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Décio Luiz Gazzoni

A próxima geração do biodiesel


Décio Luiz Gazzoni - 22 fev 2010 - 15:07 - Última atualização em: 09 nov 2011 - 19:10
Introdução
Para situar o texto que segue, uso como premissa que os próximos anos serão marcados por duas lógicas: a sustentabilidade das cadeias produtivas e uma estonteante dinâmica tecnológica. É sobre estes dois pilares que construo o ensaio a seguir, pois a sequência de gerações de biocombustíveis é a consequência prática desta lógica. Para tornar o texto mais didático, discorro, inicialmente sobre a sustentabilidade e a quebra de paradigmas tecnológicos, para concluir com o que imagino que será a próxima geração do biodiesel.

Muito se fala em gerações de biocombustíveis. Como o conceito é abstrato, o que significa, exatamente, cada geração, depende de como cada autor aborda o tema. Particularmente, considero muito lógica a seguinte classificação:

1ª. Geração:
É a geração atual, composta, principalmente pelo etanol, biodiesel e biogás (proveniente de biodigestores);

2ª. Geração:
São biocombustíveis obtidos por novas técnicas de processamento, a partir de matéria prima já existente. O exemplo mais conhecido é o etanol celulósico;

3ª. Geração:
Serão obtidos biocombustíveis através de novas técnicas de processamento, resultantes de aprimoramentos da 2ª. geração, porém sua grande marca será a utilização de matérias primas específicas. Um bom exemplo são os biocombustíveis a serem obtidos de microalgas melhoradas para obtenção de energia;

4ª. Geração:
Plasma os dois conceitos anteriores (métodos revolucionários e matérias primas mais eficientes) com otimização do balanço energético, integração de processos, conjugados com captura e estocagem do gás carbônico resultante do processo de obtenção de biocombustíveis.

Clarificada a questão conceitual, vou explicitar minha visão de como deverá evoluir o mercado de combustíveis líquidos para serviços pesados, hoje dominado, globalmente, em 95% pelo petrodiesel. Há décadas os cientistas buscam substitutos para o petrodiesel, que atendam aos critérios básicos de equivalência econômica e factibilidade técnica (usar os mesmos motores, sem grandes alterações) e que, suplementarmente, sejam renováveis e reduzam significativamente a emissão de gases de efeito estufa. E - extremamente importante - o combustível substituto deve ser obtido de matéria prima abundante e de oferta estável, para garantir o abastecimento do mercado.

O primeiro sucedâneo a ingressar no circuito comercial foi o biodiesel, alvancado por políticas públicas, em especial a mistura compulsória e os benefícios fiscais. Estas políticas são imprescindíveis por três motivos principais:
     1.    Criar um mercado administrado e garantido pelo Governo, que alavanque investimentos privados;
     2.    Diminuir a resistência do consumidor e o custo de sua aceitação;
     3.    Equalizar o preço do biodiesel com o do petrodiesel, em virtude do menor custo deste último.

O mundo deve produzir, em 2010, cerca de 13 bilhões de litros de biodiesel. Raciocinando pelo absurdo, se toda a produção fosse obtida a partir de óleo de soja, seriam necessários 26 milhões de hectares da cultura, o que representa 20% mais do que toda a área de soja do Brasil.

O maior consumidor individual de biodiesel é a União Européia, seguida pelo Brasil. Nos Estados Unidos existem dificuldades ponderáveis para consolidar o biodiesel em sua matriz de combustíveis líquidos. Os produtores dos EUA enfrentam, no momento, o dilema de garantir a sustentabilidade desta indústria após o fim do subsídio do Governo americano, que atingia até US1,00 por galão de B100. Nos países da Europa, conforme as subvenções governamentais vão se reduzindo, o mercado tende a estreitar-se, comprometendo as metas impostas pelas diretivas da União Européia. O Brasil é o país de maior estabilidade, em especial pelo pragmatismo do Governo, que antecipou em três anos as metas estabelecidas em Lei, em função da capacidade da indústria de biodiesel de atender o mercado.

