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O amor da soja pelo biodiesel


Edição de Dez 2011 / Jan 2012 - 15 dez 2011 - 11:36 - Última atualização em: 09 mar 2012 - 17:50
Apesar da atual pujança do mercado de soja não depender do vigor do biodiesel, é ponto pacífico que a introdução desse biocombustível fez muito bem para o ambiente de negócios dos sojicultores

Fábio Rodrigues, de São Paulo

Independentemente da necessidade imediata de diversificar as matérias-primas usadas na produção de biodiesel e dos inúmeros projetos – tanto sérios quanto mirabolantes – para se viabilizar oleaginosas alternativas, é fato que a indústria do biodiesel nacional foi constituída praticamente como um anexo do pujante setor sojicultor do Brasil. Segundo dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), 86,3% de todo o biodiesel produzido durante o mês de agosto usou óleo de soja como matéria-prima – 9% veio de sebo bovino e 2,8% do óleo extraído do caroço de algodão. Considerando que a produção total naquele mês foi de 256 milhões de litros de biodiesel, as usinas consumiram quase 221 milhões de litros de óleo de soja. Sem sombra de dúvida, esse é um mercado de fazer brilhar os olhos.

Está certo que, no fim, não é o biodiesel que realmente paga as contas dos produtores de soja. Dados da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) apresentados na última Conferência BiodieselBR, realizada em São Paulo no final de outubro, revelam que o complexo soja brasileiro colheu impressionantes 74,3 milhões de toneladas de soja em grão durante a safra 2010/2011 e que o biodiesel ficou com uma parcela relativamente insignificante disso: cerca de 1,9 milhão de toneladas de óleo, ou 2,5% da biomassa total.

Mas quando considerado o volume de soja necessário para extrair esse óleo, o setor começa a ganhar importância. Para produzir 1,9 milhão de toneladas de óleo são necessárias 9,5 milhões de toneladas de soja, que correspondem a 12,8% da soja produzida no Brasil e 26% da soja consumida internamente. Essa deve ser uma das razões por que nenhum dos entrevistados ouvidos por esta reportagem titubeou antes de declarar que os produtores brasileiros estão em uma situação muito melhor desde que a produção comercial de biodiesel no Brasil começou, em janeiro de 2008.

“Para o produtor de soja, o biodiesel foi um maná. Essa é uma demanda que caiu do céu e não existia há dez anos”, dispara o economista Sávio Pereira, que trabalha como assessor da Secretaria de Política Agrícola para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Como as cotações internacionais da soja funcionam como vasos comunicantes, e qualquer modificação consistente numa ponta acaba por gerar reflexos em todo o sistema, a criação dessa demanda refletiu no mercado global. “O impacto do biodiesel é mundial”, diz Pereira, que estima que a produção do biocombustível absorva o equivalente a 30 milhões de toneladas de soja. Mesmo assim, ele ressalta que esse ainda é um fator marginal na formação dos preços do óleo. “A demanda internacional para o mercado de comestíveis ainda é muito maior”, completa.

Segundo Pereira, a cotação da soja na Bolsa de Chicago (considerada a referência mais importante para a oleaginosa), que, historicamente, ronda os US$ 6 por bushel (medida norte-americana que equivale a 27,2 quilos), está atualmente na casa dos US$ 12 e não arreda pé, apesar do prolongamento do ciclo de crises financeiras iniciado em 2008.

Piso

Não falta quem diga que, na prática, o biodiesel amarra o preço da soja ao do petróleo. Se, na forma de biodiesel, o óleo de soja é um equivalente do diesel mineral, por que os produtores topariam vender seu produto abaixo do valor desse combustível? Embora, em termos gerais, concorde com essa noção, Pereira diz que, no momento, a correlação é irrelevante. “O mercado de óleo está muito aquecido, mas se o petróleo subir muito ou se a soja cair repentinamente haveria esse piso”, opina.

