colocada na conta petróleo, uma conta mantida entre a Petrobras e o Tesouro. Quando acabou o monopólio e a Petrobras deixou de ser a única empresa autorizada a operar no Brasil, houve um período de transição que foi de 1998 até 2002 em que os preços ainda foram administrados pelo governo de forma oficial. Em 1º de janeiro de 2002, os preços foram liberados [passando a ser determinados pela Petrobras]. Naquele mesmo ano, antes da eleição, a Petrobras deu um aumento para o GLP e o governo interveio.

Valor – Ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso?

Décio Oddone – Isso. A liberdade de formação de preços da Petrobras durou meses. Depois tivemos os governos Lula e Dilma em que não houve plena aderência dos preços dos derivados ao mercado internacional. Quando olha em retrospectiva os últimos 20 anos, teve na esmagadora maioria do tempo os preços desalinhados com o mercado internacional, especialmente em três períodos.

Valor – Quais foram?

Décio Oddone – Entre 2008 e 2010, os preços da gasolina e do diesel no Brasil ficaram superiores aos do mercado internacional porque quando houve a crise financeira internacional, em 2008, os preços do petróleo no mundo caíram. No Brasil, a Petrobras manteve os preços [inalterados]. Naquele período, a Petrobras cobrou preços maiores do que o mercado internacional. Quando veio a recuperação econômica global por volta de 2011, os preços do petróleo se recuperaram e chegaram a subir em níveis altos. E a Petrobras também não mexeu nos preços. Os preços do petróleo no mercado internacional subiram e aqui no Brasil ficaram bem abaixo do mercado. O controle de preços prejudicou muito a indústria de etanol; muitas usinas quebraram. O que vivemos foi um conjunto de intervenções e um longo período de prática de preços desalinhados com o mercado internacional. E isso foi feito de forma anticiclíca: nos momentos de maior crise econômica, estávamos com os preços muito acima [do mercado internacional]. Preços de gasolina acima significa inflação acima, juro acima; diesel acima do mercado internacional significa impacto no PIB [Produto Interno Bruto], na geração de emprego, na atividade, nos preços. E quando estávamos em período relativamente positivo, no começo do governo Dilma, os preços estavam muito abaixo do mercado, alavancando a atividade.

Valor – A venda de diesel abaixo dos preços de referência de importação estimula a economia, mas qual é o efeito a longo prazo?

Décio Oddone – Qual é o problema desse modelo em que tem a Petrobras como a grande fornecedora? De 2011 a 2014, quando os preços estavam muito abaixo do mercado internacional, só a Petrobras fornecia, só ela importava, só ela assumia aquelas perdas. A Petrobras foi prejudicada, assim como os produtores de biocombustíveis, que precificam seus produtos de acordo com os preços de derivado de petróleo no Brasil. Quando a Petrobras pratica preços acima dos preços internacionais todos os outros agentes importam também. A Petrobras se beneficia, mas os outros importadores também se beneficiam. Então é um modelo em que o prejuízo é socializado com a Petrobras e o lucro é compartilhado com os agentes privados. Precisamos perseguir o preço de paridade de importação porque, como fomos incapazes de atrair os investimentos necessários para que tivéssemos [mais] refino no Brasil, somos importadores. E ao sermos importadores, se não tivermos preço que permita a importação, não vamos ter abastecimento, vai faltar produto. Quem vai comprar lá fora para importar com prejuízo? Agora esses preços não podem ser abusivos, 20%, 30%, 40% acima do mercado internacional, como já tivemos algum tempo atrás. Por isso houve boom de importação. Precisamos que haja preços seguindo a paridade, mas de forma justa, competitiva e transparente. Nessa situação haverá abastecimento e estímulo para investimentos. Isso é importante porque hoje o Brasil exporta um milhão de barris de petróleo por dia e importa 500 mil, 600 mil de derivados. Gastamos dinheiro para vender nosso petróleo na China, pagando o frete, e gastamos também com frete para trazer gasolina e diesel dos Estados Unidos. A única maneira de estruturalmente reduzir preço dos combustíveis no Brasil é aproveitar que vamos ser um grande exportador de petróleo, mesmo continuando a importar derivados, para criar condição de preços atraentes [no mercado doméstico] para atrair investimentos e, havendo capacidade de refino excedente, sairmos da paridade de importação. A paridade é o preço que [o agente] precisa praticar para comprar produto nos Estados Unidos, por exemplo, colocar frete, seguros, perdas, armazenagem e poder vender aqui [no Brasil]. É um sobrecusto sobre o preço de origem. Só vai ter possibilidade de reduzir estruturalmente os preços dos combustíveis se tiver preço de paridade de importação.

