PUBLICIDADE
CREMER2024 CREMER2024
Biodiesel

Cooperativa-modelo criada pela Brasil Ecodiesel agoniza no Nordeste


Folha de S. Paulo - 19 nov 2006 - 08:20 - Última atualização em: 09 nov 2011 - 19:22

 Mamona não resiste à invasão da soja e põe em risco núcleo de agricultura familiar no semi-árido baseado no "biodiesel social'

No auge do mensalão, Lula visitou fazenda e prometeu uma "nova Petrobras'; hoje, colonos do Piauí colhem 70% menos que em 2005

Os discursos do presidente Lula nos últimos quatro anos apresentaram a mamona como a maravilha do "biodiesel social". Na vida real, o projeto-modelo da Brasil Ecodiesel para o combustível produzido com a semente da planta dá sinais de crise, pouco mais de um ano após a inauguração da usina da empresa em Floriano, no semi-árido do Piauí, a 240 km de Teresina. O óleo de soja é a principal matéria-prima da unidade.

O que seria o diferencial social do projeto, a Fazenda Santa Clara, núcleo de agricultura familiar mantido pela Brasil Ecodiesel em Canto do Buriti (a 260 km de Floriano e a 500 km de Teresina) para abastecer de mamona a fábrica, enfrenta queda na produção, protesto de colonos e denúncias de abusos por parte da empresa, incluindo trabalho escravo e infantil.

A Procuradoria do Trabalho no Piauí abriu dois inquéritos para investigar as denúncias, constatou irregularidades e vai propor uma ação civil pública contra a Brasil Ecodiesel. A empresa diz que sempre agiu corretamente (leia texto ao lado).

Lula esteve em Floriano em agosto de 2005 para inaugurar a usina, a primeira das seis que a empresa quer instalar. Visitou a Santa Clara. Era o auge da crise do mensalão. Comparou-se a Getúlio Vargas -a revolução do biodiesel, disse, seria como a criação da Petrobras.

"Se a gente não escolhesse a mamona, a gente iria ver o biodiesel sendo produzido da soja. Se fosse produzido da soja, ia beneficiar mais uma vez as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. E o Nordeste ia ficar abandonado", disse na ocasião.

Os fatos de hoje mostram que a "escolha" não foi suficiente para que o biodiesel da Brasil Ecodiesel no Piauí prescinda da soja, muito pelo contrário.

Sob a alegação de que cumpre "período de silêncio" imposto pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários), em razão da abertura de capital, a empresa negou-se a fornecer dados e vetou o acesso à usina de Floriano. Mas relatório à própria CVM aponta que sua matéria-prima principal é o óleo de soja (97,2%, contra 2,1% da mamona e 0,7% do algodão).

Políticos e técnicos de Floriano calculam que o óleo de soja represente cerca de 70% do que chega para ser processado na usina e que o de mamona dificilmente passa de 10%.

Funcionários da Brasil Ecodiesel ouvidos sob condição de anonimato confirmam o cálculo. Um deles diz que o interesse real na mamona é o "selo combustível social", sem o qual, por lei, as empresas não participam de leilões de biodiesel da Agência Nacional de Petróleo.

"No início a gente se empolgou e, de repente, cadê a mamona? Quando saí [da Brasil Ecodiesel], a produção com mamona estava baixa, e sei que caiu mais ainda", afirma o biólogo Enoque Ramos, funcionário da Brasil Ecodiesel por quase dois anos e que, quando secretário de Agricultura de Floriano, negociou a instalação da empresa.

Fazenda
Um dos motivos para o fracasso está na Fazenda Santa Clara. Numa área de 18 mil hectares, cedida pelo governo do petista Wellington Dias, a empresa instalou 630 famílias, em 19 células de produção. A cada uma foi cedido um lote, do qual 7,5 hectares são para o plantio de mamona, e uma casa. Há promessa de, após dez anos, terem a posse definitiva.

Hoje, o projeto vive sua pior fase. Não há dado oficial, mas levantamento com colonos de três diferentes células mostra que, neste ano, houve queda de cerca de 70% na safra. Os motivos da queda, dizem, são equívocos da empresa no manejo do solo e na época do plantio.

Os colonos não têm relação de trabalho com a empresa. Há os chamados "contratos de parceria", um relativo à posse da terra, outro, anual, referente à safra. As famílias vendem antecipadamente a mamona que produzem e recebem por isso R$ 160 por mês -o preço do quilo é fixado pela empresa, que desconta da remuneração 30% do plantio, feito por seus técnicos. A lavoura e a colheita ficam a cargo dos colonos.

Esse vínculo gerou denúncias de uso de trabalho escravo e infantil e a investigação do Ministério Público. O primeiro inquérito foi arquivado sob condição de a empresa se ajustar, mas auditoria subseqüente levou a autuação da empresa.

Outro lado

Empresa nega irregularidade em fazenda

A Brasil Ecodiesel nega irregularidades. O diretor de Desenvolvimento Humano e Social da empresa, Paulo Coutinho, classificou como "incidentes pontuais" os casos de trabalho infantil na fazenda Santa Clara e disse que os colonos colocaram os filhos na lavoura.

Segundo ele, há no contrato de parceria com os agricultores uma cláusula de que não pode haver trabalho infantil. "O que podemos é aumentar a orientação educacional, o que está sendo feito. Esse tipo de denúncia não revela o esforço gigantesco que é feito pela educação e pela saúde no núcleo. A escola é o nosso xodó. Funciona em três turnos, e há cinco ônibus para os alunos."

Coutinho negou que o vínculo que a empresa mantém com os colonos configure trabalho escravo. "Temos um relacionamento profissional com eles, e nossa visão nada tem a ver com trabalho escravo. Pelo contrário, é de fortalecimento do trabalho, de parceria", declarou.

Segundo ele, foi criada dentro do núcleo uma delegacia do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Canto do Buriti "para fiscalizar qualquer coisa que possa estar fora da lei".

Em nota enviada à Folha, a Brasil Ecodiesel ratifica as declarações de Coutinho, afirma que "repudia veementemente as acusações" e diz que "cumpre rigorosamente as obrigações dos contratos firmados com os produtores rurais".

FÁBIO VICTOR