Outras possibilidades têm sido tentadas, como o uso de óleo vegetal sem conversão para biodiesel, o etanol hidratado (em linhas duplas de alimentação ou por aditivação), e as misturas de diferentes proporções de biodiesel, etanol, óleo vegetal e petrodiesel. Entretanto, trata-se de tentativas ainda restritas a experimentos de validação, frotas cativas ou a locais onde o custo do óleo vegetal é significativamente inferior ao custo do petrodiesel.

Entraves
Os principais entraves ao desenvolvimento continuado e sustentável da indústria de biodiesel estão relacionados à matéria prima, de onde é extraído o óleo vegetal, posteriormente transesterificado com alcoóis primários para obter o biodiesel. Acessoriamente, a glicerina produzida pela transesterificação pode inundar o mercado, se usos inovativos não forem implementados rapidamente, evitando a criação de ônus industriais e passivos ambientais.

As três matérias primas mais importantes, responsáveis por mais de 98% do biodiesel produzido no mundo, são soja, canola e dendê. Das três, o dendê, em teoria, disporia de vantagem comparativa sobre as outras duas, pela maior densidade energética e menor custo. Entretanto, sua produção no Sudeste Asiático, em especial na Malásia, tem sido fortemente contestada, pelos danos ambientais ocasionados a áreas de manguezais, obnubilando as demais vantagens. A canola está próxima de completar um ciclo na União Européia, cujo ápice ocorreu em 2006. O conflito com a produção de alimentos, o alto custo, o baixo ganho ambiental, e o descompasso entre a capacidade de oferta de óleo vis a vis a elevada demanda da UE, estão colocando em risco o seu futuro como cultura energética.

Mesmo a soja, que tem conseguido abastecer com sucesso mais de 90% do restante da demanda mundial enfrentará muitos percalços no médio prazo. É fácil entender a razão: enquanto a demanda se mantiver abaixo dos 5 bilhões de litros de óleo de soja (obtidos em 10 milhões de hectares), será possível administrar eventuais conflitos com a produção de alimentos e com a expansão de área. Entretanto, se mais países resolverem implantar mandatos compulsórios e/ou se os países com atuais mandatos expandirem os percentuais de mistura, sobrevirão problemas para abastecer o mercado. Até porque, na margem do raciocínio, para cada quilo de óleo produzido são obtidos 4 quilos de farelo, com usos nutricionais. Como os dois mercados são interdependentes, existe um limite para a expansão da oferta de óleo para fins combustíveis sem reduzir, por um lado, a oferta de óleo comestível e, por outro, sem aumentar a oferta de proteína de soja acima da capacidade de absorção do mercado.

O futuro
Do meu ponto de observação, entendo como inexorável a progressiva inserção de energia renovável na matriz energética global, entendendo que, antes do final do presente século, as fontes fósseis de energia haverão sido completamente banidas. Portanto, fixo como premissa que haverá uma progressiva redução do uso de petrodiesel, em parte substituído por sucedâneos líquidos e, em parte, por eletrificação de linhas ferroviárias e do transporte público urbano.

O caminho entre o presente e o futuro almejado não é linear, ao contrário, a taxa de adoção de energia renovável será baixa no início do processo (atualmente) e muito alta daqui a 20-30 anos. Existem diversas razões para que o processo siga esta tendência, que vão desde a baixa eficiência e o alto custo dos biocombustíveis atuais (exceção feita ao etanol de cana), ao conjunto de interesses dos atuais produtores de petróleo, carvão e gás, passando pela dificuldade de produzir biocombustíveis em altos volumes, comparativamente à maturidade da indústria de petróleo.

