Entrevista: Osvaldo Carioca
Um desbravador incansável e sereno. Em poucas palavras, talvez essa seja uma síntese honesta de Osvaldo Beserra Carioca - que, hoje, representa com maestria a Ciência cearense. Às voltas com a coordenação de seminário internacional sobre energia eólica - que está marcado para junho, em Fortaleza, numa parceria com a União Européia e o Governo do Ceará -, o professor Carioca contou um pouco da sua história ao O POVO.
Trata-se de uma trajetória que se confunde com a evolução da pesquisa das energias renováveis no País. Mais do que isso, a história vivida até aqui por Carioca revela a obstinação de um homem que arregaçou as mangas, desde muito jovem, e começou a trabalhar na quebra do paradigma energético. Sua busca tem o desenvolvimento sustentável como objetivo. Dono de uma preocupação genuína e realista, está muito atento para o quê virá. Não há conto de fadas e a energia renovável terá que coexistir com os combustíveis fósseis. O desafio é encontrar a melhor maneira de compatibilizar as duas matrizes. Pelo bem do ser humano.
Num tempo em que a sobrevivência no globo é ameaçada por nossas próprias ações, é bom parar e ouvir as lições que a Academia ensina. Afinal, foram a desinformação e a (des)educação ambiental que nos trouxeram até aqui. É preciso andar, diz Carioca... Porque o caminho ainda é longo. E, a nós, só nos cabe percorrê-lo com disposição.
O POVO - O senhor é referência nacional numa área muito importante hoje: as energias renováveis. Que caminhos o trouxeram até aqui?
Oswaldo Beserra Carioca - Bom... Fiz mestrado e doutorado na Coppe, do Rio de Janeiro, que é referência na América Latina. A minha área é a termodinâmica. Isso foi nos anos 70, período em que se deu o auge da crise do petróleo. Quando voltei ao Ceará, fiz uma opção pela energia de biomassa. Em 1978, surgiu a pedra fundamental do que viria a ser o biodiesel - um projeto do Ceará. Outro projeto desse começo foram as usinas integradas - que eram parte de complexos agropecuários.
OP - O que o senhor destacaria destas lições?
Carioca - O mundo todo tem muita área semiárida; muitas plantas apropriadas para desenvolver o biodiesel. Ele (Calvin) citava as plantas usadas para fazer cercas vivas, no sertão, e os cactos que produzem um látex. Isso para, de forma nenhuma, usarmos óleos vegetais para fazer biodiesel.
OP - Este projeto nasceu num momento em que a cultura extrativista era muito forte...
Carioca - Como ainda é hoje!
OP - Mas, nos dias atuais, há pelo menos um discurso que se contrapõe a esta visão... Que é o discurso do desenvolvimento sustentável...
Carioca - Certamente.
OP - Gostaria de voltar um pouco ao ambiente que abrigou o surgimento do biodiesel...
Carioca - Sim. Tivemos o primeiro programa de biodiesel brasileiro: o Pró-Biodiesel. Ele foi gerado por nós, dentro do nosso laboratório. O professor Expedito Parente veio trabalhar com a gente. Aprendeu a lição. Só que não usou a lição adequadamente. Porque usar mamona e querer fazer dela biodiesel é uma coisa que agride.
OP - Poderia explicar melhor?
Carioca - O óleo de mamona é valiosíssimo, com enormes aplicações na produção de plástico, polímeros... É um óleo que custa US$ 800 mil a tonelada e o biodiesel vale US$ 400 mil ou US$ 500 mil...
OP - A mamona foi uma escolha errada, então?
Carioca - Foi errada.
OP - O tempo já provou isso?
Carioca - Está provando. A ANP acabou de liberar - está na Internet - uma nota reconhecendo que a mamona não é uma boa opção. Agora, imagine o quanto o Estado do Ceará investiu nisso. Mas acho que não foi em vão. Isso vai ser aproveitado de alguma forma.
OP - Como pode se dar este aproveitamento que o senhor sugere?
