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Décio Luiz Gazzoni

A difícil caminhada


Décio Luiz Gazzoni - 02 mai 2010 - 16:10 - Última atualização em: 09 nov 2011 - 19:12

Duas notícias chamaram a minha atenção durante o mês de abril – e nenhuma delas é boa notícia. E as duas demonstram – uma vez mais – como será difícil a caminhada rumo a uma maior participação dos biocombustíveis na matriz energética mundial. E esta caminhada é particularmente mais difícil porque o maior potencial de produção sustentável de biocombustíveis está nos trópicos, longe dos países ricos. No entanto, por vezes até os biocombustíveis do Hemisfério Norte são vilipendiados, o que mostra o poder do lobby contrário.

A primeira notícia se refere a um estudo conduzido na União Européia, que chega à ridícula conclusão que o biodiesel pode emitir até quatro vezes – sim, quatro vezes! – mais gases de efeito estufa que o petrodiesel. É lastimável como cidadãos podem deturpar suas mentes por razões ideológicas ou comerciais, enviesando conceitos e métodos científicos, para demonstrar teses tortuosas.

Em especial, após a elaboração do “margarinoso” conceito de efeito indireto, pode-se encomendar qualquer estudo já com as conclusões pré-estabelecidas do volume de emissões que se deseja de qualquer biocombustível. Para quem não está familiarizado com o conceito de efeito indireto, ele estabelece que cada hectare de soja que plantamos para produzir biodiesel substitui um hectare de outra cultura, que é deslocado para mais distante, substituindo outro hectare de outra cultura, até que, ao final, inexoravelmente derrubaremos um (ou mais) hectares da floresta amazônica!

Se eu não tivesse nada mais importante para fazer, usando o conceito do efeito indireto, demonstraria que todos os habitantes do mundo devem parar imediatamente de respirar, porque, pelo efeito indireto, o ato de respirar provoca um acirramento do efeito estufa e conduz ao aquecimento global. Logo, paremos de respirar!

Biodiesel pior que diesel!
O despacho da Agência Reuters refere que um Estudo da União Européia (Quantification of the effects on greenhouse gas emissions of policies and measures ) concluiu que o biodiesel pode gerar quatro vezes mais emissões que o diesel de petróleo – caso específico do biodiesel de soja. O estudo foi encomendado porque o bloco europeu estabeleceu uma meta de usar 10% do combustível para veículos obtidos de fontes renováveis, principalmente biocombustíveis, até o final desta década. Mas agora a Europa começa a se preocupar com os impactos ambientais.

Quatro estudos estão em andamento e um deles conclui pela elevada emissão de GEE pelo biodiesel de soja. O maior temor é que a produção de biocombustível absorva grãos dos mercados, forçando o preço dos alimentos a subir e encorajando agricultores a desmatar áreas de florestas tropicais em busca de novas terras de plantio – o famoso efeito indireto! A queimada de florestas emite grandes quantidades de dióxido de carbono e pode cancelar os benefícios dos biocombustíveis para o clima.

De acordo com o despacho da Reuters, o biodiesel produzido de soja nos EUA tem uma pegada indireta de carbono de 339,9 quilos de CO2 liberado para cada 280 quilowatts/hora produzido, ou seja, quatro vezes mais do que o diesel convencional, segundo o documento da União Européia. O relatório foi inicialmente publicado em dezembro de 2009. No entanto, sua divulgação gerou tamanha controvérsia, que uma das consultorias que participaram da sua realização (o Instituto Fraunhofer, da Alemanha) negou a existência do anexo, com os detalhes do estudo.

Agora o tal anexo foi finalmente liberado publicamente, depois que a agência internacional de notícias Reuters usou a lei de liberdade de informação para conseguir uma cópia. Após a liberação judicial, um executivo da Comissão Européia da UE disse que o documento não foi adulterado para ocultar evidências, mas somente para permitir uma análise mais profunda antes da publicação.

A controvérsia se prende ao fato de que os estudos mostram que as mudanças no uso da terra são o fator mais importante na hora de decidir se faz sentido produzir biocombustíveis de forma sustentável, ou não. Mesmo o biodiesel europeu, feito de canola, tem uma pegada de carbono indireta de 150,3 quilos de CO2 por 280 quilowatts/hora produzidos, enquanto o cálculo do bioetanol europeu feito de beterraba é de 100,3 quilos – ambos bem mais altos do que o gasto do diesel convencional ou da gasolina, que soma 85 quilos de CO2.