A segunda geração de biocombustíveis busca transformar os entraves atuais em oportunidades de negócios, que permitam ocupar, progressivamente, parcela do mercado de combustíveis fósseis. No caso do petrodiesel, a análise do que está no pipeline dos cientistas mostra que a biologia sintética será a grande responsável pela transição para a segunda geração de sucedâneos. Ela permitirá significativa melhora nos processos de conversão, bem como a utilização de matéria prima diversificada, barata e abundante. É onde ganha espaço de crescimento a biologia sintética.

Biologia sintética
A primeira referencia que encontrei na literatura sobre biologia sintética remonta a um livro1 dos idos de 1974. Talvez a melhor definição para este ramo da Ciência seja a construção de novos arranjos e sistemas biológicos, que não são encontrados na Natureza, embora utilizando os elementos básicos encontrados em diferentes seres vivos. Os novos sistemas são desenhados a partir da demanda específica para desempenhar determinada função ou produzir uma determinada substância. Levando o conceito ao limite, a biologia sintética aproxima-se da criação da vida artificial. As principais abordagens em curso no campo da biologia sintética têm como objetivos:

     1.    Engenharia de novos sistemas – Busca sintetizar novos componentes biológicos que podem ser juntados para criar circuitos biológicos que se comportam de uma maneira previsível;

     2.    Redesenhando a vida – Trata da construção de sistemas biológicos, que preencham falhas de conhecimento na atual, que permite contrastar diferenças de comportamento entre organismos existentes e construções similares, que alteram partes do sistema biológico;

     3.    Criação de vida alternativa – É o mais espetacular e desafiador dos objetivos, buscando introduzir outras moléculas em sistemas vivos, diferentes de DNA, RNA ou proteínas2.

A diferença fundamental entre os novos sistemas e aqueles encontrados na Natureza, que desempenham funções similares, se encontra no foco, na especialização e na elevada eficiência. Assim, um microrganismo que recebe um conjunto de grupamentos genômicos alienígenas, é instruído a dirigir todas as suas energias para uma determinada função, por exemplo, produzir, em grande quantidade, uma proteína específica. Paralelamente, os biologistas buscam reduzir o custo fisiológico (energético) das rotas bioquímicas, melhorando o balanço energético e a produtividade, medida em termos da quantidade produzida de determinada substância, em uma unidade de tempo fixa, com menor demanda de matéria prima de sistemas naturais similares.

Já a diferença entre a biologia sintética e a biologia molecular tradicional é muito sutil. Basicamente, a biologia molecular introduz genes de interesse, extraídos de determinado organismo, por uma metodologia que ainda se baseia largamente em tentativa e erro. Na biologia sintética, parte-se de um projeto de sistemas biológicos, modelando um circuito genético, que envolve a transferência de porções de genoma de diferentes espécies, para uma espécie receptora.

Os sistemas biológicos constituem-se em circuitos independentes, que atuam nos organismos vivos. Aproveitando-se desta característica de independência, os biologistas montam os novos sistemas de acordo com um projeto pré definido. Podemos comparar estes sistemas com placas de computador, em que uma controla o circuito de vídeo, outra o circuito de áudio, outra ainda a comunicação por rede. Assim, é possível transportar placas de diferentes computadores para uma nova máquina, alterando os componentes internos das placas para que executem determinada tarefa, que poderia ser a tarefa anterior otimizada, ou ainda uma tarefa diferenciada.

Aplicações da biologia sintética
Com o uso de ferramentas de biologia sintética, é possível encaminhar soluções para desafios científicos e tecnológicos tidos como insolúveis ou de solução muito difícil, ou ainda solucionáveis com custos incompatíveis. Algumas das aplicações da biologia sintética são:

     1.    Produção de biomedicamentos, de uma forma ambientalmente segura e a menor custo. Já existe um exemplo comercial nesta área, envolvendo a síntese de um microrganismo que produz o precursor anti-malária chamado artemisina. A droga era obtida de uma planta que ocorre no Sudeste Asiático, porém seu custo é muito alto para os países em desenvolvimento (onde a malária é epidêmica), além do fato de que a bactéria da malária está se tornando resistente aos outros medicamentos. Os biologistas inseriram porções do genoma da planta que sintetiza a artemisina em Escherichia coli, o que permite produzi-la pela metade do custo.

