Soja: ajuste saudável
Os números finais da safra 2023/2024 e as perspectivas para o período 2024/2025 da soja só serão divulgados oficialmente pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) no início de setembro, mas, dadas as incertezas climáticas que resultaram na calamidade no Rio Grande do Sul, é possível projetar com boa margem de segurança que não haverá uma produção recorde na próxima colheita, como a observada no período 2022/2023, quando o Brasil atingiu a marca de 154,6 milhões de toneladas.
Segundo o Boletim Logístico da Conab anunciado em junho, 99,8% da produção do grão já havia sido colhida até o fim de maio. Com base na amostragem de dados coletados junto a 91% do mercado, a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) já antecipou que a safra atual deve fechar em torno de 152,5 milhões de toneladas, acrescidas da importação de 800 mil toneladas vindas do Paraguai nos últimos meses, com estoque geral de 4,5 milhões de toneladas. “A estimativa inicial era atingir 170 milhões de toneladas, mas tivemos quebra de 10 milhões de toneladas no Mato Grosso em função da estiagem e, posteriormente, das enchentes no Rio Grande do Sul. Mas é um quadro confortável quando pensamos em suprir o mercado interno e atender às demandas do exterior”, afirma Daniel Amaral, diretor de economia da Abiove.
Segundo projeções da entidade, as exportações somadas de grão, farelo e óleo devem cair do patamar de US$ 67,317 bilhões registradas na safra passada para US$ 54,127 bilhões no período que agora se encerra. Para Amaral, não se trata de uma perda de competitividade ante outros mercados, e sim de um ajuste de mercado. “Em 2023, tivemos uma safra excelente em razão das condições climáticas favoráveis e da quebra da produção norte-americana e da Argentina, nossos principais competidores há mais de uma década. Em paralelo, houve maior demanda por farelo para produção de insumos e os preços ficaram favoráveis para nós. Já na safra atual, tivemos problemas climáticos que não ocorreram nos Estados Unidos nem na Argentina, além de os custos logísticos serem menores no país vizinho pela distância entre as zonas produtoras e os portos”, explica. Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic), no dia 8 de julho, a participação do agronegócio nas exportações totais em 2024 representa 22,89%, dos quais 17,42 pontos percentuais são oriundos da soja. Há anos, o principal mercado é a China.
O diretor da Abiove aponta ainda uma tendência no mercado doméstico em relação à maior demanda no mercado interno pelo óleo para produção de biodiesel e glicerol. “É uma tendência. Passou de 7,342 bilhões de toneladas em 2022 e deve fechar 2024 com 9,7 bilhões de toneladas. No caminho inverso, tem caído a demanda para o óleo doméstico, talvez por mudanças de hábitos alimentares”, afirma. A explicação para a maior procura do óleo é a obrigatoriedade do biodiesel de 12% para 14% no diesel.
A pergunta de US$ 1 milhão é quanto ao papel do Rio Grande do Sul na próxima safra. Como irá se comportar o solo encharcado e lavado de nutrientes após os estragos causados pela calamidade do primeiro semestre? O Estado é o segundo maior produtor da oleaginosa – 20,19 milhões de toneladas plantadas em uma área de 6,76 milhões de hectares em 2024, segundo informe de junho da Conab –, com produtividade de 2.985 kg/ha, o que o coloca apenas atrás de Mato Grosso, responsável por 39,34 milhões de toneladas em uma área de 12,37 milhões de hectares.
A plantação está concentrada em municípios das regiões sul e oeste do Estado, que não foram tão atingidas como a região metropolitana de Porto Alegre, e cerca de 70% já haviam sido colhidos. Mas os estragos foram consideráveis e ninguém se arrisca a falar sobre os danos ao solo. No município de Canoas, ao lado da capital gaúcha, um armazém da empresa Bianchini não resistiu aos temporais e se rompeu, causando a perda de 100 mil toneladas de soja. O plantio terá início a partir de agosto, mas o temor agora é quanto aos possíveis efeitos do fenômeno climático La Niña, que historicamente reduz a incidência de chuvas nas regiões Centro-Oeste e Sul.
