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Décio Luiz Gazzoni

Terra em transe


Decio Luiz Gazzoni - 31 jan 2007 - 21:17 - Última atualização em: 09 nov 2011 - 19:23

Escrevo de Paris, onde participo da reunião do Painel de Energias Renováveis, da Academia Internacional de Ciências, da qual sou membro. Neste foro somos 13 cientistas, cada qual especializado em um segmento de energia renovável, embora todos tenham que entender de tudo, para que possamos bem cumprir nossa missão. Além de energia, estamos ficando especialistas em Mudanças Climáticas Globais, porque os câmbios estão ocorrendo em uma velocidade tal e com uma intensidade tão forte, que o tema ambiental está se tornando o principal “driver” das mudanças da matriz energética mundial. Queria denominar este artigo de Terra Febril, mas acho que o nosso planeta já está entrando em convulsão e a febre (aquecimento global) é só um dos sintomas. Embora no exterior, acompanho o clima em nosso país e vejo que as chuvas no Sul, Sudeste e parte do Centro Oeste não dão trégua e causam prejuízos humanos e materiais.

Estações trocadas
No resto do mundo não está muito diferente, pois, nos Estados Unidos o inverno inexistiu até meados de janeiro. Foi quando uma frente polar hiper intensa reduziu a temperatura em até 30oC, em menos de 24h, congelando praias e pomares da Califórnia e produzindo estragos até o Nordeste do país. As cerejeiras de Washington e do Central Park haviam florido com 4 meses de antecedência e agora as inflorescências queimaram com o gelo. Aqui em Paris estávamos a cálidos 12oC, ao contrário do tapete de neve que deveria se esperar para esta época do ano. De repente, na semana passada, formou-se a tempestade que atingiu a Inglaterra, a França e a Alemanha, matando (até o momento) 67 pessoas. E então, de repente, nevou em grande parte da Europa. O leitor pode argumentar que estas coisas acontecem. É verdade, cada evento, isoladamente, pode ocorrer, embora com baixa probabilidade. No entanto, é quase tão improvável quanto acertar sozinho na Mega Sena creditar a fenômenos naturais a seqüência de extremos, que se repetem continuamente, nos últimos anos.

Extremos climáticos
Os sintomas do descompasso estão nas notícias do dia a dia. Por aqui, ligo a televisão na RAI Uno e vejo uma reportagem sobre o Piemonte, norte da Itália, e sobre os Abruzos, próxima de Roma, tradicionais centros de esportes de inverno. Ambos declararam estado de calamidade natural, pois não há gelo (nem neve) nas pistas de esqui. Olhando as séries históricas, verifico que, desde o inicio do registro das temperaturas (há 150 anos), não havia na Itália um janeiro tão quente como 2007. Normalmente, são esperadas temperaturas abaixo de zero. No entanto, na semana passada as temperaturas eram: Aosta 22 graus, Turim 19, Milão 18, Cortina d'Ampezzo, 10 graus. O problema é só em janeiro? Antes fora! O mês de dezembro de 2006 também foi o menos frio de todos os dezembros em toda a série histórica. Problema só da Itália? Qual nada, em Moscou, com média histórica de -30oC, os termômetros estão marcando 6oC neste janeiro. Problemas localizados? Errado novamente, pois a Agência Européia do Meio Ambiente relata que, no século passado, os Alpes perderam 30% de suas geleiras.

Prejuízo à vista
Os europeus estão temendo pelo pior. Pela perda da qualidade de vida, perda de renda, de negócios, de emprego. Por exemplo, a prosseguir no ritmo do passado recente, até 2025 desaparecem as geleiras dos Alpes, inviabilizando os negócios baseados nos esportes e no turismo de inverno. Os negócios agrícolas também começam a ser afetados. Cultivos permanentes estão florescendo em pleno inverno, e a florada acaba se perdendo na primeira geada ou nevasca. A previsão dos climatologistas é que culturas como uva, maçã, pêra, pêssego ou cerejas, concentradas próximas ao Mediterrâneo, terão sua produtividade muito reduzida, nos próximos anos. As mesmas previsões indicam que a indústria turística deverá perder mais de 100 bilhões de euros anuais, pelas temperaturas insuportáveis esperadas para o verão, que deverá afugentar os turistas para o Norte da Europa. Até pouco tempo, alguém em sã consciência pensaria em procurar praias na Suécia, Noruega, Finlândia ou Inslândia?

Clima e Energia
A esta altura o leitor deve estar se perguntando: o que tem a ver o clima com nossa reunião de energias renováveis? Tudo a ver. As mudanças climáticas decorrem da alteração da composição química da atmosfera, pois o ponto de equilíbrio dos gases na atmosfera demorou centenas de milhares de séculos para estabilizar-se. Bastou um século e meio de uso de petróleo e carvão para pôr tudo a perder, pois dezenas de milhões de toneladas de carbono, estocadas há milhões de ano no subsolo, foram jogadas na atmosfera. Com isso, a capacidade de dissipação de calor para fora da camada atmosférica foi reduzida, gerando as mudanças climáticas. Mesmo que parássemos de usar estes combustíveis hoje, a queima realizada no passado já foi suficiente para provocar mudanças que se estenderiam pelos próximos 50 anos. Não é por outro motivo que a União Européia propõe-se a substituir 20% do petróleo por biodiesel e etanol, até 2020. O mesmo motivo que faz o presidente Bush propor a substituição de 15% da gasolina por etanol, em 10 anos, além de conceder fortes estímulos ao uso de biodiesel. Pelo andar da carruagem, dentro de uns 5 anos nem mesmo a queda do preço do petróleo vai interromper o incremento no uso de biocombustíveis, como biodiesel e etanol, pois a pressão política e social será muito forte. Cabe a nós aproveitarmos, adequadamente a oportunidade que, infelizmente, está sendo gestada por uma terra em transe.

Decio Luiz Gazzoni, o autor é Engenheiro Agrônomo, membro do Painel Cientifico Internacional de Energias Renováveis, da Academia Internacional de Ciências.

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