     2.    Detecção e tratamento de doenças de alto risco de morte. Cientistas trabalham para sintetizar células que possam “navegar” pelo sangue, identificando tumores e destruindo-os3

     3.    Produção de energia. Já existem diversos exemplos de síntese, usando microrganismos como E. coli, Sacharomyces cerevisae e Bacillus subtilis, usando diversas abordagens, tanto para aumentar a densidade energética, quanto para decompor produtos como a celulose em biocombustíveis, podendo chegar até o hidrogênio molecular. Aqui se insere a obtenção de sucedâneo do petrodiesel, que será abordada posteriormente.

     4.    Bioremediação. Grupos de pesquisa estão investindo em microrganismos sintetizados para remediar problemas com poluentes ambientais, em especial metais pesados, porém incluindo outros produtos como agrotóxicos ou gases perigosos, chegando até à descontaminação radioativa.

     5.    Células programadas para processar informação, comunicação e regulação de genes. A idéia básica é programar células da mesma forma que computadores são programados. Estudos avançados apontam para a possibilidade de dispor de novas formas lógicas de controle celular, com aplicações em genômica funcional, nanotecnologia e terapia celular, passando pela fabricação de biomateriais e nanoestruturas.

Quebras de paradigma
Duas notícias recentes servem como marco de uma nova era tecnológica, que poderá consolidar-se como dominante, nos próximos anos. Em 3 de fevereiro de 2010 a LS9, uma empresa de base biotecnológica, com sede na Califórnia, anunciou a compra de uma indústria instalada em Okeechobee, na Flórida. A intenção da LS9 é reformar as instalações para acomodar sua unidade piloto pré-industrial de produção de um sucedâneo do petrodiesel, cuja marca comercial será Ultra Clean Diesel. A tecnologia permite transformar biomassa em biocombustíveis líquidos, através de uma única etapa de fermentação. A capacidade de produção da planta é estimada em até 400.000 L/ano.

Em artigo publicado em 28/1/2010, na revista Nature, é apresentada a tecnologia que permite obter biodiesel a partir de material celulósico4. Os principais autores do artigo são Eric Stein, pesquisador do JBEI/USDOE, Jay Kiesling, um dos fundadores da LS9, atualmente na Universidade da Califórnia (Berkeley), e Stephen del Cardayre, cientista chefe da LS9 (veja mais informações sobre a empresa em www.ls9.com). Neste artigo, são descritos dois processos seqüenciais.

O primeiro deles permite produzir ésteres de ácidos graxos (biodiesel!), alcoóis graxos e ceras, a partir de açúcares simples, usando E. coli transformada com ferramentas de biologia sintética. O segundo processo aborda um legítimo breakthrough tecnológico, pois avançando mais na transformação de E. coli, os cientistas conseguiram expressar hemicelulases, em quantidade suficiente para quebrar a hemicelulose em seus açúcares originais (pentoses, como a xilose ou arabinose), mantendo a rota original de produzir biocombustíveis líquidos, a partir destes açúcares.

Entendo este último processo como uma quebra paradigmática de elevado significado, porque a marca da segunda geração de biocombustíveis tem sido a tentativa de obtenção de etanol celulósico, demandando investimentos de diversos bilhões de dólares por múltiplos grupos de pesquisa, sendo o desdobramento da hemicelulose o maior dos desafios que estes grupos enfrentam. A equipe do Dr. Steen mostra uma rota viável, com o bônus adicional de obter ésteres de ácidos graxos, em um processo único, o que é muito mais complexo que a obtenção de alcoóis de baixo peso molecular. A importância do processo consolidado é a eliminação de uma etapa adicional de pré-tratamento da biomassa (para facilitar a ação das enzimas degradadoras de material celulósico), seja ela química ou enzimática, portanto reduzindo os custos energéticos e financeiros, e evitando a formação de substâncias indesejáveis.

