BiodieselBR.com 14 dez 2022 - 08:30

Graças a presciência de seu fundador, a Topsoe percebeu que – cedo ou tarde – o mundo teria que descarbonizar sua economia. Isso fez com que a gigante dinamarquesa do ramo químico começasse a investir no desenvolvimento dos blocos básicos para a transição energética bem antes que houvesse um mercado para eles. Com um novo CEO à frente do negócio, a empresa está colhendo os frutos dessa preparação e se posicionando como uma engrenagem central no mecanismo que está sendo montado ao redor do globo e de inúmeras cadeias de valor para permitir que uma das maiores guinadas já tentadas na história da humanidade seja dada a tempo de evitar que os piores cenários das mudanças climáticas se concretizem.

Foi sobre esse novo papel de protagonismo que a empresa vem desempenhando que BiodieselBR.com conversou com o gerente sênior de estratégia da empresa, Sylvain Verdier.

BiodieselBR.com – A Topsoe foi fundada cerca de 80 anos atrás como um fabricante de catalisadores. Por que a empresa decidiu focar na transição energética?

Sylvain Verdier – A Topsoe sempre esteve muito focada na eficiência energética e na melhoria do desempenho ambiental dos nossos clientes. É algo que está em nosso DNA desde o começo. Temos muita sorte de nosso fundador, Dr. Haldor Topsoe, era um homem brilhante que percebeu muito cedo que teríamos que descarbonizar a economia. Por isso a gente vem trabalhado nos blocos básicos – amônia, metanol, hidrogênio, etc. – da química verde e da descarbonização há 30 anos. Quando [Roeland Baan assumiu como nosso] CEO em 2020, sua visão de focar na descarbonização formalizou algo que vinha acontecendo internamente. Claro que, ultimamente, a regulação tem se movido drasticamente para reduzir as emissões. Em todo o mundo há legislação nos dizendo que precisamos descarbonizar e produzir com baixo teor de gases de efeito estufa. O próprio mercado está pedindo por isso. Mas, para nós, foi uma transição muito gradual e suave.

BiodieselBR.com – Este reposicionamento da companhia é bem recente. Quais são os passos que a Topsoe vem dando para concretizar essa mudança?

Sylvain Verdier – Desde que nosso novo CEO assumiu, iniciamos um diálogo interno contínuo. Esse exame de consciência se alinhou muito bem com o que já vinha acontecendo. Cerca de 80% dos nossos gastos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) são alocados em tecnologias e catalisadores voltados à descarbonização. Nós nos tornamos muito mais abertos sobre o que estamos fazendo, para que nossos clientes e parceiros saibam disso. Por isso, a comunicação é muito importante e começamos um podcast compartilhando nossa visão. A jornada da descarbonização vai exigir que todos os que estiveram envolvidos em uma cadeia trabalhem mais próximos. Tivemos que a ampliar o número de pessoas com quem conversamos para além do nosso negócio principal. Há todo um contexto que precisamos compreender melhor se quisermos aliar nosso conhecimento com as soluções que estão sendo exigidas – não apenas pelo mercado, mas pela espécie humana como um todo.

BiodieselBR.com – Como isso está mudando a forma como a Topsoe trabalha?

Sylvain Verdier – Uma coisa que estamos fazendo que, talvez, nossos concorrentes não estejam é aconselhando mais os clientes. Gastamos muito tempo e esforço para entender o que a legislação diz sobre sustentabilidade de forma que possamos orientá-los. Há uns cinco ou seis anos atrás tivemos que sair da nossa zona de conforto da engenharia pura para passar a entender os problemas de uma forma mais ampla e, assim, poder andar lado a lado com nossos clientes.

BiodieselBR.com – Empresas tendem a se concentrar em seus nichos e manter uma atitude antagônica entre si; o oposto do que precisamos para enfrentar um problema sistêmico como a crise climática. De que forma a Topsoe tem buscado cultivar essa nova postura?

Sylvain Verdier – Eu acho que isso vem acontecendo de forma orgânica. Um bom exemplo vem de nosso envolvimento com combustíveis de aviação sustentáveis. Quando uma companhia aérea nos aborda sobre o tema, temos que colocar no circuito gente do setor de refino, de eletricidade renovável e dos aeroportos... já estivemos envolvidos em tantos projetos que desenvolvemos uma rede que abrange todo o cenário. Entendemos muito bem que isso é algo que não podemos fazer sozinhos; é como montar um quebra-cabeça que exige juntar muitas peças. O fato de termos diferentes negócios compartilhando os mesmos objetivos [relacionados à transição energética] funciona como um driver para que os envolvidos trabalharem juntos.

BiodieselBR.com – Qual o peso dos combustíveis renováveis para o negócio da Topsoe?

