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Releilões: um bilhão de reais!


Edição de Dez 2011 / Jan 2012 - 15 dez 2011 - 15:43 - Última atualização em: 09 mar 2012 - 17:50
A divulgação de dados sobre os releilões de biodiesel mostra que a Petrobras tem faturado alto. Ou melhor, muito alto

Rosiane Correia de Freitas, de Curitiba

Comissão é o valor cobrado por um intermediário na realização de uma operação de compra e venda pelo trabalho de unir aquele que quer comprar àquele que quer vender, ajudando na nem sempre fácil negociação entre as partes. A comissão recompensa o esforço muitas vezes ingrato de diplomacia, que garante o sucesso da operação e vantagens para os negociantes.

Há negociações que são complexas. A compra de um imóvel, por exemplo, envolve tantos fatores que pouca gente reclama de ter de pagar até 7% do valor da operação ao vendedor, uma vez que ele se encarrega de anunciar o bem, levar potenciais compradores para visitar o local, negociar a venda e, principalmente, coordenar os aspectos burocráticos da negociação – como, por exemplo, o tempo de desocupação do imóvel e as condições de pagamento.

No setor do biodiesel, no entanto, essa lógica parece não estar em funcionamento. Dados divulgados pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) mostram que a Petrobras, muito embora não precise ir atrás do comprador e do vendedor do biodiesel, ou transportar o produto no processo de venda, está recebendo uma comissão que fica entre 5% e 7% do valor total negociado na operação. Os detalhes dessa história você confere abaixo.

Passo a passo

A venda do biodiesel acontece em duas etapas. O combustível é produzido por dezenas de usinas no país e vendido em leilões que são promovidos a intervalos de tempo regulares pela ANP. Eles são realizados por meio do Comprasnet, um portal de internet criado pelo governo federal para centralizar licitações virtuais. Nessa primeira negociação, as usinas vendem o combustível.

Há também uma segunda rodada de negociações, que é feita pela Petrobras através do portal Petronect. É nesse estágio que o combustível comprado pela ANP é revendido para as distribuidoras, que precisam do biodiesel para adicionar ao diesel no teor obrigatório de 5% determinado por lei. Esse segundo momento é denominado releilão e é fundamental para o Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB), uma vez que é o que garante o acordo entre usinas e distribuidoras, tornando possível a chegada do biodiesel aos postos de combustíveis.

Contudo, tanto o leilão quanto o releilão não passam de operações eletrônicas, e não envolvem, em nenhum momento, a movimentação do produto em si. Só depois de concluídas as duas negociações é que as distribuidoras de combustíveis vão retirar o produto – e fazem isso diretamente nas usinas de biodiesel.

Na prática, o releilão de biodiesel representa o melhor dos mundos para o negociador. De um lado, a venda já está concretizada, com preços e condições já totalmente definidos. Por outro, os compradores já estão comprometidos com a aquisição, uma vez que precisam, por lei, cumprir a adição de biodiesel ao diesel mineral. E o único local no qual podem comprar é no releilão. Mesmo assim, parece que esse processo simples está sendo muito bem remunerado.

Dados divulgados pela ANP mostram que no 22º e no 23º leilões de biodiesel, a Petrobras embolsou uma remuneração total de R$ 177,5 milhões. Contatada por esta reportagem, que queria acesso a mais informações sobre o funcionamento do releilão, a estatal se limitou a emitir um comunicado através de sua assessoria de imprensa. Nele a empresa diz que o valor apurado é totalmente reinvestido no setor de biodiesel. E é só.

Transparência

Essa história toda começou a ganhar mais definição depois que a ANP passou a divulgar os resultados dos releilões da Petrobras. Isso só aconteceu no 22º leilão de biodiesel, em julho de 2011, depois de muita reclamação. Foi então que o Ministério de Minas e Energia determinou por meio de uma portaria que os dados da negociação deveriam passar a ser públicos. Antes, as distribuidoras e as usinas só sabiam dos valores que haviam negociado com a estatal, mas não tinham acesso ao panorama total da operação.