Carioca - Tem uma patente que nós fizemos com a Coelce, agora, que é o uso de um derivado da mamona para produzir óleo para transformador. Essa é a terceira patente do mundo. Os americanos publicaram outras duas. O mesmo que ocorre com os combustíveis, se dá em outros setores como o de plástico: está todo mundo mudando as matrizes fósseis para as renováveis.
OP - O senhor estima em quanto tempo ocorrerá esta transição total para as matrizes renováveis?
Carioca - Ah... Acho que vai demorar muito tempo. Não é tão curta (a transição) quanto as pessoas imaginam.
OP - Uns 50 anos?
Carioca - Talvez 40. Fala-se muito em 30 anos. Mas não acredito nisso. Porque há um conjunto de coisas que acontecem simultaneamente. Primeiro, as novas descobertas de petróleo - veja o pré-sal aí.
OP - O que não é necessariamente um motivo para comemorar...
Carioca - Exato. O segundo ponto são as reservas de gás natural que são muito grandes. Nós temos reservas, no mundo, para 300 anos. Então, a era fóssil não vai acabar! Tem, ainda, a tecnologia de carvão. Vamos pôr aí mais 500 ou 600 anos. Porque o grande problema do carvão é o impacto ambiental. E a solução disso está em curso. Muita gente condena o carvão. Há muitas afirmações primárias nessa questão.
OP - E o senso comum atrapalha o processo?
Carioca - Atrapalha. Eu diria que é preciso colocar isso muito criticamente. E, às vezes, as pessoas incorporam conceitos e os aplicam à sua vida. Veja os pequenos empresários. No Ceará, quantos pequenos empresários não entraram nessa de biodiesel de óleo de mamona? Realmente, essa coisa do desenvolvimento descentralizado fascina... Não só a quem é estudioso; mas ao desenvolvimento regional e ao local; aos arranjos produtivos... Mas, queiramos ou não, nós vivemos num modelo capitalista. As coisas têm que ser feitas sobre uma plataforma de custos... Não há como viabilizar uma microdestilaria de biodiesel.
OP - Então, estamos falando de um negócio que só é viável na escala?
Carioca - Sim. Na economia de escala. Principalmente, quando se trata de um mercado energético, que é de grandes números. O que não invalida a ideia de se ter uma política de apoio ao produtor; mas como fornecedor.
OP - Dentro das matrizes renováveis que se colocam hoje, qual delas é a mais viável para o Ceará. Seria mesmo a eólica?
Carioca - Certamente, certamente... A eólica é a energia mais factível nesse momento.
OP - E o senhor vê, no futuro, o Ceará como grande pólo desta energia ou temos adversários no mesmo patamar. Pergunto porque o Governo do Estado tem um discurso bastante otimista - como cabe aos governos - no qual elege o Ceará como o maior exportador e/ou produtor de energia eólica do País.
Carioca - Eu acho que a gente deveria saber usar bem essa energia, sabe? Afinal de contas, nós pagamos caro por estar usando a energia dos outros. Então, essa lição a gente tem que aprender.
OP - E o Túnel de Vento, que é um projeto do Ceará, como o senhor o definiria?
Carioca - O Túnel de Vento é um projeto do CNEA (Centro de Energias Alternativas e Meio Ambiente), com apoio do Ministério de Minas e Energia. Para utilização correta da energia eólica, precisamos de medidores de ventos, de curvas de ventos durante um longo espaço de tempo... Até mesmo para projetar edifícios, a gente precisa do Túnel de Vento. Então, todo esse know how tem em outros dois lugares do País: no CTA (Centro Técnico Aeroespacial, da Aeronáutica brasileira) e em São Carlos, no interior de São Paulo. O nosso é o terceiro.
OP - Em qual estágio está o projeto?
Carioca - Nós terminamos o prédio. O recurso que foi concedido ao projeto foi pequeno. Estamos conversando com o Ministério.
OP - O senhor acredita que o Túnel comece a operar ainda este ano?
Carioca - A tendência é até o fim do ano.
OP - Em seu trabalho, o senhor também destaca outras alternativas...
Carioca - Ah... é a questão do lixo, que é um dos maiores problemas das sociedades urbanas hoje. Todo mundo fala sobre lixo como todo mundo fala sobre futebol... O lixo, pelo fato de estar sendo gerado ao lado das grandes cidades, é a fonte de energia mais barata e mais conveniente que nós temos.
