Indústria defende ‘combustível do futuro’, mas critica uso obrigatório de biometano
Representantes do governo e da indústria defenderam nesta quinta-feira (25) o uso do biometano como forma de descarbonizar o setor de gás natural no país. A medida está prevista no projeto de lei (PL) 528/2020, que cria programas nacionais para incentivar os chamados “combustíveis do futuro”. Embora apoiem a iniciativa, setores da indústria criticaram um dispositivo do texto que prevê a compra obrigatória do biometano por produtores e importadores de gás natural.
Os especialistas participaram de uma audiência pública da Comissão de Infraestrutura (CI). O debate foi sugerido pelo senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), relator do PL 528/2020. De acordo com o texto, a meta anual de redução de emissões de gases de efeito estufa por meio pela participação do biometano no consumo do gás natural deve ser de 1% em 2026 e alcançar 10% em 2034.
O biometano é produzido a partir de resíduos como lixo orgânico e fezes. O insumo pode ser usado como fonte de eletricidade e gás natural em veículos, assim como na descarbonização de processos industriais e de transporte marítimo e na produção de hidrogênio e fertilizantes.
‘Obrigação’
O presidente da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), André Passos Cordeiro, afirma que “a obrigação de consumir” o biometano é um ponto do projeto que o setor “vê com grande preocupação”. Para ele, a medida pode gerar um custo adicional e reduzir a competitividade da indústria brasileira frente concorrentes internacionais.
“Só para a indústria química, com um percentual de 1% de mandato (compra obrigatória), os custos anuais chegam à casa dos R$ 171,3 milhões. Com 10%, podem chegar a R$ 1,7 bilhão. Esse é um problema sério, severíssimo que a gente tem. Temos que procurar reduzir os preços desses insumos, antes de obrigar a indústria a consumi-los. Essa obrigação de consumo com patamares de preços que temos hoje vai levar a uma perda forte de competitividade”, disse.
O presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Vidro (Abividro), Lucien Belmonte, reforçou a crítica. Embora afirme que o setor é favorável ao uso do biometano, ele pondera que o insumo “não é competitivo como o gás natural”.
“Se é tão bom e pode fazer tão fácil a transição energética, por que as próprias usinas sucroalcooleiras não utilizam o biometano? Uma grande sucroalcooleira chega a pagar R$ 150 milhões de diesel durante a safra. Por que não usa biometano? Se a gente está querendo colocar um mandato, é porque toda essa discussão não é real para o setor consumidor. Não é que a gente não quer biometano. A gente quer e muito. Os setores industriais não querem é o mandato, a obrigatoriedade. A gente quer um mercado livre, competitivo”, explicou.
A diretora-executiva do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), Sylvie D’Apote, também fez ressalvas aos artigos do PL 528/2020 que definem percentuais obrigatórios de biometano no consumo de gás natural. Para ela, os dispositivos são “uma solução antiga para um combustível novo”.
“Por que obrigar todo o setor de gás, todos os consumidores de gás, a consumirem esse combustível verde? A dona Maria que consume gás só para cozinhar precisa pagar um sobrepreço para consumir biometano? O que está se impondo é uma solução sobre outras. Existem várias possibilidades para descarbonizar nossas operações”, afirmou.
O gerente de transição energética da Petrobras, Cristiano Levone de Oliveira, disse que a companhia defende o uso do biometano como estratégia para descarbonizar a matriz energética do país. Mas sugere que a compra obrigatória seja precedida de uma análise de impacto regulatório (AIR) realizada pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), órgão de assessoramento do presidente da República. Levone alerta ainda que a flutuação na demanda pode frustrar investimentos feitos pelos produtores.
“Ao definirmos mandatos de compra obrigatória de biometano, teremos que observar este efeito. Em 2021, consumimos quase 43 milhões de metros cúbicos de gás natural. No ano seguinte, 15 milhões. Quem vai investir e se preparar para esse crescimento vai experimentar uma volatilidade que pode não ser boa. A gente precisa estudar isto: a dificuldade de se ter previsibilidade sobre a quantidade de biometano que deve ser adquirida por produtores e importadores de gás natural”, destacou.
Outro lado
Segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a mistura de 1% a 10% de biometano ao gás natural demandaria uma produção de 1 milhão a 13 milhões de metros cúbicos do insumo por dia. A presidente da Associação Brasileira do Biogás (Abiogás), Renata Isfer, afirma que apenas as usinas ligadas à entidade teriam capacidade de produzir 7 milhões até 2029. Para ela, o CNPE deve “calibrar” eventuais distorções entre a demanda e o percentual obrigatório previsto no PL 528/2020.
“A gente não duvida de que haverá volume suficiente para se chegar a 10%. Mas quem vai avaliar isso ao fim e ao cabo, olhando a situação concreta, é o CNPE. Não tem essa preocupação: “ah, e se não alcançar?” A gente vai ter o Conselho para calibrar isso. Se, por qualquer motivo, houver problema de falta de produto, o CNPE vai estar lá e pode manter um percentual baixo e inclusive zerar a meta. Está previsto no projeto”, disse.
O representante do Ministério de Minas e Energia (MME), José Nilton Vieira, também defendeu o papel do CNPE como gestor do Programa Nacional de Descarbonização do Produtor e Importador de Gás Natural e de Incentivo ao Biometano.
“Embora a gente saiba que há diferentes setores interessados inclusive no uso não-energético do biometano, todos os ministérios responsáveis por esses setores têm assento no CNPE e têm a oportunidade de fazer a interlocução com suas bases setoriais. Ainda que nós, o MME, tenhamos grande interesse em uma política que aumente o consumo energético de biometano, outros setores têm outras aplicações diferentes que podem gerar benefícios, externalidades positivas, que vão além do uso energético”, explicou.
‘Dúvidas dirimidas'
Para o senador Veneziano Vital do Rêgo, a audiência pública “foi muito proveitosa”. Ele salientou que nenhum dos debatedores se posicionou contra o PL 528/2020.
“O propósito é esse: fazer o melhor debate para que, com todas as dúvidas dirimidas, tenhamos condição de apresentar o melhor texto à apreciação e à deliberação do Senado. Nenhum dos senhores ou das senhoras veio para questionar importância que tem o projeto de lei dos combustíveis do futuro. Ninguém levantou a voz para dizer: “somos contra”. Estamos aqui aperfeiçoando essa matéria. Isso é muito salutar e facilita tremendamente o trabalho”, disse.
O debate contou com a presença dos senadores Esperidião Amin (PP-SC), Fernando Farias (MDB-AL) e Margareth Buzetti (PSD-MT). A CI deve realizar uma nova audiência pública sobre o PL 528/2020, ainda sem data definida.