Canabrás
O objetivo deste artigo é polemizar. E o foco da polemica é a possível, eventual, futura criação de uma Pré-salbrás, cogitada por setores do Governo e do seu principal partido de suporte. O Presidente da República tangencia o assunto e nem apóia, nem desapoia, nem muito antes pelo contrário dá qualquer pista sobre sua convicção pessoal. A tal nova empresa estatal deteria as reservas de petróleo descobertas pela Petrobras, na chamada camada pré-sal oceânica, alguma coisa acima de 5.000 metros de profundidade. A crer nas opiniões de especialistas, divulgadas pela mídia, o custo de extração do petróleo a esta profundidade, não seria possível a valores inferiores a US$60-75,00 / barril. Considerando um custo de refino de US$5,00 / barril, teríamos um valor médio de US$70,00 por barril de derivados, FOB na refinaria. Este valor equivale a US$440,00 por metro cúbico de derivados, incluindo combustíveis.
Corta o filme para uma lavoura de cana. Nas condições atuais, é possível produzir 41 barris de etanol (6,5 metros cúbicos) por hectare. O custo de produção do etanol de cana, para esta safra, é estimado em US$185,00 (R$296,00) por metro cúbico. De saída, teríamos um ganho no preço FOB (sem frete e sem impostos) de US$235,00 para cada 1000 litros comercializados, já que o custo do etanol equivale a 42% do custo dos derivados de petróleo.
No entanto, precisamos efetuar a correção pelo poder calorífico diferencial entre o mesmo volume de gasolina e de álcool e de diesel e de álcool, ajustados pelo rendimento térmico dos motores de ciclo Otto ou Diesel. No caso dos motores de ciclo Otto, o cálculo clássico é de substituir 1 litro de gasolina por 1,5 litros de etanol. Para o Diesel, embora seja uma tecnologia ainda em desenvolvimento, a proporção é de 1 litro de diesel por 1,1 litros de etanol, devido à maior eficiência da queima de diesel na presença de etanol vaporizado. O custo da gasolina na refinaria é de, aproximadamente, R$0,90 e do diesel R$0,62. Neste caso, apenas para efeito de equivalência, o litro de etanol como substituto da gasolina custaria R$0,44 e para substituição do diesel R$0,32.
A partir destes números, e do consumo de gasolina (24 bilhões de litros) e de diesel (38 bilhões de litros) estimados para 2008, é possível projetar a produção e os custos de abastecer a frota brasileira com petróleo do pré-sal ou a partir de biocombustíveis, até o esgotamento das reservas do pré-sal. Aí é que pretendo polemizar, para mostrar que nem o setor do agronegócio – no nosso caso de biocombustíveis – conhece a extensão de seu potencial, nem o Governo atenta adequadamente para este fato e a sociedade, desinformada, desconhece as reais oportunidades do país.
A Tabela 1 mostra um comparativo entre a energia total do petróleo utilizado, anualmente, pelo Brasil e de cana-de-açúcar (bioeletricidade e biocombustíveis). Nesta condição, parte da energia da cana substituiria diretamente os combustíveis fósseis (gasolina e diesel) e parte seria dirigida para a eletricidade, o que poderia significar mais transporte público (trem, metrô ou ônibus elétrico). Para o cálculo, considerou-se o consumo atual de petróleo (650 Mbarris); a energia contida em uma tonelada de cana, que equivale a 1,3 barris de petróleo; o crescimento da demanda de petróleo no Brasil, assumida como sendo linear e de 2% ao ano, considerado conservador porém realista; o incremento da produtividade de cana e o rendimento industrial de etanol de 2,5% ao ano.
Utilizando estas premissas, verifica-se que, até 2050, seria possível substituir, integralmente, a energia obtida do petróleo por cana produzida em uma área variável entre 4,8 e 5,9 Mha, além dos atuais 3,5 Mha. Estes valores seriam facilmente absorvidos pela agricultura brasileira, que dispõe de um potencial superior a 100 Mha de terras aráveis para expansão da agricultura.
