Agricultura Familiar: fundo social para o biodiesel
Sem consenso, proposta para a criação de um fundo do selo social engatinha. Empresários e trabalhadores apoiam projetos diferentes, embora digam que a novidade poderia ajudar
Rosiane Correia de Freitas, de Curitiba
A Lei da Ficha Limpa, aprovada pelo Congresso Nacional no ano passado, mostrou que a população tem como influenciar na confecção das leis do país. Graças à mobilização de mais de 1,5 milhão de cidadãos, a partir do ano que vem políticos que tenham condenações judiciais não poderão mais disputar eleições. Acontece que uma mobilização desse gênero não é fácil: projetos de iniciativa popular precisam da assinatura de 1% dos eleitores para serem votados. Com mais de 135 milhões de eleitores no país, fica fácil entender o porquê desse ter sido o único sucesso do gênero em cinco anos.
Existem caminhos menos difíceis. Um deles é convencer o Executivo ou os parlamentares de uma ideia e lutar por sua aprovação.
Para o setor de biodiesel esse pode ser o caminho para alcançar algumas reivindicações. Embora não seja a parte mais vistosa do agronegócio no Brasil, o setor pode se mobilizar para defender seus interesses junto ao governo (veja reportagem na página 26).
O problema, no entanto, é conseguir um consenso entre diferentes atores. A logística desse consenso é ainda mais complexa quando envolve interesses diferentes. E é de um conflito de ideias que sofre a proposta para a criação de um fundo ligado ao Selo Combustível Social. Em linhas gerais, o fundo traria recursos para investimentos em empreendimentos da agricultura familiar que forneceriam matéria-prima para o biodiesel.
A ideia do fundo surgiu para resolver dificuldades que o setor tem tido com a agricultura familiar. De um lado, os agricultores reclamam da falta de assistência técnica e de garantias para trabalhar no fornecimento de matéria-prima. Pelo outro, as usinas se dizem pouco preparadas para lidar com fornecedores da agricultura familiar.
À primeira vista, a ideia agrada a todos. De fato, agricultores, empresários e governo têm simpatia declarada por ela. A coisa complica, no entanto, quando se começa a tratar de pontos específicos. Uns querem um fundo financiado pelo governo, outros pelas empresas; e há até quem defenda a aplicação dos recursos em projetos que não estejam atrelados ao biodiesel.
Domingues defende que as usinas que não se sintam em condições de escolher bons projetos da agricultura familiar possam abastecer um fundo com valores proporcionais aos volumes que forem negociados nos leilões de biodiesel. Na prática, ao invés de comprar matéria-prima da agricultura familiar, as usinas pagariam ao fundo uma quantia correspondente ao seu faturamento com biodiesel.
O que o fundo faria com esse dinheiro? “O MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário] conhece muito mais a agricultura familiar, sabe muito melhor quais são os bons projetos. Ele pode certamente gerir esses recursos com mais eficiência”, diz Domingues. O dinheiro, segundo ele, não precisaria ser aplicado na região da usina investidora e nem mesmo em projetos ligados à produção de matéria-prima para o setor. “É um recurso para ser aplicado naquilo que o ministério julgar relevante”, completa.
Para o executivo, o selo é um diferencial para uma usina de biodiesel. “Mas para quem não é verticalizado, é mais difícil. O fundo viria para equilibrar isso”, diz. A adesão seria voluntária, e as usinas que tivessem interesse poderiam continuar a obter o selo com a aquisição da matéria-prima direto do produtor.
A ideia de Domingues ainda não atraiu a adesão de seus pares. A Associação dos Produtores de Biodiesel (Aprobio), que reúne 30 usinas, incluindo a Bioverde, ainda não fechou questão sobre o assunto. Segundo o presidente da entidade e diretor da BSBios, Erasmo Battistela, o fundo pode ser uma boa alternativa para o setor, uma vez que disponibilizaria recursos para aplicação direta na agricultura familiar. “Mas ainda temos que discutir as propostas antes de nos posicionar”, alerta.
Criada em julho, a associação deve trabalhar com cautela na elaboração de uma ideia que seja consenso dos associados. “Vamos esperar a publicação da nova Instrução Normativa do Selo Combustível Social para aí discutir quais serão as reivindicações na área”, aponta Battistella. Segundo ele, a Aprobio tem mantido um diálogo permanente com o MDA: “Somos abertos a melhorias”.
“Esse dinheiro irá financiar a pesquisa, o tratamento de solo, a compra de sementes e também a implantação de indústrias”, explica Antoninho Rovaris, secretário de políticas agrícolas da instituição. A meta seria dar aos agricultores condições para que eles não fiquem restritos ao grão, mas extraiam e vendam o óleo. “Vender só o grão deixa para o agricultor a menor fatia do faturamento do setor”, argumenta.
A Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (Fetraf) também defende a aplicação dos recursos na criação de agroindústrias. “Hoje o agricultor familiar fica com a parte mais difícil e com menor rendimento”, aponta Francisco Miguel Lucena, representante da Fetraf. A entidade, contudo, acha que as verbas deveriam vir das usinas e do governo e que o dinheiro poderia ser aplicado em projetos da agricultura familiar a fundo perdido.
Para Lucena, uma vez que os agricultores possam beneficiar o grão, além de lucrarem com o óleo, eles também garantirão renda com a comercialização dos resíduos. “O fundo tem que dar o incentivo e o aporte de recursos necessário para a implantação dessas indústrias”, defende. O foco da Fetraf, segundo Lucena, é nos agricultores de menor porte que têm maior dificuldade para ter acesso ao financiamento.
Criado para garantir que a agricultura familiar fosse integrada ao mercado, o selo garante benefícios fiscais para as usinas que comprarem parte de sua matéria-prima de pequenos produtores, mas os resultados práticos não têm sido tão vistosos quanto a propaganda.
“A maior parte da produção é comprada pelas usinas, mas não se transforma em biodiesel. Já no início do programa a gente alertou o governo de que isso iria acontecer”, lembra Lucena. Para o representante da Fetraf, o selo ajudou a consolidar a agricultura familiar, mas não garantiu sua participação efetiva. “A verdade é que a agricultura familiar emprestou o nome para o biodiesel, mas não representa nem 30% da matéria-prima usada no setor”, alerta.
No setor industrial, a crítica é outra. “A agricultura familiar tem a função de produzir alimentos, de ser um braço de programas como o Brasil Sem Miséria. Empresas como a nossa, que não são verticalizadas, não têm experiência em avaliar propostas na área. Quem conhece o setor e pode avaliar é o MDA”, reforça Domingues, da Bioverde. “Ao invés de correr atrás das famílias, posso garantir dinheiro para o fundo”, diz.
A ideia não agrada à Contag. “É um retrocesso porque tira a obrigatoriedade de compra de matéria-prima”, avalia Rovaris. A proposta também não resolve um dos principais problemas da agricultura familiar: a falta de acesso ao crédito. “Hoje o que vemos é que os agricultores melhor estruturados conseguem o crédito, mas os que realmente precisam de incentivo têm dificuldades”, reclama.
Rovaris aponta que a criação de um fundo nos moldes propostos por Domingues não estimula a diversificação da matéria-prima do biodiesel. “É aí que entra a questão da criação do fundo, para garantir investimentos que possam viabilizar a entrada de novas oleaginosas no mercado”, diz. Para ele, desvincular os recursos da compra de matéria-prima é facilitar a vida do empresariado sem uma contrapartida que justifique isso. “Mesmo que seja voluntário, o fundo vai atrair muitas empresas porque trabalhar com a agricultura familiar é difícil”, analisa. De acordo com Rovaris, é por isso que o governo oferece benefícios fiscais. Já do lado das usinas é comum ouvir que esses benefícios não cobrem os custos do incentivo dado aos agricultores familiares.
Para Campos, a ideia é “vista com bons olhos”, mas só será discutida a partir do momento que o setor tiver “uma proposta mais detalhada”. Segundo ele, a implantação de um fundo não é um empreendimento de curto prazo. “Se for voluntário e formado só com recursos da iniciativa privada, [a criação] pode até ser rápida. Se envolver recursos do governo, aí é mais demorado”, explica.
É que qualquer proposta de fundo público que inclua a transferência de recursos de impostos tem que passar, obrigatoriamente, pelo Congresso. O processo não seria impeditivo. “No governo há muitos fundos com propostas semelhantes, como na área tecnológica e no financiamento do setor do café”, aponta Campos.
No setor de biodiesel, por enquanto, o que parece ser mais urgente é a boa e velha prática da negociação. Depois de conversarem e se entenderem, aí sim as partes que compõem o setor estarão prontas para lutar para que suas ideias ganhem apoio no Legislativo e passem a ter força de lei.
Rosiane Correia de Freitas, de Curitiba
A Lei da Ficha Limpa, aprovada pelo Congresso Nacional no ano passado, mostrou que a população tem como influenciar na confecção das leis do país. Graças à mobilização de mais de 1,5 milhão de cidadãos, a partir do ano que vem políticos que tenham condenações judiciais não poderão mais disputar eleições. Acontece que uma mobilização desse gênero não é fácil: projetos de iniciativa popular precisam da assinatura de 1% dos eleitores para serem votados. Com mais de 135 milhões de eleitores no país, fica fácil entender o porquê desse ter sido o único sucesso do gênero em cinco anos.
