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Décio Luiz Gazzoni

Biomassa energética e a poluição do ar


Décio Luiz Gazzoni - 31 ago 2009 - 16:07 - Última atualização em: 09 nov 2011 - 19:09

1. Introdução

Continuando a série de análises sobre impactos ambientais dos biocombustíveis, vamos analisar o impacto de biomassa energética, na qualidade do ar, ao longo do ciclo de vida. Esta análise restringe-se aos impactos sobre a qualidade do ar atmosférico e, em particular, aqueles com potencial de afetar a saúde humana e o ambiente. Efeitos mais amplos, como a redução do ozônio estratosférico ou as mudanças climáticas globais não cabem nesta análise. Considero o tema de extrema importância pois, embora biocombustíveis tenham impactos ambientais, o tema precisa ser convenientemente elucidado, dimensionado e, em especial, comparando o impacto ambiental dos biocombustíveis com fontes fósseis de energia.

Dois conceitos básicos: a) O ciclo de vida dos biocombustíveis abrange desde o preparo de solo para o cultivo da matéria prima até o seu uso final, considerando que, em qualquer ponto da cadeia de produção, pode haver emissões de poluentes que afetem a qualidade do ar. b) Entende-se como poluentes as substâncias químicas liberadas ao longo da cadeia, que não constituem objetivo finalístico da produção de biocombustíveis, e que possam afetar a saúde pública ou o ambiente. Os poluentes sofrem uma série de reações químicas complexas assim que são emitidos na atmosfera. Estas reações dependem do ambiente em que são emitidos, podendo diferir de uma cidade para um ambiente rural.

Os poluentes atmosféricos liberados durante a produção e utilização de biocombustíveis têm, geralmente, tempo de vida relativamente curto, e não são transportados a longas distâncias. O seu impacto é limitado principalmente ao plano local (cerca de 10 km) ou a escalas regionais (ordem de 100-1000 km). Em contraste com as emissões de gases de efeito estufa (GEE), os impactos dos poluentes atmosféricos tendem a ser de natureza regional. Como resultado, em teoria, as plantas de biocombustíveis localizadas próximas às cidades são susceptíveis de gerarem impactos mais acentuados na saúde pública do que aquelas localizadas em áreas rurais.

2. Principais poluentes atmosféricos

O impacto da poluição do ar é mais facilmente compreendido através da análise individual das fontes de emissão, dos poluentes e de seus impactos. Comentaremos, em particular, os cinco poluentes emitidos por combustíveis, enumerados pela Environmental Protection Agency (EPA): material particulado, dióxido de enxofre, óxidos de nitrogênio, monóxido de carbono e ozônio. Adicionalmente, vamos comentar os carbonos orgânicos voláteis (um importante precursor de ozônio) e outros perigosos poluentes atmosféricos. O foco da análise é o impacto na saúde humana ou os impactos ambientais.

a. Material particulado (PM).
Os materiais particulados atmosféricos, também conhecidos como aerosóis, constituem uma mistura de partículas sólidas e líquidas, na forma de gotículas muito pequenas. Os particulados são designados partículas inaláveis (tamanho inferior a 10 micra - PM10), ou partículas finas (medindo menos de 2,5 micra - PM 2,5). Considera-se o grupo PM10 como emissão primária, ou seja, diretamente emitida em forma de partículas, enquanto o grupo PM2,5 pode ser primário ou secundário, isto é, formado através de reações químicas na atmosfera.

