BiodieselBR.com 11 ago 2021 - 17:54 - Última atualização em: 13 ago 2021 - 15:27

Um episódio muito incômodo na história da cadeia brasileira de combustíveis teve uma virada abrupta na terça-feira (03) da semana passada. Nessa data, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) cancelou as autorizações de importação de gasolina e de solventes em nome da Copape Produtos de Petróleo. Embora soe um tanto arcana, essa notícia tem potencial para afetar de forma profunda um mercado que, apenas no ano passado, movimentou mais de 35,8 bilhões de litros país afora: o de gasolina C.

A Copape é uma formuladora. Diferente de uma refinaria que parte diretamente do petróleo para fabricar derivados, ela compra correntes de hidrocarbonetos prontas e as mistura para elaborar gasolina e diesel. Mesmo tendo quase duas décadas de mercado, a empresa nunca chegou a ser um nome conhecido do grande público e – salvo por álbuns breves momentos entre 2009 e 2010 – tinha uma fatia bastante modesta do mercado. Seu principal negócio era atuar como base de combustíveis terceirizada, alugando espaço em seu complexo em Guarulhos (SP).

Isso até meados do ano passado, quando, subitamente, ela tornou um verdadeiro fenômeno de vendas. Num período de somente seis meses – de junho a dezembro de 2020 –, as vendas de gasolina A formulada pela da Copape disparou de irrisórios 1,2 mil m³ para 144,4 mil m³.

O boom se prolongou até abril. Foram seis meses seguidos com vendas acima da marca dos 100 mil m³. Esse salto repentino fez com que a empresa disparasse no ranking de fornecedores de gasolina para o mercado brasileiro. De uma modesta 11ª posição em 2019, ela foi para o 5º lugar em 2020 e, agora, assumiu a vice-liderança (na parcial até maio).

Esse sucesso repentino alavancou também as vendas da Aster Petróleo, distribuidora que faz parte do mesmo grupo empresarial – ambas pertencem a uma holding com sede em Campo Grande (MS) chamada Control Participações. Assim como aconteceu com a Copape, a participação da Aster no mercado de gasolina deu uma guinada a partir de meados do ano passado.

Um feito e tanto. Ainda mais se consideramos que, por causa da pandemia do novo coronavírus, a demanda por gasolina recuou 6,1%. De 38,1 milhões de m³ para 35,8 milhões de m³.

Crescimento suspeito

Um salto desse porte acabou colocando a Copape no radar das autoridades sob suspeita de que ela estivesse adotando práticas pouco ortodoxas para alavancar suas vendas. Já no mês de março, a Secretaria da Fazenda e do Planejamento de São Paulo colocou a empresa sob o regime de fiscalização especial.

Uma nota técnica elaborada no final de junho pela Subcoordenadora de Fiscalização da Sefaz/SP, identificou “indícios de irregularidades” nas operações do grupo. De acordo com o documento, a Copape teria deixado de recolher aproximadamente R$ 1,38 bilhão aos cofres do Estado de São Paulo referente ao ICMS sobre as vendas de gasolina apuradas entre janeiro de 2020 até abril de 2021.

A relação com a Aster também era bastante problemática. A documentação analisada pelos fiscais indicava que a distribuidora declarava estar comprando gasolina da Copape por valores superiores aos que recebia de seus clientes.

Coincidência – ou não – as vendas da Copape simplesmente derreteram depois que o fisco paulista passou a acompanhar suas operações mais de perto. No mês de maio a formuladora comercializou menos de 30 mil m³ de gasolina, cerca de um quinto do volume que movimento um mês antes. Para evitar novos problemas, o Governo de São Paulo editou o Decreto 65.848/2021 exigindo que formuladores – como a Copape – passassem a recolher o ICMS a cada 15 dias.

As explicações para o sucesso repentino da Copape e da Aster no mercado de gasolina podem ser bem mais complicadas do que apenas uma fraude no ICMS. Uma reportagem publicada pela Folha de S.Paulo no final de junho afirma que a empresa não apenas tinha montado um complexo esquema para pagar menos imposto nas importações da nafta petroquímica que estava usando para formular seus produtos como, ainda por cima, havia sérias suspeitas de que ela, na verdade, estivesse importando gasolina semiacabada. A cassação das autorizações de importação da Copape parece reforçar essa suspeita.

Problema crônico

A ascensão e queda meteóricas da Copape acendeu um sinal amarelo para o setor de combustíveis. Há muitos anos o mercado vive um problema crônico com fraudes. Um estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) estimou que, em 2018, empresas do ramo sonegaram algo em torno de R$ 14 bilhões. Pelas contas dos pesquisadores, só com ICMS o rombo do Fisco está na casa do R$ 65 bilhões.

O problema se tornou tão enraizado que se formou todo um ecossistema de empresas que fazem da sonegação seu modelo de negócios. No jargão do setor, elas são as ‘devedoras contumazes’. Segundo o pesquisador da FGV Energia, Marcio Lago Couto, em sua forma mais típica essas são distribuidoras que existem só no papel e cujo único negócio é intermediar a venda combustíveis entre as usinas e os postos. “São compras que acontecem só no papel, o produto sequer passa pela empresa”, explica. “Elas emitem nota fiscal, mas não recolhem os tributos devidos. Quando o governo vai atrás da empresa, elas entram com liminares para se manterem abertos enquanto puderem e, quando o processo chega à última instância, a empresa é fechada”, prossegue.

