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Luiz Pereira Ramos

A Qualidade da Matéria-Prima para a Produção de Biodiesel - Parte 2


Luiz Pereira Ramos - 24 ago 2006 - 09:36 - Última atualização em: 09 nov 2011 - 19:22

O óleo de soja surgiu como um subproduto do processamento do farelo e, atualmente, tornou-se um dos líderes mundiais no mercado de óleos vegetais. Dada a grandeza do agronegócio da soja no mercado brasileiro, muitos consideram que esta oleaginosa apresenta o maior potencial para servir de modelo para o desenvolvimento de um programa nacional de biodiesel. Mas, será que o óleo de soja é realmente a matéria-prima ideal para a produção de biodiesel no Brasil? Particularmente, acredito piamente que a produção nacional deveria ser fomentada com culturas de inverno e de safrinha e, onde possível, com oleaginosas perenes, deixando a safra de verão para fins mais nobres como aqueles já bem estabelecidos no mercado. No entanto, é preciso criar condições para que os agricultores respondam favoravelmente a este novo desafio.

E sobre as propriedades desta matéria-prima, o que poderia ser dito? Cerca de 99% dos triglicerídeos presentes no óleo de soja são compostos pelos ácidos palmítico (10,2%), esteárico (3,7%), oléico (22,8%), linoléico (53,7%) e linolênico (8,6%). Além dos triglicerídeos presentes no óleo vegetal bruto, ainda existem pequenas quantidades de componentes não-glicerídicos, tais como fitoesteróis, ceras, carotenóides, tocoferóis e fosfatídeos. Dentre estes merecem destaque os tocoferóis e principalmente, os fosfatídeos. Os tocoferóis são componentes antioxidantes que conferem aos óleos brutos maior estabilidade à rancidez. Entretanto, durante as etapas de refino, há uma perda substancial de tais agentes de estabilização e o óleo vegetal passa a apresentar maior tendência à rancificação, obviamente agravada pelo seu alto teor de ácidos graxos poli-insaturados. Uma solução seria a opção pela transesterificação de óleo bruto, admitindo que este processo não comprometeria a presença de antioxidantes naturais no produto. Entretanto, o padrão internacional para o teor de fósforo no biodiesel é bastante exigente e, segundo informações, deverá sê-lo ainda mais quando o nível mínimo permissível cair de 10 para 5 ppm, algo que está em discussão na Comunidade Européia devido à recente identificação de incrustações de fosfatos nas paredes internas dos catalisadores empregados para o controle das emissões diesel. Assim, parece-nos inevitável que os ésteres do óleo de soja apresentem baixa estabilidade à oxidação, constituindo-se em problema crítico para o armazenamento e o uso continuado de amostras de biodiesel não aditivadas com antioxidantes apropriados.

Os óleos e gorduras residuais utilizados na fritura de alimentos também podem ser empregados na síntese do biodiesel. No entanto, os resultados decorrentes da alcoólise são totalmente dependentes da qualidade do material em questão. Matérias graxas utilizadas repetidamente em processos de fritura por imersão sofrem degradação por reações hidrolíticas e oxidativas que os tornam inadequados para o processamento de alimentos. Neste caso, a oxidação, que é acelerada pela alta temperatura do processo, é a principal responsável pela modificação das características físico-químicas e organolépticas do óleo. O óleo torna-se escuro, viscoso, tem sua acidez aumentada e desenvolve odor desagradável, comumente chamado de ranço. Embora possível, a purificação destes óleos não é considerada viável sob o ponto de vista econômico e o seu descarte é fortemente controlado pela Vigilância Sanitária, pois representa efluente de grande impacto ambiental. Porém, vários estudos têm demonstrado que estes materiais residuais de alta acidez podem ser reaproveitados como biodiesel através de uma reação de esterificação, cujo produto corresponde à mesma mistura de ésteres monoalquílicos produzidos a partir da transesterificação de óleos neutros (esta observação exigiria maiores comentários sobre as opções tecnológicas disponíveis para matérias graxas de alta acidez, mas isto será motivo de outro artigo a ser publicado oportunamente). Naturalmente, a qualidade do biodiesel obtido depende do histórico destes óleos de descarte, pois impurezas adquiridas na cocção de alimentos podem apresentar forte influência sobre a eficiência do processo e sobre a toxicidade de suas emissões. Óleos com um alto teor de água e ácidos graxos livres são, usualmente, difíceis de serem reciclados, pois exigem etapas de purificação que implicam no encarecimento produto final (biodiesel). Ainda assim, o uso de óleos de descarte como matéria-prima pode ser interessante sob os pontos de vista ambiental e econômico, pois está relacionado ao aproveitamento de um resíduo que é constantemente descartado diretamente no esgoto doméstico ou utilizado em processos (semi)industriais não regulamentados.

Como alternativas de menor valor agregado, também devem ser incorporados aos óleos de frituras as borras de refino e os diferentes tipos de gordura animal oriundos de abatedouros de aves, atividades frigoríficas e unidades de tratamento de esgotos. Tais óleos residuais, a exemplo dos óleos de fritura, também apresentam alta acidez e, como tal, poderão exigir etapas adicionais de purificação ou tecnologias alternativas de produção para gerarem um biodiesel de boa qualidade.

Enfim, dada a multiplicidade de matérias-primas que hoje existe para a produção de biodiesel, é plausível dizer que somente através do conhecimento pleno das propriedades que determinam os padrões de identidade e de qualidade do biodiesel é que será possível estabelecer os parâmetros de controle que garantirão o sucesso de sua incorporação na matriz energética nacional. Imaginem, por exemplo, a questão da exportação para mercados exigentes como o da Comunidade Européia: parece-me óbvio que os limites de uma especificação rígida podem perfeitamente esconder cláusulas de barreira comercial, mas é difícil imaginar que tais restrições possam perdurar frente à crescente demanda internacional por fontes de energia limpa. Por outro lado, a necessidade de atendermos às especificações mínimas exigidas pelo motor é absolutamente indiscutível e, neste sentido, a escolha da matéria-prima pode ter um efeito decisivo.

Em conclusão, é oportuno expressar um pensamento que vem sendo reiterado por muitos ao longo dos últimos seis ou sete anos: não é possível imaginar que o motor que deva ser adequado ao (bio)combustível, mas sim que a tecnologia de produção do (bio)combustível deva ser adequada às exigências estabelecidas pelas especificações do motor. E com desenvolvimentos tecnológicos que se revelam cada vez mais exigentes, principalmente no que tange às emissões e ao sistema de injeção, não é de se surpreender que toda e qualquer iniciativa séria em relação ao biodiesel deva ter no controle de qualidade o seu ponto mais crítico. Neste sentido, a identificação de uma matéria-prima abundante, barata e de boas propriedades pode ser de importância absolutamente estratégica, algo que muitas vezes exigirá alterações tecnológicas importantes no processo de produção; mas, como citado anteriormente, isto já é assunto para um outro artigo...

Luiz Pereira Ramos, é colunista do site BiodieselBR.com, Bacharel e Licenciado em Química (1982) e Mestre em Bioquímica pela Universidade Federal do Paraná (1986), obteve o grau de Ph.D. sob a supervisão do Prof. Dr. J. N. Saddler na Universidade de Ottawa, Canadá, em 1992. Saiba mais sobre o autor.