Produzindo biodiesel
A bactéria E. coli já havia sido engenheirada anteriormente para produzir biodiesel, catalisando o processo de transesterificação, usando como insumos ácidos graxos e alcoóis produzidos externamente. A inovação descrita pelos autores é um exemplo didático da biologia sintética. A bactéria E. coli possui, na sua constituição, 10% de ácidos graxos, podendo produzi-los a uma taxa de 200mg.l-1h-1g-1 de células de E. coli. Os cientistas partiram desta habilidade natural da bactéria para desenhar sistemas biológicos que conduzissem à produção de biocombustíveis ou outras substâncias químicas de interesse, em grande quantidade, e a custos altamente competitivos.

Os cientistas descobriram que na rota original de produção de ácidos graxos de E. coli, o produto obtido para estocagem é uma proteína carregadora de radicais acil, no caso a acil-ACP graxa. Como normalmente ocorre na Natureza, o acúmulo desta substância nos orgânulos de estocagem da bactéria provoca uma inibição progressiva de sua síntese.

Entretanto, o objetivo é maximizar a capacidade de produção dos ácidos graxos, portanto os cientistas projetaram uma rota para evitar a inibição de sua síntese. Assim, foi ativada a super-produção e secreção dos ácidos graxos, baseada em uma enzima chamada tioesterase (tesA), que permite obter 320mg.l-1h-1g-1 de células de E. coli, 60% acima do valor normal, atuando em conjunto com a super-expressão de outra enzima, a CoA ligase (ACL).

Entretanto, a história não se encerra nesta etapa. Para melhorar a produção de ácidos graxos, os cientistas alteraram os genes que codificam para as enzimas associadas com a β-oxidação, super-expressando a fadD (que atua na primeira etapa de degradação dos ácidos graxos) e silenciando a fadE, que atua na segunda etapa da degradação dos ácidos graxos. Nesta configuração, a produção de ácidos graxos atingiu o elevado valor de 1200mg.l-1h-1g-1 de células.

Uma vez produzidos os ácidos graxos, é necessário obter os alcoóis para proceder a sua esterificação. O álcool é co-produzido por uma rota específica, a partir da substância acil-CoA graxa (acr1), pela ação da enzima acil-CoA redutase (FAR). O gene que codifica para esta enzima foi transferido de Acinetobacter calcoaceticus, substituindo a enzima atfA, normalmente presente no sistema. Esta substituição permitiu obter alcoóis graxos na taxa de 60mgL-1. Adicionalmente, os cientistas introduziram os genes pdc e adhB, presentes em Zymomonas mobilis, que codificam para as enzimas piruvato descarboxilase e álcool desidrogenase, respectivamente.

Finalmente, atua a enzima aciltransferase (AT), que produz os ésteres graxos (biodiesel), usando os alcoóis e os ácidos graxos produzidos anteriormente. O processo é altamente eficiente pois, como as bactérias secretam o biodiesel para o meio de cultura, não há necessidade de sacrificar as células para a sua obtenção, permitindo um processo contínuo. E como o meio é aquoso, há formação de uma fase sobrenadante do biodiesel, o que permite a sua separação com facilidade.

A enzima tioesterase tem marcada preferência por sintetizar ácidos graxos C14, embora tenha sido observado um espectro de C8 a C18. O comprimento da cadeia e a saturação dos ácidos graxos, diretamente afeta as propriedades químicas dos biocombustíveis, como o número de cetano e o ponto de fusão. Neste caso, os cientistas podem dirigir a síntese para determinados ácidos graxos, usando tioesterases alternativas, presentes em outros organismos, o que está dentro da lógica da biologia sintética. Outros autores, usando biotecnologia clássica, já haviam conseguido produzir ácidos graxos C8:0 e C10:0 em canola, com super-expressão de tioesterases codificadas por genes presentes em Cuphea hoockeriana.