A menor dimensão das partículas de PM2,5 significa que podem ser transportados a longas distâncias, além de possuir um potencial de impacto maior na saúde, por penetrar profundamente nos pulmões. Além de serem formadas diretamente na câmara de combustão, este grupo é gerado por reações químicas de emissões gasosas (especialmente NOx, SO2 e Compostos Voláteis Orgânicos - CVOs). Os efeitos sobre a saúde respiratória da exposição a PM2,5 incluem diminuição da função pulmonar, insuficiência cardíaca, o aparecimento de asma, o desenvolvimento de bronquite crônica, ataques cardíacos e, eventualmente, a morte prematura em pessoas com quadro anterior de doença cardíaca ou pulmonar.

b. Monóxido de Carbono (CO).
O CO é um gás incolor, inodoro, liberado pela combustão incompleta de materiais orgânicos, como os combustíveis fósseis, os biocombustíveis, ou qualquer biomassa. O envenenamento por CO afeta o sistema nervoso central e é particularmente perigoso para as pessoas com doenças cardíacas. Através de uma série de reações químicas, as emissões de CO podem resultar na produção de ozônio. No entanto, o CO não é muito reativo e pode ser transportada para longe de sua fonte de emissão, antes que reaja na atmosfera. Por isso, a produção de ozônio pode ocorrer distante da fonte de emissão e em altas altitudes. No sangue ele possui um efeito muito perigoso quando forma um complexo estável com a hemoglobina: se aproximadamente 2% dela estiver ligada ao CO, a atividade normal da pessoa fica debilitada. Se esse percentual estiver entre 10 e 20% pode causar a morte do indivíduo. O complexo formado impede o transporte de oxigênio pelo corpo, levando, inicialmente, à inconsciência e depois à morte.

c. Óxidos de nitrogênio (NO e NO2, conhecidos coletivamente como NOx).
O grupo genérico conhecido como NOx desempenha um importante papel como precursor na formação de ozônio troposférico, de material particulado e de chuva ácida. Esta última ocorre através da formação de ácido nítrico na atmosfera, carregado de volta à superfície através de precipitações pluviométricas. As fontes antropogênicas de NOx incluem todos os processos de combustão, como os combustíveis fósseis, os biocombustíveis, os resíduos agrícolas e, em menor medida, a utilização de fertilizantes e posterior atividade biogênica no solo. Embora o impacto imediato de emissões de NOx ocorre, geralmente, nos locais de emissão, os produtos formados a partir de NOx podem ser transportados a longas distâncias, onde causam os impactos adversos. O NO é um gás praticamente inofensivo e puro, não representa graves perigos à saúde. O NO2 é um gás de cor castanho-avermelhado, de odor característico tóxico e muito irritante. Uma pessoa que aspire este gás sente imediatamente ardência nos olhos, no nariz e nas mucosas em geral.

d. Compostos Orgânicos Voláteis (COV).
Este grupo compreende uma vasta gama de hidrocarbonetos não metânicos, de origem antropogênica e de fontes naturais, contribuindo para a formação de ozônio e de PM2,5. Os COVs antropogênicos são emitidos a partir de uma variedade de fontes, particularmente a queima de combustíveis fósseis e gasolina evaporada. Embora os COVs sejam precursores de ozônio, em certas circunstâncias eles reagem com o O3, reduzindo a sua concentração. Em particular, as emissões dos veículos a etanol pode ser rica em formas particulares de COV,que têm importantes efeitos sobre a saúde. Devido à diversidade dos COVs, não há como relatar efeitos particulares sobre a saúde humana.

e. Ozônio (O3).
O ozônio não é emitido diretamente, sendo formado na atmosfera através de reações químicas envolvendo NOx, CO e COVs, na presença de luz solar. A relação entre a produção fotoquímica do ozônio e as emissões de seus precursores não é linear, de maneira que a formação do ozônio é muito dependente de quais poluentes primários são emitidos. Este comportamento não-linear torna difícil fazer uma estimativa a partir de simples avaliações de emissões de NOx ou de COV. Normalmente, uma avaliação do impacto do ozônio requer modelos matemáticos que incluem a concentração dos diferentes produtos químicos e o comportamento dos processos meteorológicos conducentes à formação de ozônio. O ozônio representa uma grande preocupação para a saúde humana, por causar ou agravar problemas respiratórios, está associada a degradação florestal e agrícola, e a redução de sua concentração pode implicar na maior penetração de raios UV na atmosfera.