Até mesmo o bioetanol de cana-de-açúcar do Brasil e o biodiesel de dendê do Sudeste Asiático aparecem com 82,3 quilos e 73,6 quilos respectivamente. Porém, o bom senso indica que alguma coisa não está bem, quando o Prof. Horta Nogueira (da Universidade Federal de Itajubá) já demonstrou acima de qualquer dúvida razoável e com metodologia incontroversa que o uso de bioetanol reduz as emissões de GEE em mais de 80%, comparativamente à gasolina.

O relatório do IEF
A segunda notícia que me deixou contrariado foi a divulgação do relatório do IEF (International Energy Forum), denominado “Asssesment of Biofuels Potential and Limitations”, (.pdf) assinado por Claude Mandil e Adnan Shihab-Eldin.

O IEF foi criado em 1991 e congrega os Ministros de Energia dos países membros, os quais são responsáveis por mais de 90% do suprimento e demanda de petróleo e gás natural. Além dos países que fazem parte da Agência Internacional de Energia e da OPEP, importantes países em desenvolvimento, como o Brasil, China, Índia, México, Rússia e África do Sul fazem parte do Fórum. O secretariado do Fórum Internacional de Energia tem sua sede em Riad, na Arábia Saudita.

As reuniões de ministros, bianuais, não têm local fixo. Apesar de estar vinculado principalmente com as atividades e com os interesses da indústria do petróleo, o Fórum Internacional de Energia tem-se apresentado como porta-voz dos Ministros de Energia de seus países-membros e, por conta da tendência de diversificação da matriz energética mundial, tem abordado o tema de fontes renováveis de energia.

Em 2008, no 11º encontro de ministros realizado na Itália, o Fórum encomendou estudo para avaliação do potencial e das limitações dos biocombustíveis em todo o mundo. A intenção da Secretaria do Fórum era a de apresentar o estudo aos ministros na reunião de Cancún no México, em março de 2010. Entretanto, o estudo foi liberado apenas na véspera da reunião, sem circulação entre os países membros, para revisão e análise antecipada, o que gerou inúmeros protestos, em especial da delegação do Brasil.

De acordo com os autores do estudo, a produção de biocombustíveis, impulsionada pelo potencial de a) contribuir para a segurança energética; b)mitigar as mudanças climáticas e; c) promover o desenvolvimento rural, tem experimentado um crescimento rápido nos últimos anos. Vários países deram início a políticas de apoio ao desenvolvimento de biocombustíveis, sua produção e utilização no setor de transportes. No entanto, há crescentes preocupações sobre a sustentabilidade econômica, ambiental e social dos biocombustíveis, bem como sobre sua capacidade de realmente atender às expectativas de segurança energética.

Em resposta a estas preocupações, bem como o impacto potencial sobre os mercados de petróleo, foi encomendada pelo Fórum Internacional da Energia uma revisão e um estudo de avaliação dos diferentes aspectos da produção e uso de biocombustíveis. O objetivo do estudo foi avaliar, com base em uma análise de documentos fornecidos aos autores pela Secretaria do IEF, em que medida os biocombustíveis poderiam contribuir com seriedade e de forma coerente para atender parcela substancial da demanda futura de combustíveis no setor de transportes.

Paralelamente, buscava-se trazer algumas respostas para a multiplicidade de questões que têm surgido sobre a viabilidade e sustentabilidade dos vários tipos de biocombustíveis atualmente em produção ou em desenvolvimento. Além disso, o estudo deveria apontar, sempre que possível, incertezas ou questões abertas, ainda sem encaminhamento definitivo.