Embora o governo costume sair vitorioso na Justiça, não passam de vitórias de Pirro. Como essas empresas não costumam ter ativos físicos – a estrutura de tancagem e os caminhões em suas operações são terceirizados – não há com que saldar a dívida que deixaram. No fim, mesmo que a FGV tenha identificado que o governo ganhe 90% dos processos desse tipo, a taxa de recuperação das dívidas corresponde a 1%.

Graças a essa ‘vantagem’ tributária, essas distribuidoras acabam tendo preços que concorrentes honestos não conseguem atingir. O resultado é que as empresas mais escrupulosas acabam perdendo espaço para concorrentes menos sérias. “Tem um ganho substancial em termos de margem, por não pagarem impostos [essas distribuidoras] entregam um combustível mais barato aos postos”, prossegue Marcio.

Concentrado no etanol

Embora não haja nenhum segmento imune, tradicionalmente os problemas estão mais concentrados no etanol. “O mercado de etanol hidratado é o maior problema de nossas associadas”, aponta Sérgio Massillon, diretor institucional da Federação Nacional das Distribuidoras de Combustíveis, Gás Natural e Biocombustíveis (Brasilcom).

O resultado é que, enquanto as associadas da Brasilcom detêm uma fatia de 85% das vendas de gasolina, seu share no etanol se limita a 15%.

Um dos motivos do problema se concentrar no etanol é a Petrobras. Nos mercados de combustíveis fósseis, a estatal fica responsável pelo recolhimento de impostos de toda a cadeia – a chamada tributação monofásica – o que reduz consideravelmente a margem de manobra para empresas mal-intencionadas. “Nos outros produtos, tais como os combustíveis fósseis, o etanol anidro e o biodiesel, a presença dos refinadores e importadores como substitutos tributários diminuem a ocorrência de fraudes tributárias”, explica Sérgio.

O mesmo não acontece com o etanol hidratado. Há propostas para que a tributação monofásica seja adotada também no segmento, mas elas sofrem certa resistência por parte das usinas. “As usinas dizem que [a monofasia] causaria um transtorno. A Petrobras é uma empresa muito grande e organizada, já no etanol temos empresas de tamanhos muito variados que poderiam ter dificuldade para absorver o custo de fazer todo o processamento tributário”, pondera Marcio.

A forma como os combustíveis são tributados também não ajuda. Além das alíquotas cobradas variarem significativamente de estado para estado, elas são cobradas na modalidade ad-valorem – onde se paga um percentual sobre o preço do produto – o que multiplica as oportunidades de fraude. “O sistema tributário brasileiro é muito complexo e dá muita margem [para fraudes]”, prossegue o pesquisador que é um dos autores de um relatório publicado mês passado propondo a criação de uma centro integrado de monitoramento onde seriam compartilhadas informações colatados por diferentes atores com o objetivo de detectar problemas.

“A opção pela monofasia tributária nos produtores e importadores e a adoção de tributos exclusivamente ad-rem [cobrados como um valor fixo] e sem diferenças entre as diversas UFs, permitiria evitar em sua quase totalidade as práticas anticoncorrenciais e ilegais, pontua Sérgio Massillon.

Biodiesel

Ver práticas que pareciam restritas se alastrando por elos da cadeia considerados relativamente seguros foi o que arrepiou tanta gente no setor com as fraudes bilionárias da Copape. E o setor de biodiesel pode ficar particularmente exposto.

Desde que foi criado até hoje, o setor de biodiesel tem sido blindado pelo sistema de leilões. Além de toda a comercialização acontecer às claras com volumes e valores públicos, ao menos formalmente todo o produto passa pela Petrobras que fica responsável por fazer a substituição tributária da cadeia.

Com o governo federal decidido a acabar com os leilões públicos de biodiesel no começo de 2022 essa blindagem pode sair de cena. Em setembro do ano passado um relatório elaborado pelo Ministério de Minas e Energia (MME) chegou a recomendar que o novo sistema de comercialização de biodiesel refletisse o adotado para o etanol anidro.

O esboço do novo modelo foi apresentado pela equipe da ANP só no final de abri. Ele estabelece que as distribuidoras com participação de mercado superior a 3% teriam que fechar contratos bimestrais equivalentes a pelo menos 80% de sua demanda. Os outros 20% poderiam ser adquiridos num futuro mercado spot. Também seria liberada a importação de biocombustível.

Para o pesquisador da FGV, essa pulverização realmente aumenta os riscos. “Se você pulveriza a venda, você corre o risco de ter problemas semelhantes aos do setor de etanol. Essa é uma das grandes preocupações”, alerta Marcio Lago.

A Brasilcom defende o fim dos leilões de biodiesel. Segundo Sérgio Massillon, a abertura do mercado e a liberação das importações criaria mais competição entre os fabricantes, permitiria a possibilidade de contratações de longo prazo mais vantajosos e incentivaria a realização de investimentos em novos arranjos logísticos otimizados.

Apesar disso, em pelo menos um aspecto, a entidade que representa os distribuidores não quer que o modelo mude. “A Brasilcom defende que sejam mantidas as regras atuais de tributação concentradas nas refinarias e/ou importadores de diesel fóssil”, encerra Sergio.

Em tempo, no dia seguinte ao da publicação dessa reportagem a ANP publicou a Autorização 476/2021 no Diário Oficial da União. Nela, a agência reguladora volta a autorizar a Copape a “exercer atividade de agente de comércio exterior” abrindo uma nova janela para que a empresa retome as importações.

Fábio Rodrigues – BiodieselBR.com