f. Óxidos de enxofre (SOx).
O enxofre está presente em diferentes concentrações no carvão e no petróleo, em grande parte liberada sob a forma de SO2 no refino e na combustão. Nos biocombustíveis a concentração de enxofre é muito baixa ou ausente. Assim como os NOx e o PM, o SOx contribui para a formação da chuva ácida, embora não contribuam diretamente para a formação ou destruição do O3. O principal efeito sobre a saúde é no aparelho respiratório: o SO2 causa irritação e aumenta a resistência do canal respiratório, principalmente em pessoas asmáticas e com deficiência respiratória, além de secreções da mucosa nasal. O SO2 quando é convertido em ácido sulfúrico provoca a chuva ácida que pode destruir as plantas. Os danos causados são pequenas manchas sobre as folha, exatamente onde tocam as gotículas.

g. Poluentes atmosféricos perigosos (HAPS).
Estas substâncias compreendem uma ampla gama de produtos químicos, que podem causar câncer, danos ao sistema imunológico, problemas neurológicos, efeitos negativos sobre o sistema reprodutivo, defeitos congênitos, e outros problemas graves de saúde, além de impactos ambientais adversos. Enquanto alguns tóxicos do ar são emitidos naturalmente (por exemplo, a partir de erupções vulcânicas e incêndios florestais), a maioria resulta de atividades humanas como a queima de combustíveis fósseis e a produção e utilização de produtos químicos.

3. Fontes emissoras

a. Biocombustíveis sólidos.
A utilização dos biocombustíveis sólidos para o aquecimento e para cozinhar tem uma longa história, em grande parte do mundo em desenvolvimento. Embora seu uso esteja se reduzindo nos países centrais, madeira, carvão, esterco, resíduos agrícolas e outras biomassas sólidas continuam a ser importantes fontes de combustível doméstico para as zonas rurais da África, Ásia e América Latina. A biomassa e os resíduos agrícolas e florestais representam mais de 60% do consumo de energia primária na África Sub-Sahariana, cerca de 25% na região da Ásia-Pacífico, e cerca de 15% na América Latina e no Caribe.

Nestas áreas, as emissões de poluentes de biocombustíveis sólidos são maiores que aquelas relacionadas com a indústria e os transportes, e os impactos tendem a ser altamente localizados, comparativamente aos dos biocombustíveis líquidos. A queima de biocombustíveis sólidos é uma importante fonte de carbono orgânico primário e de aerossóis, e também podem emitir quantidades significativas de precursores de O3. Além disso, o uso de biocombustíveis sólidos é uma grande preocupação em relação à qualidade do ar interior, devido aos elevados riscos resultantes da queima de biomassa para cozinhar e para aquecimento.

Os impactos na saúde incluem as infecções respiratórias agudas inferiores, especialmente em crianças, doença pulmonar obstrutiva crônica e bronquite crônica. A Organização Mundial da Saúde estima que a poluição do ar interior é responsável por 3,7% das doenças de alta mortalidade em países em desenvolvimento e contribui significativamente para as infecções respiratórias agudas - a principal causa de morte entre crianças menores de 5 anos.

Dentro deste quadro geral existem exceções. Por exemplo, o bagaço de cana é utilizado para co-geração de eletricidade em plantas de etanol, com grande controle sobre as emissões de poluentes, fazendo com que, nas instalações industriais modernas, as emissões dos biocombustíveis sólidos sejam muito reduzidas em relação aos encontrados em práticas tradicionais.

b. Biocombustíveis líquidos
O ciclo de vida dos biocombustíveis líquidos é longo e inclui desde a conversão de uso da terra, o cultivo de matéria prima, o transporte para as usinas, o processo industrial de transformação, o transporte do combustível para o mercado e, finalmente, a combustão nos veículos. Dado que os biocombustíveis são produzidos a partir de diferentes culturas, usando diferentes práticas agrícolas, com fatores de produção diferenciados, transformados em diferentes combustíveis, a quantidade e os impactos das emissões atmosféricas pode variar muito de região para região, e de acordo com a cultura e o tipo de biocombustível.