Sylvain Verdier – Entre 16% e 17% de nossa receita veio de projetos renováveis. Mas vai aumentar. O problema é que combustíveis fósseis ainda são algo realmente enorme. Só para dar uma ideia, se usássemos até a última gota de óleo comestível do mundo, poderíamos fabricar uns 3 milhões de barris por dia de biocombustíveis. Já de fósseis fabricamos cerca de 100 milhões de barris por dia. Vamos precisar dos fósseis ainda por muito tempo enquanto trabalhamos para expandir a oferta das fontes renováveis. Não existe uma bala de prata. Aqui na Europa, os políticos caíram de amores pelas tecnologias chamadas power to X [que usam eletricidade para gerar produtos químicos]. Eles estão convencidos de que essa será a solução mágica que vai resolver tudo. Não é! Vamos precisar de bioenergia, do aproveitamento de resíduos e da eletricidade porque cada parte do mundo enfrentará problemas e terá e recursos diferentes à disposição. Vamos ter que nos ajustar.

BiodieselBR.com – No setor de transportes a eletrificação parece estar se consolidando. Quanto espaço ainda teremos para combustíveis líquidos no longo prazo?

Sylvain Verdier – Muito! Sabemos que nos veículos leves a eletrificação está avançando e eu acho isso positivo. Mas aqui estamos falando de carros. Quando olhamos para caminhões e veículos pesados, ainda vamos precisar de combustíveis líquidos durante muitos anos. Quem sabe, por volta de 2040, as células de combustível se tornem uma realidade para esse nicho. E há dois setores – o marítimo e o aeronáutico – que utilizam cerca de 300 a 350 megatons de combustíveis todos os anos. E eles vão continuar precisando de combustíveis líquidos.

BiodieselBR.com – Por quê?

Sylvain Verdier – A chave é a densidade de energia. Para os voos de longa distância exigem as aeronaves precisam de uma fonte de energia altamente concentrada. Você não tem como substituir os combustíveis líquidos por baterias ou hidrogênio porque precisaria de um volume muito grande. Por esse motivo, acreditamos que os combustíveis líquidos continuarão a ser o padrão no setor de aviação por muito tempo. Há outra questão que tem a ver com a disponibilidade de matérias-primas a infraestrutura. Se você tem biomassa disponível, é melhor aproveitá-la. Da mesma forma, se você gastou bilhões para construir uma refinaria, é melhor usá-la. O IPCC diz que temos apenas alguns anos para reverter as mudanças climáticas, então precisamos usar a infraestrutura existente porque vai levar muito tempo para instalar os parques eólicos offshore e os eletrolisadores necessários para viabilizar o hidrogênio verde.

BiodieselBR.com – Temos matérias-primas suficientes? De onde vai sair o óleo para fazer tanto biocombustível?

Sylvain Verdier – Da forma como vemos aqui na Topsoe, temos três gerações de matérias-primas. A primeira são os óleos virgens que representam cerca de 200 milhões de toneladas por ano dos quais 20% são usadas na produção de biocombustíveis; eu acho que essa participação permanecerá a mesma ao longo do tempo. A segunda geração são os óleos e gorduras residuais – gorduras animais, óleo de cozinha usado, o tall oil bruto etc – que dão mais umas 40 milhões de toneladas por ano. É bem menos do que os óleos virgens, mas já conta muito. Todo resíduo que pudermos aproveitar é um bom resíduo. Mas é quando chegamos na terceira geração que as coisas realmente ficam complexas...

BiodieselBR.com – O que torna essa geração mais complexa que as anteriores?

Sylvain Verdier – É porque ela se subdivide em quatro categorias. Temos os resíduos sólidos urbanos ou agrícolas que podem ser transformados em líquidos ou gás. As culturas de inverno ou de rotação que podem ser plantadas em terras marginais. O aproveitamento de plásticos e de pneus, há muita discussão na Europa sobre essa possibilidade. E, finalmente, temos o power to X. Essa última tecnologia permite usar CO2, energia elétrica e água para produzir combustíveis sintéticos. As primeiras duas gerações já estão aí, a terceira eu espero que realmente comecem a crescer a partir de 2030.

BiodieselBR.com – E como escapar do dilema biocombustíveis x comida que vem acompanhando a setor já tem alguns anos?

Sylvain Verdier – Este é uma polêmica tem entrado e saído de voga desde que os biocombustíveis começaram a decolar ainda na década de 1990. É uma questão importante e eu acho que ela tem que ser respondida usando os esquemas e ferramentas adequadas. Cada país tem seu próprio regulamento. A que eu conheço melhor é a Diretiva de Energias Renováveis (RED) da União Europeia que fixa regras sobre a quantidade de biocombustível que pode ser produzida a partir de cada tipo de óleo. É uma regra em evolução que, num futuro próximo, vai banir o uso de óleo de palma e de soja. Estou menos familiarizado com a regulamentação de outras partes do mundo, mas a questão é estabelecer uma boa legislação com esquemas de certificação e critérios de sustentabilidade sólidos.

