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Biodiesel 20 Anos: O programa que mudou o Brasil


BiodieselBR.com - 06 dez 2024 - 18:18 - Última atualização em: 14 jan 2025 - 08:44

BIODIESEL 20 ANOS É UMA SÉRIE EM TRÊS PARTES PUBLICADA POR BIODIESELBR.COM ENTRE OS DIAS 06 DE DEZEMBRO E 13 DE JANEIRO.

- Nessa primeira parte acompanhamos a criação do programa pelo governo federal;
- Na segunda parte acompanhamos como foi para os pioneiros do setor industrial;
- Na terceira exploramos a relação entre PNPB e a agricultura familiar;

“Presidente, eu queria discutir com o senhor a questão do biodiesel, que eu acho que pode ser uma grande solução para o país”. Esta frase foi o marco zero da indústria de biodiesel no Brasil. Conforme o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recordaria durante a cerimônia de inauguração da Soyminas – a primeira usina comercial do país – no dia 24 de março de 2005, ela havia sido dita “mais ou menos” entre junho e julho de 2003 pelo ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues. Aquela conversa entre os dois foi o momento da concepção do que, alguns meses mais tarde, viria a ser o Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB).

Cravar o dia exato que deveria constar da certidão de nascimento do PNPB é tema para controvérsias. Há várias datas simbólicas que se prestariam muito bem a este papel: 23 de dezembro de 2003, quando a Comissão Executiva Interministerial do Biodiesel (Ceib) foi formada para desenhar o maquinário institucional do programa; 14 de setembro de 2004, quando foi publicada a MP 214/2004 que introduziu o biodiesel na matriz energética nacional; 13 de janeiro de 2005, quando foi sancionada na Lei 11.097/2005 que consolidou o primeiro marco regulatório do biodiesel no país.

Para BiodieselBR.com, no entanto, a data mais memorável é 06 de dezembro de 2004. Foi esse o dia em que o governo federal apresentou publicamente o biodiesel ao Brasil num evento com pompa e circunstância em Brasília (DF). Hoje, portanto, a indústria que se formou ao redor da proposta feita por Roberto Rodrigues e abraçada por Lula está completando 20 anos. Duas décadas ao longo das quais, esse setor foi de uma novidade promissora, para um ramo econômico pujante que deve, este ano, beirar os 9 milhões de m³ e movimentar bem mais de R$ 30 bilhões.

Pré-história

Aquela frase de Roberto Rodrigues, contudo, não foi dita no vácuo. Muito antes de se tornar assunto de conversas palacianas, o biodiesel já tinha décadas de história.

Foi em 1977 que o pesquisador da Universidade Federal do Ceará, Expedito Parente teve sua intuição sobre como reagir óleos e gorduras com um álcool e, com isso, gerar uma alternativa renovável ao diesel mineral. Embora ele não tenha sido a única pessoa a ter essa mesma sacada – houve precedentes – no mundo; em 1983, Expedito obteve a patente de sua invenção: o biodiesel.

Na época, o mundo ainda lambia as feridas deixadas pelos choques nos preços do petróleo da década de 1970 e o Brasil vinha do sucesso do Programa Nacional do Álcool (Proálcool) que viabilizou o uso do etanol como um substituto da gasolina. Havia, portanto, interesse numa solução para o diesel. Nos anos 1980, o biodiesel chegou a ser testado como parte de uma iniciativa governamental chamada Programa Nacional de Energia de Óleos Vegetais (OVEG). Os custos, no entanto, não permitiram que o biodiesel deslanchasse. O programa foi engavetado.

Nas décadas seguintes, a ideia de que seria possível fabricar biocombustível a partir de óleos e gorduras ficou quase que completamente restrita aos meios científicos e círculos empresariais ligados à cadeia das oleaginosas. Isso até chegar aos ouvidos de Roberto Rodrigues que – sendo ele um dos pioneiros do Proálcool – entendeu o potencial da nova tecnologia.

Especialmente se ela se somasse a uma outra tecnologia que, no começo anos 2000, estava dando os primeiros passos no Brasil: a soja transgênica. “Era questão de tempo até que nossa produção explodisse. A gente teria um crescimento muito grande da soja no Brasil e eu imaginava uma tecnologia que desse, tanto à soja quanto a outras oleaginosas, uma nova alternativa seria fundamental na hipótese de uma oferta excessiva”, explica o ex-ministro que hoje coordena o Centro de Agronegócios da Fundação Getúlio Vargas.