Em julho, depois da realização do 22º leilão de biodiesel, veio a surpresa: os dados divulgados pela Agência Nacional de Petróleo davam conta de que a Petrobras e a Refinaria Alberto Pasqualini (Refap) haviam vendido 597 milhões de litros de biodiesel por R$ 71,5 milhões a mais do que o negociado no leilão da ANP. Isso é o equivalente a 5% do valor total da operação. O prêmio aumentou no leilão seguinte, realizado em outubro, para R$ 106 milhões na negociação de 609,5 milhões de litros de combustível. O valor representa uma comissão de 7% de tudo o que foi negociado. Se a estatal resolver aumentar para 10% no próximo releilão, o governo e os consumidores terão que aceitar.

Esses valores causaram surpresa no mercado. Primeiro porque no Comprasnet, sistema usado na primeira fase de venda do biodiesel, não há cobrança de taxas administrativas. Segundo, porque de acordo com o economista e conselheiro do Conselho Federal de Economia, Daniel Poit, que já trabalhou no setor de licitações de empresas fornecedoras da Petrobras no Petronect, também não há cobranças de taxas nesse sistema. “Há só um valor cobrado no cadastro do fornecedor”, explica o economista.

Isso não significa que o sistema não tenha custo. “Como disse [o economista norte-americano] Milton Friedman, não existe almoço grátis. Há certamente custos na criação e manutenção do sistema”, continua Poit. No entanto, na operação de compra e venda em si, não há custos extras. Em outras operações promovidas no sistema Petronect, por exemplo, não há cobrança de comissão. “Os órgãos que utilizam o portal ressarcem o Ministério do Planejamento pelo uso, mas fora isso não há custos”, completa Poit.

Questionada sobre o assunto, a Petrobras informa que segue a legislação vigente. “A legislação que norteia o Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel determina que é função dos produtores e importadores de diesel, com participação relevante no mercado, a aquisição do biodiesel nos leilões da ANP para posterior comercialização aos distribuidores. A Petrobras, que busca atuar sempre com foco na sustentabilidade e de forma social e ambientalmente responsável, optou por adotar uma política de ressarcimento de custos e de melhoria contínua na execução dessa atividade”, informou a empresa na nota enviada a BiodieselBR.

A estatal diz ainda que investe qualquer excedente obtido nos releilões no setor de biodiesel. “Desde o início deste processo, a Petrobras reinveste qualquer receita adicional gerada em ações voltadas para o próprio PNPB, melhorando com isso a eficiência do programa”, afirma a nota. Quem controla isso? A própria estatal. A situação coloca a empresa em lugar ainda mais privilegiado no Olimpo das maiores empresas que produzem biodiesel no país.

Vantagem competitiva

Apesar dos dados só terem sido oficialmente divulgados a partir do 22º leilão de biodiesel, o presidente do Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e de Lubrificantes (Sindicom), Alisio Vaz, divulgou na Conferênca BiodieselBR 2011 os preços do biodiesel nos releilões desde o início da obrigatoriedade. Com este histórico, foi possível mensurar o tamanho da comissão que a Petrobras estabeleceu para si mesma. No primeiro leilão trimestral, a diferença entre o preço de compra do biodiesel e o de revenda chegou a 41 centavos por litro de biodiesel revendido, um acréscimo de 15% sobre o preço do biodiesel (veja gráfico). Se considerarmos que a estatal vendeu nos releilões apenas 90% do biodiesel que comprou (o resto é vendido diretamente às distribuidoras nas chamadas bases democráticas), o faturamento com a revenda de biocombustível nos quatro anos de programa ultrapassou a marca de R$1 bilhão. Você não leu errado, leitor; para ser mais preciso foram cerca de 1 bilhão e 69 milhões de reais. Considerando somente os leilões com entregas em 2011, a empresa ficou com mais de 350 milhões de reais.