Tabela 1. Comparativo de energia total produzida por petróleo e por cana
M barris de petróleo | Etanol | Custo em R$ | ||||||
Diferença | ||||||||
Ano
|
Anual | Acumulado | M ha | ML | Etanol | Petróleo | Anual | Acumulada |
2008
|
650 | 650 | 5,9 | 38 | 11 | 46 | 34 | 34 |
2010
|
676 | 1989 | 5,6 | 38 | 11 | 47 | 36 | 105 |
2012
|
704 | 3383 | 5,2 | 38 | 11 | 49 | 38 | 180 |
2014
|
732 | 4832 | 4,9 | 38 | 11 | 51 | 40 | 259 |
2016
|
762 | 6341 | 4,7 | 38 | 11 | 53 | 42 | 342 |
2018
|
792 | 7910 | 4,4 | 38 | 11 | 55 | 44 | 429 |
2020
|
824 | 9542 | 4,2 | 38 | 11 | 58 | 46 | 520 |
2022
|
858 | 11241 | 3,9 | 39 | 11 | 60 | 49 | 616 |
2024
|
892 | 13008 | 3,7 | 39 | 11 | 62 | 51 | 717 |
2026
|
928 | 14846 | 3,5 | 39 | 11 | 65 | 54 | 823 |
2028
|
966 | 16759 | 3,3 | 39 | 11 | 68 | 56 | 934 |
2030
|
1005 | 18749 | 3,1 | 39 | 11 | 70 | 59 | 1050 |
2032
|
1045 | 20820 | 2,9 | 39 | 11 | 73 | 62 | 1172 |
2034
|
1088 | 22974 | 2,8 | 39 | 11 | 76 | 65 | 1300 |
2036
|
1132 | 25215 | 2,6 | 39 | 12 | 79 | 68 | 1434 |
2038
|
1177 | 27547 | 2,5 | 39 | 12 | 82 | 71 | 1574 |
2040
|
1225 | 29973 | 2,3 | 39 | 12 | 86 | 74 | 1721 |
2042
|
1274 | 32496 | 2,2 | 39 | 12 | 89 | 78 | 1875 |
2044
|
1326 | 35122 | 2,1 | 39 | 12 | 93 | 81 | 2035 |
2045
|
1352 | 36475 | 2 | 39 | 12 | 95 | 83 | 2119 |
2046
|
1379 | 37854 | 2 | 39 | 12 | 97 | 85 | 2204 |
2048
|
1435 | 40697 | 1,8 | 39 | 12 | 100 | 89 | 2379 |
2050
|
1493 | 43654 | 1,7 | 39 | 12 | 105 | 93 | 2563 |
Em relação aos custos, fixando os valores da extração do petróleo e da produção de etanol de 2008, verifica-se que, em 2050, o Brasil teria acumulado custos extras de R$2,536 trilhões, se optasse por manter a mesma estrutura de combustíveis atuais comparativamente ao aproveitamento integral da energia de cana.
Já a Tabela 2 analisa, exclusivamente, a substituição de combustíveis derivados de petróleo por etanol, o que exige uma área maior, posto que não se considera a parcela da energia de cana que é transformada em bioeletricidade. Calcula-se a demanda futura de diesel e gasolina, usando a mesma taxa de crescimento de 2% ao ano; a relação de 1:1,3 entre a energia de um barril de petróleo e uma tonelada de cana; o crescimento da rentabilidade de etanol por hectare de 2,5% ao ano; e as relações de substituição de gasolina (1:1,5) e diesel (1:1,1) por etanol.
Neste caso, seriam necessários entre 7,8 e 12 Mha de cana-de-açúcar, para substituir os combustíveis fósseis, além dos 3,5 Mha atualmente cultivados para produção de etanol combustível. Como na simulação anterior, estes valores seriam facilmente absorvíveis pela agricultura nacional, pela grande disponibilidade de área potencial para agricultura no Brasil.