Isso não significa que o mercado esteja voando num céu de brigadeiro e os players possam ficar despreocupados. Nuvens e turbulências sempre rondam os mercados agrícolas. Lucilio Alves, pesquisador do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), lembra que, no auge da crise, as cotações que haviam chegado a US$ 16,50 por bushel derreteram para menos de US$ 8. Embora os preços tenha se recuperado desde então, o pesquisador ressalta que o mercado está longe da estabilidade.

Pereira concorda com essa visão. “O biodiesel acrescentou mais um vetor de alta, que pressiona os preços no mercado de soja para cima, mas não elimina as incertezas do mercado”, ressalta.

Sazonalidade

O engenheiro agrônomo Sebastião da Silva Neto coordena o Programa de Soja para a Embrapa Cerrados há dois anos. Segundo ele, embora o biodiesel tenha influência limitada sobre os preços pagos internacionalmente, há algo de diferente em seu comportamento. Naturalmente, a Bolsa de Chicago, que tende a flutuar em função da produção norte-americana, coloca as cotações no contrafluxo da produção aqui do Hemisfério Sul. “A colheita dos Estados Unidos acontece no segundo semestre, o que deixa o mercado abastecido e faz os preços caírem. Esse efeito dura até a colheita das safras argentina, brasileira e paraguaia, que acontece no primeiro semestre”, resume. O biodiesel contribui para contrabalançar essa sazonalidade ao criar uma demanda adicional por óleo que puxa os preços do mercado brasileiro um pouco para cima. “Se você consultar os gráficos dos preços, vai ver que o comportamento deles mudou principalmente durante o primeiro trimestre”, comemora Silva Neto.

O importante disso é que os preços mais baixos da soja vinham precisamente na época em que os compromissos financeiros dos produtores estavam para vencer. “Na época da colheita você tem grande oferta e o preço cai, mas como o produtor tem que vender para fazer frente aos gastos com o custeio da lavoura, ele não tem alternativa. Como o biodiesel enxuga parte desse mercado, a rentabilidade é melhor”, completa.

“Houve sim um resultado positivo para os produtores de soja, especialmente em função da menor oscilação do mercado de óleo. Esse se tornou um mercado mais firme por causa do biodiesel”, indica o chefe geral da Embrapa Agrossilvipastoril, João Flávio Veloso Silva. Ele foi um dos responsáveis pelo capítulo dedicado à soja no livro “Complexo Agroindustrial de Biodiesel no Brasil” – publicação lançada em meados de setembro pela Embrapa Agroenergia que esmiúça a cadeia do biodiesel. Para o pesquisador, esse equilíbrio pode até ser mais importante do que os preços pagos. “Com uma estabilidade maior, você pode fazer projeções. Embora o biodiesel não leve necessariamente a uma valoração maior da soja, a estabilidade dos preços facilita um melhor planejamento da comercialização da safra”, garante.

Descolamento

Embora ninguém esteja contestando a primazia de Chicago, melhorar a dinâmica do mercado interno ajudou a descolá-lo, um pouquinho que seja, das sinalizações vindas de fora. “Com o aumento do esmagamento, a indústria agrega mais valor na soja e isso chega ao produtor na forma de preços melhores em real. Se colocar os preços do mercado interno num gráfico, você percebe que há um descolamento em relação à Bolsa de Chicago”, defende Silva Neto.

Ainda é cedo demais para sair dando vivas à independência do mercado brasileiro. Os entrevistados desta reportagem foram unânimes em afirmar que a soja é uma commodity cuja demanda é globalizada e que Chicago está tão enraizada no mercado que as chances dos compradores começarem a buscar seus preços noutras praias é tão remota que pode ser desprezada sem risco. Sávio Pereira não vê nenhum mal no fato dos preços virem de fora. “De todos os mercados de commodity, o de soja é um dos mais transparentes porque você consegue saber quem produz e quanto. O mercado de petróleo tem menos transparência”, diz.