No mercado da soja, os preços são ditados pela Bolsa de Chicago, tendo como referência o “bushel”. Conforme as condições de mercado, o exportador faz jus a um bônus conhecido como prêmio, que pode ser negativo ou positivo. Segundo estudo da Kepler Weber, o Brasil padece de um déficit logístico superior a 100 milhões de toneladas em razão do aumento vertiginoso da produção nos últimos dez anos e a falta de armazéns climatizados para estocar o grão no aguardo de melhores preços. “Nos últimos dois anos, os prêmios foram negativos (deságio) e os exportadores deixaram de ganhar R$ 41,4 bilhões”, afirma Bernardo Nogueira, CEO da Kepler Weber. Segundo o executivo, o agravamento desse cenário deverá gerar um reordenamento das prioridades das companhias, que deverão investir mais em armazenagem do que na compra de terras para cultivo.
Recentemente, a multinacional Bunge comprou cinco armazéns no Mato Grosso e em Goiás e firmou parceria com a Zen-Noh na compra de 50% da Rumo no Terminal 39, localizado na margem direita do porto de Santos. “Temos mais de 70 silos para acompanhar os sucessivos recordes na produção de grãos”, afirma Rossano de Angelis Junior, vice-presidente de agronegócios da Bunge para a América do Sul. Com 59 armazéns distribuídos no Centro-Oeste, a brasileira Caramuru deve investir R$ 400 milhões em logística até 2028, segundo Célio Garcia de Oliveira, diretor de originação e armazéns gerais. “Vamos reforçar as operações nos portos de Santos e Santana (AP)”, afirma.
Segundo Lucilio Rogerio Aparecido Alves, professor da Esalq-USP e pesquisador do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), as perspectivas para a próxima safra apontam para condições climáticas nos Estados Unidos. “A possível estiagem no Rio Grande do Sul pode afetar Argentina e Paraguai e pode haver pequeno aumento de área de plantio do Brasil. A alta demanda por farelo vai continuar.” Segundo o professor, os gargalos logísticos por si só não geram prêmios negativos na formação dos preços, mas eventual ampliação dos pontos de armazenagem provoca clara falta de rentabilidade. “Ainda há muitas barreiras logísticas”, afirma.
Para Amaral, da Abiove, a construção da polêmica ferrovia Ferrogrão é essencial para que haja redução de custos de frete, menor emissão de gases de efeito estufa e maior produtividade. Em maio, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu por 90 dias o processo que questiona a legalidade do projeto da ferrovia Ferrogrão, obra de 933 quilômetros projetada entre o porto de Miritituba, em Itaituba (PA), e Sinop (MT), em paralelo com a rodovia BR-163. O projeto sofre oposição de ambientalistas pelos impactos eventuais a serem causados por atravessar áreas indígenas no Parque Nacional do Jamanxim.
O projeto tem custo previsto em mais de R$ 20 bilhões e estimativa de redução dos fretes das cargas do Centro-Oeste em 30%, articulado com o modal hidroviário no rio Tapajós rumo aos portos do Arco Norte, como também de Sinop aos portos do Sudeste. O governo federal não detalhou os recursos para a Ferrogrão no novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Já a BR-163 tem recebido investimentos na manutenção. “O governo tem colocado as rodovias da região em condições aceitáveis de trafegabilidade”, afirma o diretor da Abiove.
Em uma cultura que exige alta produtividade já se observa o uso de ferramentas de inteligência artificial (IA) na cadeia produtiva. Maior produtora nacional de sementes, com 164 mil “big bags” em 2023, a Boa Safra está em fase de testes com a ferramenta NIR (da brasileira Grandeo), que, por meio de raios infravermelhos, traça as características fisiológicas de uma semente e as compara com os exames laboratoriais feitos pela companhia. “O processo demorava até um dia e agora é instantâneo”, comemora Glaube Caldas, diretor de operações da Boa Safra, que aguarda exames conclusivos para adotar a nova tecnologia.
As grandes indústrias processadoras também já avançam na IA. “Estamos evoluindo no desenvolvimento de sistema de otimização e predição de nossos processos de qualidade de grãos, que estão nos ajudando a melhorar nossa eficiência com a diminuição de descartes de resíduos, redução do uso de nossos secadores e aumento de nossas capacidades”, afirma Ricardo Nascimbeni, diretor de supply chain da Cargill. Por sua vez, a Bunge fechou parcerias com duas agritechs para a gestão inteligente de fazendas e na análise socioambiental por meio de sensoriamento remoto, acompanhando as mudanças no uso da terra.
Guilherme Meirelles – Globo Rural