Soja contribuiu para 10% do desmatamento na América do Sul em 20 anos, mostra estudo
A soja foi responsável por 10% do desmatamento ocorrido em duas décadas na América do Sul, indica novo estudo. Apesar de ficar atrás da pecuária bovina em áreas devastadas diretamente, o cultivo do grão teve papel central na dinâmica de especulação fundiária que incentiva o desmate: só no Brasil, o país com maior destruição de biomas (notadamente Cerrado e Amazônia), dobrou o número de área dedicado ao plantio no mesmo período. O processo tende a ser parecido: compram-se terras em fronteira agrícola, "empurrando" assim o boi para dentro de áreas de mata, em uma trilha de destruição do verde.
Liderada por Matthew Hansen, da Universidade de Maryland, a pesquisa é uma colaboração entre cientistas de Estados Unidos, Brasil e Argentina. O trabalho combinou imagens de satélite tiradas ao longo de duas décadas com observações feitas em terra para estimar quanto a sojicultura impactou diferentes tipos de vegetação no continente. O longo período estudado permitiu que fossem incluídas no mapa terras desmatadas primeiro para acomodar bois, e só depois convertidas em campos de plantio do grão.
Em artigo na revista "Nature Sustainability", os cientistas apontam que as áreas de plantações de soja duplicaram na América do Sul durante o período. A extensão foi de 26,4 milhões para 55,1 milhões de hectares, quase do tamanho do estado da Bahia. Na Floresta Amazônica, a área da soja se multiplicou por onze no período (de 400 mil para 4,6 milhões de hectares).
Para mapear o Brasil, o trabalho contou com a participação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).
De toda a conversão de mata em soja observada no período estudado, 53% ocorreram por influência "direta" da soja (a plantação ocupou a área desmatada em menos de 3 anos) e os outros 47% como influência "latente" da soja (em mais de 3 anos). Segundo os pesquisadores, um fator muito revelador sobre o papel da soja no desmatamento é a localidade das novas lavouras, mais do que a quantidade delas. Mesmo quando não estavam desmatando diretamente, a maioria dos novos campos de soja estão perto de quem está desmatando.
"A descoberta mais importante do nosso estudo está ligada à atribuição da soja como causa precedente da derrubada de florestas no contexto de perda total de floresta na América do Sul", afirma Hansen.
Os cientistas reconhecem a pecuária como um impulso mais imediato por trás do desmatamento, e afirmam que os 10% da devastação atribuídos à soja podem até parecer pouco. Esse cultivo, porém, frisam, tem papel sistêmico nas causas de derrubada da floresta.
"Apesar de a proporção ser relativamente pequena, essas terras são altamente concentradas em fronteiras ativas de desmatamento", dizem os pesquisadores. "Geralmente, a soja substitui terras de pastagem, e podemos esperar que essa dinâmica continue."
O bioma que mais acomodou novas áreas de plantio do grão foi o cerrado brasileiro, onde está metade das lavouras iniciadas neste século no continente. Outras áreas onde a soja ganhou extenso terreno foram o leste da bacia do Xingu, no Mato Grosso, e o sul do Maranhão. No Paraguai, a região do Chaco, bioma único, teve grande crescimento da área cultivada, bem como a Chiquitania, área de savana da Bolívia.
Moratória na Amazônia
Para tentar frear o avanço da sojicultura na Amazônia, especificamente, governos e sociedade civil costuraram há uma década e meia um acordo com as empresas distribuidoras de grãos. A iniciativa teve um sucesso razoável.
Sob a chamada Moratória da Soja na Amazônia, a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) e a Associação Brasileira dos Exportadores de Cereais (Anec) se comprometeram a não comercializar a produção de fazendas que tenham sido desmatadas depois de julho de 2008 e não financiar esses produtores.
Há um acordo para a região de cerrado promovendo adesão voluntária de produtores, mas que teve pouco efeito prático até agora, segundo o estudo de Hansen. A Abiove, no entanto, resiste a estender as regras da moratória da Amazônia para o cerrado.
"Não está nos compromissos da Abiove fixar uma data de corte abrupta, que resulte na exclusão de produtores de soja sem que tenham oportunidade para direcionar o crescimento da produção em áreas já consolidadas e que voluntariamente optarem pela conservação", afirmou a empresa em nota ao GLOBO. "A pegada de desmatamento da expansão da soja no Cerrado está caindo e é atualmente a mais baixa em 19 anos. De uma expansão de 5,8 milhões de hectares na área plantada de soja da safra 2013-14 até 2019-20, apenas 8% foram em área desmatada e 92% em áreas já abertas. (...) O Brasil é o maior produtor e exportador mundial de soja e usa cada vez menos áreas de vegetação nativa."
Estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) do ano passado, no entanto, estimou que 20% da soja exportada pelo Brasil ainda em 2018 tinham ligação com áreas de mata derrubada. Segundo Britaldo Soares-Filho, um dos líderes do grupo, os números dos cientistas divergem com os da indústria porque esta não contabiliza como problema a soja oriunda de propriedades desmatada se a área de mata derrubada ainda não está plantada. Muitos sojeiros, porém, desmatam suas terras para pastagem, outros cultivares ou para pura especulação.
“A soja e o gado costumam ser descritos como vetores do desmate, mas na verdade a causa do desmate é a busca pela terra. A soja e o gado são companheiros desse processo”, diz o pesquisador da UFMG.
Segundo o grupo liderado por Hansen, mesmo buscando evitar uma influência prejudicial na dinâmica fundiária do continente, é preciso cautela para evitar que os efeitos colaterais da presença da soja não sejam transferidos para outras áreas, como o Pantanal. Por causa disso, cientistas não têm aceitado todos os números que a indústria levanta.
"Atingir uma cadeia produtiva de commodity para a soja que seja livre de desmatamento requer a consideração de como expandir sua área de produção sem impulsionar indiretamente o desmatamento ao aumentar a demanda por terras de pastagem ou outros usos da terra", escrevem os cientistas no estudo.