Lucilio Alves aponta que, no final, mesmo que demore alguns dias, os preços do Brasil acabam acompanhando a tendência de fora. Ele ressalta, contudo, que Chicago é apenas um parâmetro. “No Brasil negocia-se um prêmio sobre as cotações de Chicago”, complementa.

É justo neste prêmio que o tal descolamento vai se fazendo sentir. “Há momentos em que o mercado interno está desatrelado de Chicago porque as fábricas pagam um prêmio sobre o preço”, explica o diretor administrativo da Associação dos Produtores de Soja do Estado de Mato Grosso (Aprosoja), Carlos Fávaro. “Claro que os preços continuaram a oscilar, mas as oscilações bruscas diminuíram. Isso foi muito bom para o setor”, continua. Ele também ressalta que o biodiesel resolveu de vez um problema muito prático da cadeia da soja: o que fazer com tanto óleo. “Até o aparecimento do programa do biodiesel, o grande problema da cadeia era que não tinha demanda para o óleo. O farelo era amplamente vendido, mas colocar o óleo era um problema enorme. O biodiesel viabilizou a cadeia da soja como um todo”, comemora Fávaro.

Cadeia do óleo

“O biodiesel enxugou o mercado do óleo de soja”, diz Silva Neto, da Embrapa Cerrados. Isto sinaliza, em certa medida, que o biodiesel está na linha de frente de uma mudança relevante no perfil produtivo do complexo soja brasileiro. Uma parte dos grãos que antes simplesmente ia para fora agora está sendo processada dentro do país. Com isso se agrega mais valor na cadeia da soja. “Eu viajo muito pelo interior do Brasil e tenho essa percepção. Tenho visto um aumento na construção de usinas de biodiesel ligadas às esmagadoras de soja”, testemunha o pesquisador da Embrapa Cerrados.

“Nós conseguimos melhorar o esmagamento no Brasil e o biodiesel contribuiu para este aumento”, afirma o secretário geral da Abiove, Fábio Trigueirinho, confirmando a intuição do pesquisador da Embrapa. Segundo dados fornecidos por ele, em 2008 o Brasil processava pouco menos de 32 milhões de toneladas de soja, e até o final de 2011 deveremos chegar a 36,5 milhões de toneladas – um crescimento de 14% em menos de quatro anos. “Foi bastante oportuno [o lançamento do programa de biodiesel] porque a demanda de óleo estava enfraquecida”, explica.

O biodiesel também veio para ajudar a contornar um problema que se tornou crônico para as esmagadoras: o acúmulo de créditos de ICMS. Toda vez que uma esmagadora compra soja de outro Estado, ela tem que pagar 12% de ICMS que pode ser abatido na hora de vender o produto processado. O problema é que o óleo e o farelo pagam menos impostos do que a soja em grão, levando ao acúmulo de créditos tributários que não têm para onde ir. “Como a tributação do biodiesel é mais alta, a gente consegue descontar parte desses créditos. O biodiesel nos ajuda bastante na perna tributária do óleo”, explica Trigueirinho.

Para Lucilio Alves, as esmagadoras – mais do que os agricultores – são os grandes beneficiados pela introdução do biodiesel. “O biodiesel surge como mais uma oportunidade para a comercialização do óleo de soja. Nesse sentido, ele foi uma excelente opção para as esmagadoras. No caso dos agricultores, os benefícios vêm quando pensamos em termos de cadeia”, observa.

Ter mais capacidade de esmagamento no país não deixa de ser uma enorme vantagem também para os agricultores, que, dessa forma, ficam menos expostos aos humores do mercado externo ou às conveniências comerciais dos grandes compradores. “Você fica menos dependente do mercado internacional, que está bastante concentrado nas mãos de alguns grandes compradores”, comenta Trigueirinho. Ele lembra que, desde o ano passado, argentinos e chineses andam se estranhando por causa de disputas comerciais relacionadas à soja, e a indústria de biodiesel acabou funcionando como um canal de escoamento para a produção do óleo no país vizinho. “Com o biodiesel, eu tenho uma demanda que não depende de outros players. Isso é positivo porque me dá mais alternativas”, arremata.