Biodiesel celulósico
Deixei para o final o que considero o componente mais excitante da inovação, que trata da degradação do material celulósico para açúcares básicos, o que permite produzir biodiesel a partir de celulose ou hemicelulose. Foram introduzidos no sistema montado em E. coli, descrito acima, os genes que codificam para um domínio catalítico de endoxilanase (Xyn10B), presente na bactéria Clostridium stercorarium e um gene codificando para uma xilanase (Xsa), encontrado em Bacteroides ovatus. Para hidrolisar a hemicelulose contida no meio de cultura para xilose (um açúcar de 5 átomos de carbono, ou seja, uma pentose), as hemicelulases foram fundidas na porção amina da proteína OsmY, encontrada naturalmente em E. coli.

Como o leitor já percebeu, ainda resta a degradação da celulose até glicose, para otimizar o sistema biológico. Isto já faz parte do desenho dos biologistas sintéticos, apenas não foi publicado porque não atingiu o estágio de resultados repetíveis e comprováveis, que já foi alcançado com a degradação da hemicelulose. Ou seja, é apenas uma questão de tempo, e este tempo deve ser ainda em 2010, pela velocidade elevada com que as metas são atingidas com as ferramentas de biologia sintética.

Em termos práticos, isto significa que poderá ser produzido biodiesel, em escala comercial, dentro de pouco tempo, utilizando a E. coli como mediadora entre a biomassa e o biocombustível. Obviamente, será necessário um período de aprendizagem e ganho de escala, além do tempo necessário para os investimentos no incremento da capacidade de produção de matéria prima e de das plantas de conversão industrial.

Na prática, o modelo de sucesso das usinas de produção de etanol de cana-de-açúcar será emulado, com alterações nas etapas de fermentação e de separação e purificação do biodiesel. Imaginando o processo integral, com conversão da sacarose, celulose e hemicelulose de cana-de-açúcar em biodiesel, pode-se estimar uma produção de biodiesel superior a 5.000 kg/ha, o que equivale à fonte mais competitiva de produção de biodiesel, disponível atualmente, que é o dendê.

Por esta razão, entendo que os dois fatos que aconteceram em janeiro passado, ligados à empresa LS9 – o anúncio do processo de engenheiramento da E. coli para produzir biodiesel a partir de sacarose ou hemicelulose e a aquisição da planta industrial para testar o processo já na fase pré industrial - permitem antever qual será a tecnologia dominante na produção de biodiesel na década de 20. No início, mais do que um concorrente para o biodiesel tradicional, será o grande trunfo de que disporá a sociedade para aumentar cada vez mais a participação do biodiesel na matriz energética mundial.

Décio Luiz Gazzoni é Engenheiro Agrônomo, assessor da SAE/Presidência da República e membro do Painel Científico Internacional de Energia Renovável.

Referências
1 Waclaw Szybalski: In vivo and in vitro initiation of transcription, p. 405. In: A. Kohn and A. Shatkay (eds.), Congrol of Gene Expression. New York: Plenum Press, 1974.

2 Mais sobre este tema em Benner S. A. e Sismour, A. M. Synthetic Biology. Nat. Ver. Genet. 6, 535-543. 2005.

3
Ver detalhes em Anderson, J. C., Clarke, E. J., Arkin, A. P. e Voiggt, C. A. Environmentally controlled invasion of cancer cells by engineered bacteria. J. Mol. Biol. 355, 619-627. 2006

4 Steen, E. J. et al. Microbial production of fatty-acid-derived fuels and chemicals from plant biomass. Nature 463:559-63. 2010.