Ao menos no que diz respeito ao óleo, o biodiesel podia ser essa solução. Foi isso o que Roberto Rodrigues levou ao presidente Lula. “Ele gostou da ideia e me disse para ‘tocar para frente’. E foi aí que eu marquei uma audiência com a Dilma [Rousseff] que, na época, era a ministra de Minas e Energia. Mostrei para ela a proposta e disse que seria importante o Brasil ter um projeto nos moldes do Proálcool só que voltado para o diesel”, conta Roberto.

Por se tratar de um combustível, naturalmente, o Ministério de Minas e Energia (MME) acabou assumindo um papel de protagonismo. Isso fez da (então) ministra Dilma uma figura de proa no esforço para tirar a coisa toda do papel. Tanto que coube a ela fazer a exposição inaugural no lançamento oficial do PNPB. Essa identificação se fortaleceu quando Dilma assumiu a Casa Civil em 2005 e, depois, a Presidência da República em 2011.

Gênese do PNPB

Com mais gente do primeiro escalão do governo no barco, não demorou muito para que a proposta começasse a circular de uma forma mais estruturada pela Esplanada dos Ministérios. No começo de julho de 2003, foi formado na Casa Civil um grupo de trabalho (GT) envolvendo representantes de 12 ministérios que tinha missão estudar a viabilidade da proposta. Foi nessa época que o termo ‘biodiesel’ passaria a integrar o vocabulário de vários dos personagens mais importantes para a construção do PNPB.

“Eu não conhecia os pormenores sobre o biodiesel, mas fui designado coordenador desse GT. A missão que a gente recebeu foi ver a viabilidade e, depois, construir uma política pública (...) então passamos a desenvolver uma série de oitivas”, relembra Rodrigo Rodrigues. Servidor da Casa Civil, que coordenaria a Ceib até que o órgão fosse formalmente extinto por um revogaço promovido no governo Bolsonaro.

O simples fato da proposta ser colocada debaixo das asas da Casa Civil já sinalizava o quanto o Planalto esperava do biodiesel. “Se você monta um programa na Casa Civil é porque o presidente está pessoalmente interessado”, comenta o economista Arnoldo de Campos que, então, estava no Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).

Biodiesel social

Desde os primeiros dias da formatação do PNPB ficou claro que o governo Lula tinha ambições maiores para o biodiesel do que só encontrar um novo mercado para o óleo de soja. A meta do governo era que a indústria brasileira do biodiesel se tornasse uma ferramenta para alavancar a produção de agricultores familiares de algumas das regiões mais pobres do país. “O [ministro-chefe da Casa Civil], Zé Dirceu disse que havia interesse de que fosse algo inclusivo e que levasse em conta a agricultura familiar. Que não queriam repetir o Proálcool que tinha ficado para os grandes produtores de cana”, lembra ressaltando que essa diretriz tornou o MDA central nas discussões. “O recado que veio para a gente era que o biodiesel não deveria ser um programa apenas para uma região ou para uma única cultura agrícola. Que tínhamos que tentar diversificar”, complementa Arnoldo.

“O fomento à agricultura familiar foi uma bandeira que o presidente Lula levantou ao ‘comprar’ a ideia do biodiesel. O programa teria que ter esse viés da inclusão social e da interiorização da produção”, relata Ricardo Dornelles, diretor do Departamento de Biocombustíveis do MME entre 2006 e 2016. Fala que é complementa por seu ex-colega de ministério, Ricardo Gomide. “Desde o início, todo mundo sabia que a grande oportunidade estava no óleo de soja. Mas, politicamente, você tinha o discurso voltado para Semiárido e para o Nordeste”, ressalta.

A esperança (e a frustração) da mamona

Logo a ideia de que seria possível fabricar biodiesel no sertão do Nordeste a partir da mamona passou a ganhar força a ponto de se tornar um símbolo inicial do programa. Mesmo que a produção da oleaginosa fosse diminuta na época – continua assim até hoje – não foram poucas as vezes que Lula mencionaria a oleaginosa com a matéria-prima que viabilizaria o biodiesel. Em seu discurso na cerimônia de lançamento do PNPB, o presidente mencionou a planta quatro vezes. Acabou sendo uma frustração quando ficou claro que ela não daria conta do recado.

Embora admita que essa não tenha sido aposta vitoriosa, Arnoldo aponta que, olhando em retrospecto, ela não parece tão disparatada. “A mamona tem um teor de óleo de 50% e uma torta que podia virar adubo. Ela tinha algumas essas vantagens aparentes”, justifica apontando que o futuro do biodiesel – e sua interface a agricultura familiar – nunca dependeu da mamona. “Tinha gente que queria excluir a soja porque ela já tinha um mercado bem desenvolvido e não precisa do biodiesel. Eu sempre fui contra. Eu sabia que a soja seria a base do programa”, reconhece acrescentando que o plano era ir desenvolvendo outras oleaginosas com o tempo. “A gente tinha que olhar para o médio e o longo prazos”, prossegue.