Mais dinheiro

No fundo, a pergunta milionária é: o biodiesel está fazendo mais dinheiro chegar até os produtores? Alves, do Cepea, não acha que essa seja uma questão simples de responder. “Se o preço da soja aumenta, o pessoal tende a remunerar um pouco mais, mas o quanto disso realmente está chegando aos agricultores é uma conta dificílima de fazer porque envolve elementos macroeconômicos. Mas a minha consideração é que existem benefícios”, pondera.

Terceira geração de agricultores de sua família e dono de uma plantação de soja no município de Vera (MT), Fávaro, da Aprosoja, avalia que, no geral, a situação está melhor, embora parte dos ganhos recentes estejam sendo carcomidos pelo aumento no custo dos insumos. “Então, não ficamos com toda a margem”, diz.

Números da Embrapa Cerrado indicam que tem havido aumento de produtividade e da área plantada, coisa que, de acordo com Sebastião da Silva Neto, “só acontece quando o agricultor tem renda disponível”. “Logo, o produtor na ponta da cadeia está auferindo maior lucro”, diz. E mesmo que seja impossível saber quanto dessa renda vêm do biodiesel e quanto vem de outros fatores de mercado, o PNPB gera pelo menos um benefício bastante específico, que é abrir as portas da sojicultura aos agricultores familiares. “Para o pequeno produtor melhorou muito porque o biodiesel os colocou no sistema produtivo da soja. Este foi um grande benefício.”

João Flávio Veloso lembra que mais da metade da soja plantada na Região Sul já vem de pequenas lavouras, e algo parecido está acontecendo no Centro-Oeste. Segundo o chefe da unidade Agrossilvipastoril da Embrapa, graças aos incentivos criados pelo Selo Combustível Social, há cada vez mais microagricultores plantando soja, e isso tem tido reflexos notáveis sobre a paisagem do interior do país. “Nos municípios onde a soja passa a ter uma relevância maior, melhoraram os Índices de Desenvolvimento Humano. A gente percebe isso sensivelmente na modernização da agricultura e melhoria nas condições de vida da população rural e urbana”, avalia.

“O governo acertou em cheio ao exigir que o PNPB incluísse a transferência de tecnologia para os pequenos produtores. Se não fosse por isso, esses agricultores não estariam tendo acesso a tecnologia e capacitação. Isto permite que eles transformem as suas propriedades e tenham condições de entrar no mercado internacional. É o biodiesel que está puxando esse movimento”, finaliza Fávaro.

O paraíso da soja

De acordo com Sávio Pereira, do Mapa, a soja está vivendo um de seus melhores momentos nos últimos anos, graças a uma confluência de três fatores: o inesgotável apetite chinês, o crescimento do etanol de milho dos Estados Unidos, que vem deslocando áreas que antes eram dedicadas à soja, e o aumento de demanda criado pelo biodiesel.

Por mais que os outros fatores sejam relevantes, a China é disparada o maior fator individual para que os preços da soja no mercado global estejam em alta. Apenas em 2011, o gigante asiático deve importar algo entre 55 e 56 milhões de toneladas de soja em grão e mais 10 milhões de toneladas de óleos vegetais. “Somando tudo, é mais ou menos como se a China sozinha consumisse quase 100 milhões de toneladas de soja”, ressalta Pereira.

E isso num espaço de tempo extremamente curto. As importações chinesas de soja eram praticamente nulas por volta de 1995. Em pouco mais de 15 anos, portanto, o país passou a demandar um volume de soja superior à capacidade produtiva que os Estados Unidos – hoje o maior produtor mundial – precisaram de quase um século para consolidar.