Valor – Por que é difícil calcular os preços praticados pela Petrobras?

Décio Oddone – Os preços divulgados nos Estados Unidos são preços de referência. As agências que fazem a precificação, cada uma tem seu modelo. Quando se diz que o preço da paridade de importação do diesel no porto de Santos [SP] está em R$ 2 [por litro], isso é uma referência. Toda a discussão eterna no Brasil sobre preço do combustível se dá em uma parcela pequena do preço. No diesel, a commodity em si representa cerca de 50% do preço na bomba. O resto é margem de distribuição e de revenda. Toda essa discussão [do reajuste] se limita ao preço no produtor [na refinaria] ou no importador, que compete ou complementa o refino. Uma análise completa tem que passar pelo resto da cadeia [de suprimento] e pelos impostos.

Valor – Tem que olhar o problema de forma mais ampla, é isso?

Décio Oddone – Margem de venda, margem de distribuição, impostos. Os impostos no diesel são federais e foram praticamente duplicados em julho de 2017, quando governo aumentou o PIS/Cofins no etanol, na gasolina e no diesel para arrecadar R$ 11 bilhões por questão de ajuste fiscal. Foi um aumento significativo nos preços dos derivados, pontual, por aumento de imposto.

Valor – Mas que permaneceu.

Décio Oddone – O diesel, considerando o preço médio do Brasil de um mês atrás [semana entre 24 de fevereiro e 2 de março], era de R$ 3,44 por litro, sendo R$ 1,80 a commodity. O resto são margens e impostos. Se olhar o ICMS, os governos estaduais definem o chamado preço de pauta. É um percentual do valor da bomba. No diesel, é 12% a 25% do preço, a depender do Estado. Esse imposto funciona como um alavancador da volatilidade.

Valor – Por quê?

Décio Oddone – Porque se sobe o preço do diesel, subindo o preço na bomba, o governo do Estado muda o preço de referência e, como a alíquota é de 12% a 25%, o percentual é calculado sobre um preço maior. Esse formato de cálculo do ICMS alavanca a volatilidade para cima e para baixo. É ruim para o consumidor e é ruim para os Estados porque torna volátil a arrecadação.

Valor – Qual é a solução?

Décio Oddone – A solução é complexa, mas seria ter um valor fixo [de imposto estadual], independentemente da variação da commodity. Temos que entender que commodity a gente não controla. Não tem país formador de preço. É como trigo, soja, minério de ferro, cobre. Se fala de estabilização de preços de combustível via Cide. Eu sou contra porque dá sinais que interferem no funcionamento normal da economia.

Valor – Uma de suas bandeiras tem sido a busca por um mercado mais competitivo na distribuição de combustíveis. De que forma esse objetivo pode ser alcançado?

Décio Oddone – Nosso modelo de abastecimento é engessado, cria barreiras de entrada e limita a competição porque determina que todo produto precisa passar pelo distribuidor. Uma usina de etanol, uma refinaria, um importador não pode vender o produto diretamente para um pequeno distribuidor retalhista, que vende para pequenas frotas. Isso limita a competição e cria reserva de mercado. Precisamos criar as condições para que o mercado seja [mais] competitivo.

Valor – Como esse tema vai evoluir dentro da ANP?

Décio Oddone – Depois da greve dos caminhoneiros [em maio de 2018] houve discussão [na agência] sobre o preço da gasolina. Houve subvenção [do governo] para o diesel, mas a gasolina continuou com regras vigentes. O que aprendemos é que não era adequado estabelecer periodicidade mínima para os reajustes, nem patamar mínimo de reajustes e deixar o mercado funcionar com transparência. A forma como a Petrobras divulga preço é no mínimo incompleta para dizer uma palavra suave. A Petrobras divulga o valor médio aritmético dos cerca de 35 pontos em que ela entrega derivados de petróleo no Brasil para as distribuidoras sem considerar o volume praticado nesses pontos. A partir de outubro, a Petrobras passou a divulgar os preços praticados em cada um desses 35 pontos, na média mensal, com defasagem de um mês.