E nunca se tratou necessariamente de uma coisa ou dou outra, como aponta Roberto Rodrigues. “As coisas nunca foram excludentes e eu sempre fui favorável ao pequeno produtor estar no projeto também”, diz. “O que me preocupava eram os volumes. Para que o biodiesel fosse uma alternativa significativa erem precisos volumes não viriam só do pequeno produtor”, adverte.

Durante quase todo o segundo semestre de 2003, o GT ouviu diversos especialistas em todas as áreas relevantes à produção de biodiesel. “Fizemos audiências com as pessoas que conheciam as tecnologias envolvidas em transformar óleo vegetal em combustível; com os produtores agrícolas das principais culturas oleaginosas para conhecer os potenciais das matérias-primas; com representantes da Anfavea para saber das experiências que elas tinham com biodiesel em países como a França e a Alemanha; e os agricultoras familiares, para entender o lado social”, diz Rodrigo. “[O GT] formou a opinião de que a ideia tinha potencial... que tínhamos tudo o que era necessário para substituir diesel por biodiesel”, prossegue apontando que o relatório publicado pelo GT ressaltou essa viabilidade e isso serviu como base para que o governo desse o segundo passo.

A Ceib e Grupo Gestor

Foi precisamente para implementar as recomendações deste relatório que, em 23 de dezembro de 2003, foram criados: a Comissão Executiva Interministerial do Biodiesel (Ceib) sob responsabilidade da Casa Civil que tinha um caráter mais político e seria a principal instância decisória do programa; e o Grupo Gestor que era mais operacional devendo tirar essas decisões do papel estava sediado Ministério de Minas e Energia (MME).

Essa dobradinha institucional se manteria durante toda a construção e consolidação do PNBP.

Para garantir o sucesso da empreitada, a equipe do MME montou um planejamento de trabalho destalhando os muitos componentes que seriam necessários colocar o futuro programa parasse de pé. “Nossa maior preocupação era criar a ‘carteira de identidade do biodiesel’. Como o mercado de energia é todo regulado, você não consegue colocar um novo produto se ele não estiver devidamente regulamentado. Tivemos que correr para mapear todas as portarias e decretos que precisariam ser editados para que o biodiesel entrasse na matriz energética”, explica Gomide. “Cada eixo tinha seu próprio planejamento com as ações necessárias, os responsáveis por cada uma delas e os prazos. A gente fazia esse acompanhamento no ministério”, prossegue.

Mesmo com um caminho das pedras bem traçado, foi preciso engenhosidade. Nem tudo, afinal, saiu exatamente como o governo gostaria. Gomide lembra, por exemplo, que a obrigatoriedade da adição de biodiesel ao óleo diesel não foi bem uma decisão do Executivo. “A MP [214/2024] saiu sem a obrigatoriedade, só uso autorizativo de 2%. A obrigatoriedade foi uma mudança imposta pelo Congresso e foi sentida até como uma derrota por parte do governo”, conta admitindo que sentiu uma pontada de desespero ao saber da mudança.

Leilões

A decisão do parlamento aumentou a pressão. Afinal, agora a equipe do governo tinha só até o final de 2007 para convencer o quase sempre renitente setor privado a investir milhões de reais num negócio ainda bastante obscuro a ponto de poder montar um parque industrial com escala suficiente para substituir pelo menos 2% do óleo diesel consumido no país por um produto que quase ninguém ainda sabia fabricar. Tudo isso com qualidade e, de preferência, sem estourar a inflação. “[Os empresários] queriam uma garantia de que o programa era sério. De que quando chegasse 2008, o governo não ia editar uma MP adiando ou reduzindo o percentual de mistura”, relata Gomide.

Para fazer essa travessia, surgiu a ideia de estruturar a comercialização do biodiesel por meio de leilões públicos nos quais a Petrobras estaria obrigada a adquirir volumes determinados que, só depois, seriam repassados para as distribuidoras. “A ideia [dos leilões] surgiu numa reunião na Presidência a partir de uma sugestão do Ministério da Fazenda. Era algo que nunca tinha sido feito com combustível antes”, relata Dornelles.

Com o B2 no horizonte, os leilões se impuseram como a saída para segmento. É como se lembra Rodrigo Rodrigues. “Nós formamos a convicção de que, se a gente não colocasse a Petrobras para comprar todo o biodiesel e, dessa forma, segurar a rampa de crescimento de produção não teríamos o biodiesel necessário para fazer a mistura”, diz.