Em sua forma final, o estudo avalia a situação atual de diferentes biocombustíveis e busca encaminhar respostas para algumas das preocupações, em função das informações publicadas, revisões, relatórios de avaliação e documentos de uma série de fontes. Os Termos de Referências do estudo encomendado pelo IEF foram:

  1. As metas para uso de biocombustíveis, já estabelecidas em diversos países, são realizáveis?
  2. Os subsídios e/ou incentivos fiscais para os biocombustíveis em países consumidores são sustentáveis em termos econômicos e orçamentários, dado atuais preços relativamente baixos do petróleo e as pressões dos orçamentos públicos, em consequência da crise econômica? Se não forem sustentáveis, quais são as consequências?
  3. Os países consumidores estão implicitamente contando com os países produtores de petróleo para preencher a lacuna com fornecimento de petróleo, se eles não conseguirem atingir a oferta de biocombustíveis para atender as metas?
  4. Em que medida isso vai afetar os investimentos na cadeia de petróleo?
  5. Quais são as conseqüências ambientais e sobre o mercado de alimentos, do crescimento previsto dos biocombustíveis, em termos de emissões de CO2, uso da terra, da água e sobre o desmatamento?
  6. A velocidade de desenvolvimento da tecnologia para biocombustíveis de segunda geração é compatível com as metas estabelecidas?
  7. É realista esperar que os biocombustíveis de segunda geração tenham significativa importância na consecução das metas de biocombustíveis na próxima década? Caso contrário, quais serão as consequências?
Até aí parece que está tudo bem. O problema está nos detalhes do estudo, considerado por um parecer elaborado pelo Ministério das Minas e Energia como tendencioso – o que aliás não é novidade, em se tratando de prejudicar os interesses dos biocombustíveis, especialmente aqueles produzidos em países como o Brasil.

A Nota Técnica do MME (.pdf) chama a atenção de que “...já no início do Resumo Executivo, fica clara a posição tendenciosa do relatório. No primeiro ponto apresentado coloca que o petróleo tem tremendas e bem conhecidas vantagens, mas enfrentam dois (apenas) desafios: deixa vulnerável o setor de transporte (dado que não há substituto sério aos derivados de petróleo) e contribui para aumento das emissões (poluição local e global).

Ao tratar dos biocombustíveis, no segundo item, questiona a efetividade da sua contribuição para reduzir as emissões de GEE e menciona que os mesmos têm limitações e desvantagens. Petróleo tem meros desafios a enfrentar enquanto os biocombustíveis têm limitações e desvantagens. O relatório força o leitor a concluir que segurança energética é tão somente a previsibilidade e garantia do abastecimento (de petróleo) para atender a toda a demanda projetada. Para a maior parte dos países da OCDE isso pode ser verdadeiro, mas para a maioria dos países, trata-se de uma visão extremamente simplista. Na opinião dos autores, que invertem a lógica, a diversificação das fontes de energia contribui para a insegurança do abastecimento de energia.”

Biocombustíveis x petróleo
Ainda de acordo com a NT do MME, “o item 4 do Resumo Executivo traz um argumento absolutamente falacioso para demonstrar que o uso de biocombustíveis gera insegurança no abastecimento de combustíveis. Afirma que investimentos na capacidade de produção no setor de petróleo podem ser comprometidos com a incerteza da real dimensão da demanda do setor transporte em função do uso de biocombustíveis. Ora, o petróleo e seus derivados são commodities internacionais que têm todos os privilégios de comercialização livre de barreiras tarifárias.”

A própria dimensão dos mercados atuais e futuros de biocombustíveis demonstra que não se poderá evitar que todos os combustíveis fósseis que possam ser produzidos sejam consumidos. A incerteza da demanda por combustíveis fósseis, se é que ela existe para o futuro, provavelmente ocorrerá em função de políticas voltadas para incentivar drasticamente o aumento da eficiência energética dos motores e para desenvolver novas plataformas veiculares tais como os híbridos e veículos elétricos. O peso relativo entre a indústria automobilística versus indústria de biocombustíveis e o poder de influência de ambas justifica que o presente relatório dê como certa para a indústria do petróleo a incerteza pelo lado da demanda que gerará, na opinião dos autores, uma insegurança no abastecimento de energia.

De fato, resta que o documento do IEF se mostra enviesado, forçando determinadas conclusões reducionistas, que acabam por prejudicar uma análise correta da real potencialidade de inserção dos biocombustíveis na matriz energética e o cumprimento das metas estabelecidas. Felizmente, a representação brasileira no IEF se posicionou adequadamente na reunião de Cancun e continua a luta para uma revisão do documento, que seja mais consentânea com a realidade dos fatos.

Décio Gazzoni é Engenheiro Agrônomo, assessor da SAE/Presidência da República e membro do International Scientific Panel on Renewable Energy.
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