OP - Mas ninguém atentou ainda para isso. Não há políticas públicas com foco no lixo...
Carioca - Pois é. Estou com um projeto de estudo de uma termelétrica a lixo, que vem do governo passado (de Lúcio Alcântara). Para ser sincero, isso vem desde a gestão de Antonio Cambraia à frente da Prefeitura de Fortaleza, quando mostrei a ele o que era uma usina de lixo - que funciona pela queima do metano (que é o CH4, o primeiro hidrocarboneto). Nós estamos ao lado de uma fonte espetacular. Fortaleza gera 4 mil toneladas de lixo todo dia. Há energia, aqui, suficiente para toda a iluminação pública e para todo o consumo residencial. E ainda reduz-se um volume estrondoso de resíduo a pó - que pode ser devolvido à terra sem problema ambiental.
OP - Vivemos, hoje, um momento de transição rumo à quebra do paradigma da energia não renovável. A ciência, o mercado, sociedades e os governos parecem olhar na mesma direção. Na sua avaliação, como o mundo chegou até aqui? Por necessidade ou consciência ambiental?
Carioca - A história é cíclica. Essa coisa se repete muito em relação à energia. Desde o ciclo da madeira, nos séculos 17 e 18 até a biomassa - passando pelo carvão e petróleo com seus derivados. Lá, também houve uma crise de proporções equivalentes às da que falamos hoje. A diferença é que, naquela época, o homem não tinha consciência do problema da atmosfera. Só chegou-se ao problema do CO2, no século 20. Foi no Clube de Roma, na segunda metade da década de 1960. Concluíram que vivíamos um problema sério. Os ecologistas também começaram a identificar os efeitos - como o degelo, por exemplo. Em síntese, foi o Clube de Roma que fez a pergunta clássica: ‘como se vai reduzir o impacto do consumo sobre o meio ambiente?’.
OP - Da conclusão do Clube de Roma até essa primeira década dos anos 2000 (que ainda nem terminou), a discussão chegou às pessoas. Já temos supermercados fazendo campanhas pelas sacolas retornáveis, para citar apenas um exemplo. Como o senhor avalia isso? É uma evolução rápida ou não?
Carioca - Aqui, não. Alguns conceitos ainda nem chegaram. Na Alemanha, onde eu passo um mês por ano, no meu apartamento na Universidade, eu e minha mulher usamos a sacola retornável há muito tempo. Desde 1978. Aqui, aos sábados, quando vamos ao supermercado, eu me impressiono com a quantidade de sacos plásticos. E, olha, que eu faço pequenas compras.
OP - E, aqui no Brasil, o senhor usa a sua sacola retornável?
Carioca - Eu uso. Tenho uma sacolinha que eu levo às compras.
OP - O senhor avalia que a preocupação ambiental é genuína...
Carioca - Sim. E é a questão climática a maior preocupação. Estamos sentindo isso à flor da pele. O mundo todo sente isso.
OP - A propósito disto, o quê o senhor diria sobre a atuação dos movimentos ambientais? Eles caminham lado a lado com a Academia?
Carioca - O movimento de defesa de meio ambiente está fora de foco, hoje, porque ainda utiliza o conceito de que o meio ambiente é um depósito. Há um conceito internacional novo. Veja: só em dois países no mundo (Canadá e Holanda), as contas nacionais levam em consideração o custo de degradação do meio ambiente. O custo ambiental deve estar embutido no custo dos produtos e só esses dois países já fazem isso. E o movimento ambiental não tem esse foco, ainda.
OP - O movimento ambiental está defasado. É isso?
Carioca - Está. Dentro desse conceito, sim. Eu tive a oportunidade de dizer isso a representantes do Greenpeace, quando o navio deles esteve em Fortaleza.
OP - Nesta linha de raciocínio, qual é o papel dos ambientalistas?
Carioca - Os ecologistas são de uma área de especialização muito bonita, mas... Acho que apaixona muito. E você não pode tratar destas questões sem uma base científica muito sólida. Eu vejo com muito bons olhos se falar em educação ambiental. Mas é preciso casar essas duas coisas.
