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Décio Luiz Gazzoni

As duas faces do biodiesel africano


Décio Gazzoini - 18 set 2008 - 18:46 - Última atualização em: 09 nov 2011 - 19:07

O baixo custo da terra na África e a disponibilidade de muita mão de obra, à baixo custo, estão atraindo a atenção de investidores internacionais, para produzir biocombustíveis em diferentes países do continente, em especial Tanzânia, África do Sul, Congo e Moçambique. Os investidores são europeus, americanos e chineses, tradicionais produtores de energia, ou recém chegados à energia renovável, ou simplesmente capitalistas em busca de um bom negócio.

Na mídia especializada já pipocam diversas notícias sobre estes investimentos. No site da empresa britânica Sun Biofuels (www.sunbiofuels.co.uk) é possível ler: “ A Sun Biofluesl tem o prazer de anunciar que comprou mais duas fazendas de produção de fumo, na província de Manica, Moçambique, aumentando o tamanho de suas propriedades no pais para 5.000 hectares. A recuperação das benfeitorias e o preparo do solo já iniciaram e se espera plantar 2.000 ha de Jatropha curcas a partir de novembro de 2008.” Mas a Sun não fica apenas em Moçambique, ela também está presente na Etiópia e na Tanzânia, onde espera, em sua meta futura, plantar 50.000 ha, rivalizando com a sueca SEKAB (http://www.sekab.com), que tem a mesma ambição.

Adicionalmente, o governo da Tanzânia concedeu à firma britânica o direito ao uso de 9.000 hectares, por 99 anos. Em troca, a companhia investirá cerca de US$ 20 milhões na construção de estradas e escolas, para desenvolver a região. No rastro da Sun, companhias da Holanda, Estados Unidos, Suécia, Japão, Canadá e Alemanha já enviaram à Tanzânia técnicos encarregados de avaliar o potencial de produção. A Prokon (www.prokonnord.de), uma companhia alemã conhecida principalmente pelas suas turbinas eólicas, já deu início ao plantio em grande escala da Jatropha curcas. Sua meta é extremamente ambiciosa: ela pretende cultivar nada menos que 200 mil hectares na Tanzânia, o que permitira produzir 300 milhões de litros de biodiesel, 25% da meta de produção do Brasil para 2008.

Os números que envolvem a produção de biodiesel na África são fantásticos e devem ser olhadas com extremo cuidado. Em Gana, a companhia norueguesa Biofuel Africa assegurou direitos de cultivo em 38 mil hectares. A britânica Kavango BioEnergy pretende investir milhões de euros no norte da Namíbia. Empresas ocidentais estão voltando-se para Maláui e Zâmbia, onde pretendem produzir biodiesel e etanol a partir da Jatropha curcas, do óleo de palmeira e da cana-de-açúcar. No total, os investidores estrangeiros estão de olho em 11 milhões de hectares em Moçambique - o que representa mais de um sétimo do território total do país - para o cultivo de plantas que são matérias-primas para a produção de combustíveis. E o governo da Etiópia acena com 24 milhões de hectares para os estrangeiros interessados em produzir biocombustíveis no país.

Ao menos ninguém vai poder usar o sofisma da competição entre alimentos e biodiesel. Na África as plantas oleaginosas não estão competindo com terras cultivadas, tamanha é a pobreza do continente. Pelo menos até agora. Mas a alta dos preços dos alimentos e o crescimento populacional também intensificarão a pressão no hemisfério sul para a conversão de terras não utilizadas em áreas agrícolas. E, se os biocombustíveis conseguirem aumentar a renda per cápita destes países, em seguida virá uma pressão para produção de alimentos, o que também não será um problema no futuro, pois a África tem a segunda maior de reserva de terra arável do mundo, depois da América Latina.

Analisando as notícias da mídia, percebe-se que, para os investidores, o cultivo na África de plantas usadas para a produção de combustíveis é altamente rentável. O petróleo ficará escasso em um futuro já visível, de forma que os biocombustíveis de fácil produção surgiram no momento exato. Seguramente, com preços do petróleo acima de US$100/barril, a produção de biodiesel será rentável. A África proporciona aos produtores de óleos vegetais combustíveis condições praticamente ideais para os objetivos deles: áreas subutilizadas em vários locais, terrenos baratos, posse muitas vezes indefinida das terras.

E, não nos enganemos, muitos dos governos podem ser influenciados para atender reivindicações dos investidores. A população local dificilmente tem voz ativa. A imprensa européia noticia que, em Gana, a BioFuel Africa obteve os direitos de desmatamento e uso da terra de um chefe de aldeia que não sabe ler nem escrever. O homem deu o seu consentimento colocando a sua impressão digital em um documento, obviamente sem lê-lo!

Na Tanzânia, a imprensa também registra denúncias no projeto da Sun Biofuels. Há um ano, a empresa alegou ter recebido das autoridades aprovação formal para cultivo em 10 vilas. No entanto, até aquele momento várias comunidades sequer tinham conhecimento do projeto, e outras queriam impor condições para a aprovação. O chefe de uma vila reclamou, por escrito, ao governo distrital de que a Sun Biofuels havia desmatado e demarcado terras sem sequer avisar os velhos chefes locais, violando princípios basilares da cultura tribal local.

A Sun promete investimentos sociais. Entretanto, mesmo quando se trata das indenizações ao povo que vive nas terras, os investidores estão fazendo um negócio excelente. Eles ofereceram o equivalente a cerca de US$650 mil, um preço ridículo, por 9.000 hectares (US$70/hectare) pelo direito de uso por um século.

As notícias continuam na Tanzania. No sul do país, nas margens do Rio Rufiji, milhares de moradores estão sendo obrigados a se mudar a fim de abrir espaço para o projeto de 9000 ha da companhia sueca Sekab de plantio de cana-de-açúcar, dos quais cinco mil hectares já foram aprovados. O que torna o tema espinhoso é que o rio e as terras pantanosas nos seus bancos são a única fonte de água para milhares de pessoas, especialmente durante a estação seca e a cana representa uma ameaça ao abastecimento de água, porque a Sekab pretende também explorar esta reserva para irrigar as suas plantações.

Recentemente, o jornalista Khoti Kamanga, da Universidade de Dar es Salaam (Tanzânia), publicou o estudo "Indústria de Biocombustíveis na Tanzânia", onde consta uma advertência a respeito dos efeitos colaterais das lavouras para a produção de energia. Segundo Kamanga, a população é geralmente desinformada, e esses projetos de cultivo geralmente são acompanhados da mudança forçada das pessoas. Kamanga diz que é bem provável que a produção de etanol afete também os preços dos alimentos na Tanzânia, fazendo aumentar ainda mais a dependência das importações de comida no país.

Verifica-se, assim, as duas faces da produção de biocombustível na África. De uma parte, a promessa de um futuro menos poluído e a chegada de investimentos portentosos às regiões mais pobres do planeta. De outro, o velho espírito colonialista, buscando maximizar a rentabilidade e precificando ao extremo o risco de investir no continente inóspito. Vamos torcer para que esta investida dos biocombustíveis na África tenha, ao final, um portfólio de ganhos ambientais e sociais que obnubile as práticas desaconselháveis que estão sendo denunciadas pela imprensa.

Décio Luiz Gazzoni é engenheiro agrônomo, membro do Painel Internacional de Energia Renovável

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