Na teoria, os leilões dariam uma garantia aos investidores, que passariam a ter um contrato assinado pela Petrobras em mãos. De quebra, as negociações públicas reduziriam as assimetrias de informação no novo mercado ao permitir que todos os agentes soubessem quem estava vendendo biodiesel, quem estava comprando e por quanto. Deu certo. “Quando começaram os leilões a gente teve um ‘boom’ no número de unidades produtoras”, comemora Dornelles.

Ao final de 2005, o país tinha 10 usinas de biodiesel autorizadas somando 222 mil m³ em capacidade instalada. Já ao final de 2007 – às vésperas do B2 entrar em vigor – o número havia saltado para 50 unidades produtivas e 3,1 milhões de m³. Mesmo assim não dava para relaxar muito. Muitas das primeiras usinas eram plantas experimentais que tinham capacidade nominal, mas que ainda não haviam sido totalmente testadas. “Eu acho que tínhamos umas quatro ou cinco usinas que davam uma certa segurança de que poderíamos chegar aos 2%. E a qualidade do produto também nos preocupava, porque se começasse a ter caminhão parando por causa do biodiesel logo no começo queimaria a imagem do programa”, pontua Gomide.

O maior sinal de que as coisas iam bem foram as sucessivas antecipações da mistura obrigatória promovidos pelo governo nesse período. Nos termos da Lei 11.097/2005, o B5, que era esperado apenas para 2013, chegou em janeiro de 2010. Esse sucesso fez como que uma medida que – incialmente – era entendida como algo temporário fosse ficando. “Os produtores e as distribuidoras se acomodaram e demandaram sua continuidade. Aí formos aperfeiçoando o mecanismo”, afirma Rodrigo. Os leilões só seriam aposentados na virada de 2021 para 2022, substituídos pelo atual sistema de contratação.

Funcionou tão bem que os leilões que, inicialmente, eram pensados como uma solução temporária para que o setor se consolidasse, foram ficando. Até serem descontinuados em 2022, foram realizados 73 pregões regulares – e mais 5 complementares – movimentando perto de 54,4 milhões de m³ de biodiesel puro

Nada disso quer dizer que não havia tensão. Allan Kardec Duailibi assumiu a diretoria da ANP responsável justamente pela organização dos leilões em 2008 – ano em que a obrigatoriedade passou a valer – e acompanhou de perto essa construção. “Foi um processo muito conturbado e com muitas pressões de vários lados. E a gente não tinha experiência nenhuma. Estava tudo sendo criada naquele momento”, comenta acrescentando que o maior ponto de atrito para a ANP dizia respeito à definição dos preços de referência que serviam para balizar as negociações a cada certame realizado. “Havia muito questionamento sobre como distribuir os preços geograficamente (...) e para aqueles que precisavam de incentivo para a agricultura familiar. Perto disso, todo o resto até que foi tranquilo”.

Graduação

Apesar das muitas turbulências que o setor viveria durante a fase dos leilões – e depois dela –, a recorrência foi dando estrutura ao programa de biodiesel. Tanto que, anos após o fim dos pregões, o mercado permanece operando por bimestres como se acostumou a fazer desde o 28 leilão realizado no começo de 2013.

Aos poucos, o mercado foi se sedimentando e prescindindo de um acompanhamento mais ativo por parte do governo. Segundo Rodrigo Rodrigues, a última reunião da Ceib aconteceu em 2016 – cerca de três anos antes do colegiado ser formalmente extinto e ter suas atribuições incorporadas ao Conselho Nacional de Política Energética (CNPE).

Simbolicamente, isso marcou a maioridade da indústria de biodiesel que deixa de ser um programa de governo para se tornar uma engrenagem fundamente da economia nacional. E é bastante significativo que outro programa de biocombustíveis lançado por Lula –o Combustível do Futuro – tenha encontrado no biodiesel uma de suas bases.

O texto da Lei 14.993/2024 teve dois afluentes principais: uma proposta apresentada em setembro de 2024 para Ministério de Minas e Energia (MME) e outra de autoria do deputado federal Alceu Moreira, presidente da Frente Parlamentar Mista do Biodiesel (FPBio).

Essa maturidade do setor é percebida por quem – mais de 20 anos atrás – plantou a primeiríssima semente. “O biodiesel evoluiu muito nesses anos todos. Ele se tornou uma matriz para fazermos a transição energética rumo à uma economia verde que novas fontes de energia vêm usando como trampolim. O biodiesel é uma plataforma boa para darmos esses saltos”, encerra Roberto Rodrigues.

Leia a segunda parte da sérei "Biodiesel 20 Anos"

Fábio Rodrigues – BiodieselBR.com