Tabela 2. Comparativo entre a produção de combustíveis derivados de petróleo e etanol de cana
Custo | ||||||||
Diesel | Gasolina | Etanol | Cana | Diferença | ||||
Ano | ML | ML | ML | M ha | Etanol | Petróleo | Anual | Acumulada |
2008 | 38 | 24 | 77,8 | 12 | 23 | 45 | 22 | 22 |
2010 | 40 | 25 | 81 | 11,7 | 24 | 47 | 23 | 68 |
2012 | 41 | 26 | 84 | 11,5 | 25 | 49 | 24 | 115 |
2014 | 43 | 27 | 88 | 11,3 | 26 | 51 | 25 | 165 |
2016 | 45 | 28 | 91 | 11,1 | 27 | 53 | 26 | 216 |
2018 | 46 | 29 | 95 | 10,9 | 28 | 55 | 27 | 269 |
2020 | 48 | 30 | 99 | 10,6 | 29 | 57 | 28 | 325 |
2022 | 50 | 32 | 103 | 10,4 | 30 | 60 | 29 | 383 |
2024 | 52 | 33 | 107 | 10,2 | 32 | 62 | 30 | 443 |
2026 | 54 | 34 | 111 | 10 | 33 | 64 | 32 | 505 |
2028 | 56 | 36 | 116 | 9,8 | 34 | 67 | 33 | 571 |
2029 | 58 | 36 | 118 | 9,8 | 35 | 68 | 34 | 604 |
2032 | 61 | 39 | 125 | 9,5 | 37 | 73 | 36 | 709 |
2034 | 64 | 40 | 130 | 9,3 | 39 | 76 | 37 | 782 |
2036 | 66 | 42 | 135 | 9,1 | 40 | 79 | 39 | 859 |
2038 | 69 | 43 | 141 | 8,9 | 42 | 82 | 40 | 938 |
2040 | 72 | 45 | 147 | 8,8 | 43 | 85 | 42 | 1021 |
2042 | 75 | 47 | 153 | 8,6 | 45 | 89 | 43 | 1106 |
2044 | 78 | 49 | 159 | 8,4 | 47 | 92 | 45 | 1196 |
2046 | 81 | 51 | 165 | 8,3 | 49 | 96 | 47 | 1289 |
2048 | 84 | 53 | 172 | 8,1 | 51 | 100 | 49 | 1386 |
2050 | 87 | 55 | 179 | 7,9 | 53 | 104 | 51 | 1486 |
Neste caso, em 2050, teríamos acumulado uma diferença de R$1,486 trilhões de economia, utilizando etanol de cana em substituição aos derivados de petróleo, considerando os custos FOB atuais. E, com três grandes vantagens: em primeiro lugar, após 2050, o petróleo do pré-sal estaria esgotado, enquanto a área de cana ainda estaria disponível para produção; em segundo lugar, reduziríamos em 90% a emissão de gases de efeito estufa; e, finalmente e não menos importante, a agricultura, incluindo a cana-de-açúcar, gera muito mais empregos que a cadeia petrolífera, que, além de baixo nível de emprego é altamente concentradora de renda.
Obviamente, os números aqui apresentados são estereotipados, pois não seria possível, de imediato alcançar a produção de cana prevista ou mesmo efetuar um aproveitamento integral da energia da cana. Eventualmente, se houvesse um planejamento estratégico que se iniciasse de imediato, na década de 20 seria factível aproximar-se dos índices de substituição previstos. Igualmente, a estrutura de custos deve se modificar ao longo do tempo, de uma forma difícil de antecipar no momento.
E aqui encerro a polêmica com uma provocação: A iniciativa privada demonstrou sua sustentabilidade e rentabilidade, na produção de etanol de cana, sem necessidade de subsídios de qualquer ordem. Assim como não precisaríamos de uma Canabrás, para produzir energia de cana para substituir, integralmente, o petróleo do pré-sal, será que precisaríamos de um cabide de empregos estatal, para substituir a Petrobras, que foi suficientemente eficiente para descobrir as reservas de petróleo escondidas a 5.000 m de profundidade, bem como as tecnologias inovativas para sua extração?
Décio Luiz Gazzoni é Engenheiro Agrônomo, membro do Painel Cientifico Internacional de Energia Renovável.