OP - Então, a situação ideal seria o casamento entre o conhecimento dos cientistas e atitude do ambientalistas?
Carioca - Certamente. Agora, é preciso fazer isso chegar ao cidadão. Por exemplo, um movimento como esse do Reponsible Care... Fui a uma palestra deles em São Paulo. Num Anhembi lotado de empresários, sabe quantos representantes de empresas do Nordeste estavam presentes? Nenhum.
OP - Como o senhor imagina o mundo daqui a 10 anos, diante deste novo cenário de mais consciência ambiental e busca de matrizes energéticas mais limpas e sustentáveis?
Carioca - Eu diria que não será muito diferente do atual. Mas eu espero que ele mude conceitualmente. Espero que estas questões sejam discutidas. Entrevistas como essas, por exemplo, são importantes. Há muitas pessoas com nível de conhecimento que precisam ser ouvidas e não estão sendo. Como também há muita gente falando sem a base necessária para tratar questões dessa natureza. Então, eu espero que o mundo esteja um pouquinho melhor, mas muito mais preparado conceitualmente. Se isso acontecer, viveremos melhores dias.
PERFIL
Osvaldo Beserra Carioca é mestre e doutor pela Coppe/UFRJ, escola de referência em Engenharia, na América Latina. Com pós-doutorado na Alemanha, onde passa parte do ano, é autoridade reconhecida nacionalmente na área de termodinâmica - ramo do conhecimento que trata das conversões de energia. Leiam-se energias renováveis.
Seu trabalho começou no auge da crise do petróleo, na primeira metade dos anos 1970. De volta ao Ceará, fez uma opção pelo desenvolvimento sustentável, quando decidiu trabalhar com a energia de biomassa.
É contemporâneo da eclosão do Pró-Álcool e esteve à frente do primeiro Congresso Brasileiro de Energias de Biomassa, ainda na década de 1970. Trouxe ao Ceará ninguém menos que o prêmio Nobel de Química, Melvin Calvin.
Em 1978, foi um dos que colocaram a pedra fundamental de um projeto cearense: o biodiesel. Hoje, dedica-se ao comando do Cenea (Centro de Energias Alternativas e Meio Ambiente), onde está sendo construído o terceiro túnel de vento do País.
BASTIDORES
- É o Green Chemestry que está por trás das três conferências mundiais de meio ambiente realizadas pelas Nações Unidas. Há um outro movimento da indústria química chamado Responsible Care, cujo objetivo é tornar as indústrias menos poluidoras. Para afirmar que uma matriz energética é cara, é preciso avaliar o custo de não tratar aquilo que é depositado no meio ambiente. “O meio ambiente não é depósito; eu posso não jogar tudo lá”, rebate Carioca.
- Os maiores poluidores da Terra não são os carros, como se acredita. São as termelétricas movidas a carvão e a gás natural. Osvaldo Carioca é um defensor da Química Verde, movimento que existe para compatibilizar o sistema fóssil com as energias renováveis. É o Green Chemestry que está por trás das três conferências mundiais de meio ambiente realizadas pelas Nações Unidas.
- As fontes fósseis geraram um desenvolvimento tecnológico sem precedentes. Nós temos que aprender com isso e minimizar os efeitos dos combustíveis fósseis. E dar os passos que estamos dando na busca de energias renováveis. Os dois modelos não são excludentes. Um tem que aprender as lições do outro, pois vão coexistir por muito tempo.” Pouca gente sabe, mas o programa de álcool brasileiro tem 100 anos mais ou menos... Há trabalhos datados desde 1921. Foi nessa época que começou, realmente, o programa nacional do álcool. Nós não tínhamos petróleo, falava-se que o álcool seria o combustível brasileiro. A Petrobras foi criada só em 1954.”
- O movimento ambiental está fora de foco com o conceito internacional. Mas não é só. Apenas em dois países no mundo (Canadá e Holanda), as contas nacionais levam em consideração o custo de degradação do meio ambiente. O custo ambiental deve estar embutido no custo dos produtos e só esses dois países já fazem isso.
Ana Cristina Cavalcante