BiodieselBR.com – Quais são as diferenças principais entre o diesel verde e o biodiesel convencional?

Sylvain Verdier – Quimicamente falando, eles não são a mesma coisa. Quando faço diesel verde, estou produzindo as mesmas moléculas presentes no do diesel fóssil. Isso significa que consigo operar qualquer motor usando diesel verde puro. Já na molécula do biodiesel, eu ainda tenho algum oxigênio o que a torna um pouco mais instável e dificulta seu uso em motores não adaptados. É uma boa solução, mas tem alguns desafios.

BiodieselBR.com – Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, o diesel renovável vem tomando espaço do biodiesel. Essas duas indústrias vão bater de frente?

Sylvain Verdier – Nós precisamos de todas as soluções [para viabilizar a transição energética]. Não acredito que ambas vão colidir, é mais uma questão de integração. Na Europa, eu espero ver a produção de biodiesel diminuindo e a de diesel verde aumentando. Já no Leste da Ásia e no Brasil ambos vão crescer. Acho que o biodiesel é uma indústria estabelecida que já tem sua infraestrutura instalada e – o que é um desenvolvimento muito interessante – muitas empresas de biodiesel têm nos procurado para perguntar se também podem produzir diesel verde.

BiodieselBR.com – E o que vocês respondem para elas?

Sylvain Verdier – Que se você tem a matéria-prima, você é o rei do mundo. E as empresas de biodiesel geralmente têm acesso à matéria-prima. Vejo alguns produtores de biodiesel em uma posição muito forte para migrar para o diesel verde. O preço do produto é mais alto [do que o do biodiesel], mas a tecnologia é mais flexível em termos de produtos. Além do verde ela pode produzir combustíveis de aviação sustentáveis (SAF, na sigla em inglês) e outros produtos químicos verdes – como nafta e GLP – ao mesmo tempo. Pode fazer sentido economicamente avançar na direção dessa flexibilidade.

BiodieselBR.com – Os mandatos têm sido a principal ferramenta para a adoção do biodiesel ao redor do mundo. Vai continuar assim ou há outras opções?

Sylvain Verdier – Seja por volume ou por conteúdo energético, os mandatos têm sido um bom ponto de partida. Mas, em muitas partes do mundo, a tendência tem sido por políticas de redução da intensidade de carbono. Ao invés de um mandato de mistura de, digamos, 7%, estabelecemos uma meta de redução de 10% na intensidade de carbono. Isso está acontecendo na Europa, na Califórnia e no Canadá... e acho que veremos muitos outros países indo nessa mesma direção.

BiodieselBR.com – Quais são os maiores desafios da indústria de combustíveis renováveis que ainda precisamos enfrentar para aumentar sua participação no mix de energia?

Sylvain Verdier – Precisamos entender a legislação. Na Europa ou nos EUA, as coisas são bastante complicadas, você precisa fazer a lição de casa. A outra coisa é a matéria-prima. Ela realmente é chave de tudo. Quando as matérias-primas de terceira geração chegaram, muita coisa vai mudar. As refinarias atuais não foram feitas para processar sólidos. É como montar blocos de lego. Vamos precisar conectar muitos blocos que antes não estavam juntos – empresas petrolíferas com autoridades municipais, refinarias com tecnologias de gaseificação. E tudo isso com fontes de financiamentos. Estamos tentando financiar um monte de coisas que não sabemos como vão funcionar porque elas ainda não existem! Isso é desafiador porque estamos tentando trocar o pneu da moto enquanto pilotamos. É assim que a transição energética vai acontecer.

BiodieselBR.com – E qual será o espaço para a América Latina em tudo isso?

Sylvain Verdier – Depois do estouro da Guerra Russo-Ucraniana, a Europa tem um plano para se tornar mais independente em termos energéticos. Teremos que importar biocombustíveis e, desde que sejam fabricados segundo as regras europeias de sustentabilidade, eles podem vir do Brasil ou da Argentina. Então, eu acho que há muitas oportunidades para empresas latino-americanas. Não faz muito tempo, estive num evento onde pude conversar com nossos clientes da região. O nível de energia deles é realmente incrível, as pessoas dizem 'tudo bem, isso é complexo, mas podemos fazer'. Fiquei positivamente surpreso. Talvez seja uma postura um pouco ingênua, porque as coisas são bastante diferentes aqui na Europa. Mas eu gostaria de encorajar os leitores do BiodieselBR.com a terem esperança e a enxergarem as oportunidades.

Fábio Rodrigues – BiodieselBR.com