Em 2010, a Petrobras fechou o ano com um lucro de R$ 35 bilhões. Segundo os cálculos acima, o négocio do releilão faturou R$ 275 milhões naquele ano. O volume chega a parecer um detalhe contábil. Mas a Petrobras Biocombustível (PBio), a subsidiária da petrolífera que é responsável pela produção de biodiesel e álcool, vendeu o equivalente a R$ 487,7 milhões nos leilões de biodiesel da ANP daquele ano. Então, descobriremos que o biodiesel gerou um faturamento de quase R$ 762,7 milhões para o grupo como um todo. É um bom bocado de dinheiro. No entanto, o dinheiro não parece ir para a PBio, pois, nos últimos dois anos, a subsidiária já amargou prejuízos de mais de R$ 200 milhões.

Para o economista Daniel Poit, a existência de excedente em negociações como a do releilão pode ter inúmeras conseqüências negativas. “A cobrança de taxa de serviço na negociação onera o produto, engessa o setor e reduz a possibilidade de inovação”, critica. É precisamente o contrário do efeito que um pregão eletrônico deveria ter.

Economia

O pregão eletrônico tem uma história curta, mas importante. Ele tornou-se obrigatório para a administração pública federal em 2005 com o objetivo de aumentar a transparência e reduzir custos nos processos licitatórios governamentais. Inúmeros estudos já indicaram a capacidade desse sistema em ajudar a cortar custos. É o caso, por exemplo, de um trabalho publicado em 2006 na Universidade Federal de Viçosa, que demonstra que, comparada com o pregão presencial, a modalidade eletrônica tem maior “potencial de economia”. Esta foi a conclusão dos autores Evandro Rodrigues de Faria, Marco Aurélio Marx Ferreira, Robson Zuccolotto e Vagner Henrique Moreira.

O secretário-geral e fundador da organização não governamental Contas Abertas, Gil Castello Branco, concorda. “Quando você amplia a possibilidade de participação de fornecedores, diminui o preço”. Além disso, explica, o sistema aumenta a transparência no processo. “No pregão eletrônico nós podemos localizar as informações dos participantes, dos lances. E isso é muito positivo”, completa Castello Branco.

Na Petrobras, o processo de implantação de sistemas eletrônicos de negociação foi semelhante. O Petronect, portal de negociações eletrônicas da companhia, foi criado em 2002 e passou a funcionar em 2003 na realização de processos licitatórios da estatal. O site permite que um maior número de empresas participe das concorrências.

Nada a declarar

Os números dos releilões da Petrobras despertaram a curiosidade dos envolvidos no setor de biodiesel. No entanto, apesar da pertinência do assunto, poucos se dispõem a comentá-lo publicamente. Inúmeras entidades procuradas por BiodieselBR não quiseram falar. Sabe-se, porém, que mudanças na forma de comercialização estão na pauta de negociações entre a indústria de biodiesel e o governo federal.

A Petrobras não atendeu ao pedido de entrevista da reportagem e preferiu responder aos questionamentos de BiodieselBR por meio de nota enviada à redação, cujo conteúdo já foi citado anteriormente. Sobre possíveis mudanças no releilão, a empresa informa: “A Petrobras tem discutido com vários agentes do mercado e está empenhada na busca de soluções tecnológicas e de processos que melhorem continuamente a eficiência operacional do suprimento de biodiesel, garantindo desta forma o crescimento sustentável do PNPB”.

No caso dos releilões, não há como não reconhecer que houve avanços. Foi graças à publicidade dada aos dados do processo que as dúvidas sobre os valores cobrados pela Petrobras surgiram. Agora que a questão está lançada, resta saber quem vai sair ganhando: a população, ao ter um combustível menos poluente pelo preço justo, ou o desejo de alguns de manter tudo como está.