Existem caminhos menos difíceis. Um deles é convencer o Executivo ou os parlamentares de uma ideia e lutar por sua aprovação.
Para o setor de biodiesel esse pode ser o caminho para alcançar algumas reivindicações. Embora não seja a parte mais vistosa do agronegócio no Brasil, o setor pode se mobilizar para defender seus interesses junto ao governo (veja reportagem na página 26).
O problema, no entanto, é conseguir um consenso entre diferentes atores. A logística desse consenso é ainda mais complexa quando envolve interesses diferentes. E é de um conflito de ideias que sofre a proposta para a criação de um fundo ligado ao Selo Combustível Social. Em linhas gerais, o fundo traria recursos para investimentos em empreendimentos da agricultura familiar que forneceriam matéria-prima para o biodiesel.
A ideia do fundo surgiu para resolver dificuldades que o setor tem tido com a agricultura familiar. De um lado, os agricultores reclamam da falta de assistência técnica e de garantias para trabalhar no fornecimento de matéria-prima. Pelo outro, as usinas se dizem pouco preparadas para lidar com fornecedores da agricultura familiar.
À primeira vista, a ideia agrada a todos. De fato, agricultores, empresários e governo têm simpatia declarada por ela. A coisa complica, no entanto, quando se começa a tratar de pontos específicos. Uns querem um fundo financiado pelo governo, outros pelas empresas; e há até quem defenda a aplicação dos recursos em projetos que não estejam atrelados ao biodiesel.
Usinas
O setor produtivo também tem seus adeptos, mas não há consenso sobre como o fundo deve ser organizado e aplicado. Uma das propostas vem da Bioverde. Segundo seu presidente, Ailton Braga Domingues, o fundo ajudaria – e muito – as usinas que não têm estrutura verticalizada, ou seja, que não dominam o processo de produção desde a matéria-prima. É justamente o caso da Bioverde.Domingues defende que as usinas que não se sintam em condições de escolher bons projetos da agricultura familiar possam abastecer um fundo com valores proporcionais aos volumes que forem negociados nos leilões de biodiesel. Na prática, ao invés de comprar matéria-prima da agricultura familiar, as usinas pagariam ao fundo uma quantia correspondente ao seu faturamento com biodiesel.
O que o fundo faria com esse dinheiro? “O MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário] conhece muito mais a agricultura familiar, sabe muito melhor quais são os bons projetos. Ele pode certamente gerir esses recursos com mais eficiência”, diz Domingues. O dinheiro, segundo ele, não precisaria ser aplicado na região da usina investidora e nem mesmo em projetos ligados à produção de matéria-prima para o setor. “É um recurso para ser aplicado naquilo que o ministério julgar relevante”, completa.
Para o executivo, o selo é um diferencial para uma usina de biodiesel. “Mas para quem não é verticalizado, é mais difícil. O fundo viria para equilibrar isso”, diz. A adesão seria voluntária, e as usinas que tivessem interesse poderiam continuar a obter o selo com a aquisição da matéria-prima direto do produtor.
A ideia de Domingues ainda não atraiu a adesão de seus pares. A Associação dos Produtores de Biodiesel (Aprobio), que reúne 30 usinas, incluindo a Bioverde, ainda não fechou questão sobre o assunto. Segundo o presidente da entidade e diretor da BSBios, Erasmo Battistela, o fundo pode ser uma boa alternativa para o setor, uma vez que disponibilizaria recursos para aplicação direta na agricultura familiar. “Mas ainda temos que discutir as propostas antes de nos posicionar”, alerta.
Criada em julho, a associação deve trabalhar com cautela na elaboração de uma ideia que seja consenso dos associados. “Vamos esperar a publicação da nova Instrução Normativa do Selo Combustível Social para aí discutir quais serão as reivindicações na área”, aponta Battistella. Segundo ele, a Aprobio tem mantido um diálogo permanente com o MDA: “Somos abertos a melhorias”.
Divergências
Nem entre as entidades que representam interesses supostamente convergentes há acordo. Os agricultores familiares puseram pelo menos duas propostas na mesa. Na Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), a ideia é promover a criação de um fundo alimentado por recursos do ICMS e do IPI pagos pelo biodiesel.“Esse dinheiro irá financiar a pesquisa, o tratamento de solo, a compra de sementes e também a implantação de indústrias”, explica Antoninho Rovaris, secretário de políticas agrícolas da instituição. A meta seria dar aos agricultores condições para que eles não fiquem restritos ao grão, mas extraiam e vendam o óleo. “Vender só o grão deixa para o agricultor a menor fatia do faturamento do setor”, argumenta.
A Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (Fetraf) também defende a aplicação dos recursos na criação de agroindústrias. “Hoje o agricultor familiar fica com a parte mais difícil e com menor rendimento”, aponta Francisco Miguel Lucena, representante da Fetraf. A entidade, contudo, acha que as verbas deveriam vir das usinas e do governo e que o dinheiro poderia ser aplicado em projetos da agricultura familiar a fundo perdido.
Para Lucena, uma vez que os agricultores possam beneficiar o grão, além de lucrarem com o óleo, eles também garantirão renda com a comercialização dos resíduos. “O fundo tem que dar o incentivo e o aporte de recursos necessário para a implantação dessas indústrias”, defende. O foco da Fetraf, segundo Lucena, é nos agricultores de menor porte que têm maior dificuldade para ter acesso ao financiamento.
Espaço para melhorias
Se a ideia do fundo não gerou um consenso, em parte é porque o Selo Combustível Social ainda é alvo constante de críticas.Criado para garantir que a agricultura familiar fosse integrada ao mercado, o selo garante benefícios fiscais para as usinas que comprarem parte de sua matéria-prima de pequenos produtores, mas os resultados práticos não têm sido tão vistosos quanto a propaganda.
“A maior parte da produção é comprada pelas usinas, mas não se transforma em biodiesel. Já no início do programa a gente alertou o governo de que isso iria acontecer”, lembra Lucena. Para o representante da Fetraf, o selo ajudou a consolidar a agricultura familiar, mas não garantiu sua participação efetiva. “A verdade é que a agricultura familiar emprestou o nome para o biodiesel, mas não representa nem 30% da matéria-prima usada no setor”, alerta.
No setor industrial, a crítica é outra. “A agricultura familiar tem a função de produzir alimentos, de ser um braço de programas como o Brasil Sem Miséria. Empresas como a nossa, que não são verticalizadas, não têm experiência em avaliar propostas na área. Quem conhece o setor e pode avaliar é o MDA”, reforça Domingues, da Bioverde. “Ao invés de correr atrás das famílias, posso garantir dinheiro para o fundo”, diz.
A ideia não agrada à Contag. “É um retrocesso porque tira a obrigatoriedade de compra de matéria-prima”, avalia Rovaris. A proposta também não resolve um dos principais problemas da agricultura familiar: a falta de acesso ao crédito. “Hoje o que vemos é que os agricultores melhor estruturados conseguem o crédito, mas os que realmente precisam de incentivo têm dificuldades”, reclama.
Rovaris aponta que a criação de um fundo nos moldes propostos por Domingues não estimula a diversificação da matéria-prima do biodiesel. “É aí que entra a questão da criação do fundo, para garantir investimentos que possam viabilizar a entrada de novas oleaginosas no mercado”, diz. Para ele, desvincular os recursos da compra de matéria-prima é facilitar a vida do empresariado sem uma contrapartida que justifique isso. “Mesmo que seja voluntário, o fundo vai atrair muitas empresas porque trabalhar com a agricultura familiar é difícil”, analisa. De acordo com Rovaris, é por isso que o governo oferece benefícios fiscais. Já do lado das usinas é comum ouvir que esses benefícios não cobrem os custos do incentivo dado aos agricultores familiares.
De camarote
Enquanto agricultores e usinas não entram num acordo, o governo acompanha a discussão à distância. Segundo o diretor de geração de renda e agregação de valor do MDA, Arnoldo de Campos, não há uma proposta formal sendo avaliada pelo governo. “Tenho participado de conversas sobre o assunto, mas não há um formato fechado”, informa.Para Campos, a ideia é “vista com bons olhos”, mas só será discutida a partir do momento que o setor tiver “uma proposta mais detalhada”. Segundo ele, a implantação de um fundo não é um empreendimento de curto prazo. “Se for voluntário e formado só com recursos da iniciativa privada, [a criação] pode até ser rápida. Se envolver recursos do governo, aí é mais demorado”, explica.
É que qualquer proposta de fundo público que inclua a transferência de recursos de impostos tem que passar, obrigatoriamente, pelo Congresso. O processo não seria impeditivo. “No governo há muitos fundos com propostas semelhantes, como na área tecnológica e no financiamento do setor do café”, aponta Campos.
No setor de biodiesel, por enquanto, o que parece ser mais urgente é a boa e velha prática da negociação. Depois de conversarem e se entenderem, aí sim as partes que compõem o setor estarão prontas para lutar para que suas ideias ganhem apoio no Legislativo e passem a ter força de lei.