Além disso, as diferentes condições de operação – por exemplo, veículos que utilizam gasolina e diferentes proporções de bicombustível - devem ser consideradas para uma avaliação do ciclo de vida. Com respeito às emissões, quatro grandes grupos de considerações devem ser efetuados: a) a mudança de uso da terra deve incluir tanto a mudança de cultivo como a derrubada de vegetação nativa para produção de matéria prima para produzir biocombustíveis; b) as emissões relacionadas com o processo agrícola, transporte da biomassa, refino e transporte para  distribuição de biocombustíveis; c) as emissões associadas com a combustão dos biocombustíveis; d) as emissões globais indicando o efeito líquido ao longo de todo o ciclo de vida, descontando as reabsorções e seqüestros de emissões.

4. Conclusões

Por uma série de razões, as emissões de poluentes atmosféricos durante o ciclo de vida de etanol e biodiesel é consideravelmente diferente das emissões de GEE. Por um lado, na contabilização de emissões de GEE, um crédito deve ser aplicado devido ao seqüestro de carbono pela matéria prima, o que não se aplica às emissões de poluentes. Em segundo lugar, os impactos dos poluentes atmosféricos devem ser examinados em escalas espaciais menores que aquelas utilizadas em avaliações de GEE pois, devido à sua curta vida útil, os poluentes não são transportados globalmente e a química atmosférica difere nas escalas local e regional.

Assim, embora as emissões dos biocombustíveis possam ocasionar aumento da concentração de O3, em um local, elas poderiam ter o efeito oposto em outro local. Isto implica que a simples contabilização do ciclo de vida das emissões de poluentes, não é suficiente para caracterizar, adequadamente, o impacto dos biocombustíveis sobre a qualidade do ar. Assim, enquanto a contabilização das emissões é um primeiro e necessário passo, não é suficiente para dimensionar o impacto dos poluentes sobre o ar.

Exceto no caso de misturas pobres de etanol de milho na gasolina, os estudiosos têm convergido no fato de que o etanol de milho degrada a qualidade do ar através das suas emissões. Este fato se baseia, principalmente, nos estudos que demonstram que a produção de etanol de milho requer mais energia do que a produção de derivados de petróleo.

Igualmente, é necessário considerar que a energia necessária para produzir etanol celulósico é maior do que para o milho. A queima de combustíveis para produzir essa energia tem um impacto substancial sobre as emissões de poluentes atmosféricos. Nos estudos que revisamos, a produção de biocombustíveis a partir de celulose e hemi-celulose tendem a aumentar as emissões de poluentes ao longo do ciclo de vida, mesmo em relação à gasolina, com exceção do enxofre e do material particulado.

A qualidade do ar é fortemente impactada pela queima da palhada de cana-de-açúcar. Entretanto, este é um fator que deverá desaparecer no médio prazo, em parte devido às imposições legais, porém também impulsionado pelos ganhos econômicos da colheita mecânica e do aproveitamento energético da palhada.

Em relação ao biodiesel, um aspecto que se observa em alguns estudos, é que o crédito concedido para os co-produtos, torna as emissões durante o ciclo de vida do biodiesel muito menores que aquelas verificadas com o petrodiesel. Obviamente, esta análise é condicionada pelo tipo de matéria prima e pelos co-produtos obtidos.

A maioria dos autores concorda que, para acessar o verdadeiro impacto do ciclo de vida dos biocombustíveis sobre a qualidade do ar, são necessários estudos adicionais. Modelos sofisticados de química atmosférica são necessários para que as complexas relações entre emissões durante o ciclo de vida, concentrações atmosféricas e a exposição da população local e regional aos poluentes possa ser efetivamente estabelecida. Isto é particularmente verdadeiro para o O3, mas igualmente importante para os outros poluentes.

Décio Luiz Gazzoni é Engenheiro Agrônomo, assessor da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.
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