Valor – Passou a divulgar o preço real praticado?

Décio Oddone – Mas com um mês de defasagem e média mensal. Em maio de 2018, na greve dos caminhoneiros, o preço médio do mês foi R$ 2,16 por litro de diesel na refinaria. A percepção era de que no Brasil todo o preço era esse. Mas naquele mês o preço variava de R$ 2,05 por litro a R$ 2,35 por litro. Há uma diferença de 15% no preço na refinaria entre o ponto mais barato e o ponto mais caro. A ANP passou a publicar a partir de novembro preço de referência de importação do que seria a paridade de importação, calculada pela agência Platts, colocada no Brasil. Eles passaram a publicar o preço na média semanal da gasolina e do diesel em Itaqui (MA), Suape (PE), Aratu (BA), Santos (SP) e Paranaguá (PR) e do GLP em Suape e Santos. Como a Petrobras passou a publicar os preços dela em média mensal nos 35 pontos a partir de outubro, a partir de novembro conseguimos fazer uma comparação entre preços da empresa e de paridade para a gasolina. Para o diesel, só [foi possível fazer o cálculo] a partir de janeiro porque até dezembro tinha a subvenção do diesel que acabou em janeiro.

Valor – Qual é a conclusão?

Décio Oddone – Vemos uma convergência dos preços mais perto da paridade [de importação] e ela está mais presente onde tem mais competição, onde se está mais próximo dos mercados fornecedores [EUA], que é no norte do Brasil.

Valor – A ANP trabalha em uma resolução para dar mais transparência aos preços. Como está essa discussão?

Décio Oddone – Estamos conversando com as três agências formadoras de preços – Platts, Argus e Opis – para ter o preço de referência de paridade nos 35 pontos de entrega no Brasil. Com isso, se terá percepção se os preços estão muito ou pouco diferentes das referenciais internacionais.

Valor – ANP pode exigir que a Petrobras seja mais transparente?

Décio Oddone – Uma das discussões dessa resolução é tornar obrigatória, pela Petrobras e outros agentes, a divulgação dos preços nos 35 pontos e não a média aritmética ou como a Petrobras voluntariamente faz hoje: a média mensal com defasagem de um mês. Precisamos de competição. Enquanto a Petrobras for monopolista no refino, ela é formadora de preço. Precisamos que o preço seja formado pela competição, só assim o preço será justo e não como foi nos 20 últimos anos em que houve distorções grandes, ora para cima ora para baixo. É positivo que Petrobras venda refinarias, que haja competição no refino, investimentos, outros atores, e aí, tendo competição, a sociedade vai entender a formação de preços e legitimar o modelo. O modelo de interferência permanente, em que hora paga muito acima, hora; muito abaixo, ninguém entende e ninguém legitima.

Valor – A intervenção da semana passada pode dificultar a venda de refinarias da Petrobras?

Décio Oddone – Quero ser otimista. Acredito que os 60 anos de experiência de mercado concentrado nos deram evidencias suficientes de que esse modelo não funciona. Se formos capazes de sair desse debate com convicção clara que a Petrobras [precisa] vender refinaria e ter transparência na formação de preço, damos passo gigantesco. Se olhar preços praticados pela Petrobras e comparar com preços internacionais, percebe que estão muito mais próximos dos preços internacionais do que estavam em 2016. A discussão sobre transparência se acelerou com greve de caminhoneiros e estamos vendo os primeiros resultados. Hoje [o preço] não está distorcido. Isso não era possível dois anos atrás. Foi possível fruto da discussão que tivemos depois da greve dos caminhoneiros. Se sairmos da discussão com a consolidação desse entendimento, que precisamos avançar para ter mercado competitivo, aí avançamos. A Petrobras diz que quer vender 50% da capacidade de refino, vamos imaginar que vai vender quatro ou cinco refinarias, então vai ter cinco seis atores. Qual é a chance de ter um mercado com intervenção com diferentes agentes operando?

Francisco Góes – Valor Econômico