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Décio Luiz Gazzoni

Biocatálise na produção de biodiesel - Parte I


Décio Luiz Gazzoni - 06 dez 2011 - 15:22 - Última atualização em: 29 nov -1 - 20:53

1.    Introdução
A tecnologia de produção de biodiesel é antiga, tendo o processo de transesterificação sido patenteado por G. Chavanne, na Bélgica, em 1937, utilizando óleo de palma como fonte lipídica, de acordo com o que relata Knothe (2005). Entretanto, até a década passada o uso de biodiesel se restringia a experimentos acadêmicos ou pequenas incursões em nichos de mercado, de forma eventual e transitória. A conjunção de dois fatores – a elevação constante do preço do petróleo e a comprovação da associação entre emissões de gases de efeito estufa por combustíveis fósseis e mudanças climáticas globais – gerou uma pressão social e um interesse tanto da sociedade civil, quanto de governos e de cientistas, pela busca de tecnologias comercialmente viáveis de geração de energia renovável. No setor de transportes, o uso de etanol carburante e de biodiesel (em mistura ou em substituição à gasolina e ao diesel, respectivamente) passaram a ocupar espaços importantes no mercado.

A transesterificação de triglicerídeos com um álcool, mediado por um catalisador químico ou biocatalisador, leva à formação do éster alquilado, comercialmente conhecido como biodiesel. A produção comercial de biodiesel, no Brasil e no mundo, segue uma rota dominante, em que o álcool reagente é o metanol e o catalisador utilizado normalmente é alcalino (bases ou sais de sódio ou potássio), eventualmente utilizando um catalisador ácido em situações específicas, quando existem teores mais elevados de ácidos graxos livres na matéria prima (óleos vegetais).

Os processos atuais de produção do biodiesel ainda envolvem o uso de metanol não renovável e de catalisadores químicos que, de alguma forma, obscurecem ainda que parcialmente, o seu caráter de biocombustível renovável. O uso de metanol na reação com matérias lipídicas e os catalisadores químicos poderiam ser substituídos por bioetanol e por biocatalisadores, tornando-o um biocombustível ainda mais “verde”. Esta série de dois artigos tem o objetivo de apresentar aos investidores na cadeia do biodiesel o estado da arte sobre a utilização de lipases como biocatalisadores, na produção de biodiesel e as perspectivas para incorporaçào dessa tecnologia em escala comercial.

2.    Biocatálise
A transesterificação enzimática utilizando lipases possui algumas vantagens interessantes relatadas na literatura, como a separação mais fácil das fases pós reação, o custo mais baixo do tratamento de águas residuais, a maior facilidade para recuperação de glicerol e a ausência de reações paralelas indesejáveis, quando comparada com a transesterificação onde são utilizados os catalisadores químicos. Em decorrência, existe forte apelo ambiental, particularmente interessante nos processos de geração de energia renovável, em que um dos motes é justamente a redução do impacto ambiental. Estes aspectos foram muito bem discutidos no Congresso de Biotecnologia Industrial (Toronto, Canadá, 2006), pelo Dr. Pogaku Ravindra, da Universidade da Malásia (Ravindra, 2006).

Entretanto, do ponto de vista prático, existem dificuldades técnicas quanto ao uso de lipases, tais como a contaminação do produto com atividade enzimática residual indesejáveis, e o elevado custo das enzimas comerciais, como destacou o Dr. Sulaiman Al-Zuhair, também da Universidade da Malásia (Al-Zuhair, 2007). Uma das formas de reduzir o custo é a imobilização das enzimas, permitindo a sua reutilização por vários ciclos de reações de transesterificação. A equipe do Dr. Kenthorai Jegannathan, da Universidade da Malásia, tem estudado de maneira mais aprofundada os diversos aspectos do uso da biocatálise na produção de biodiesel (Jegannathan et al., 2008), especialmente no que tange à imobilização das enzimas e os fatores que afetam a eficiência da biocatálise nas reações de transesterificação para produção de biodiesel.

3.    Imobilização
Imobilização significa a ligação da enzima em um suporte sólido, ou em uma matriz de transporte. Em se tratando de um transportador, vários aspectos necessitam ser considerados, como acentuou o Dr. Isao Karube, da Universidade de Kyoto. O processo depende da resistência mecânica, resistência microbiana, estabilidade térmica, durabilidade química, funcionalidade química, balanço entre hidrofobia e hidrofilia, facilidade de regeneração da matriz, capacidade de carga e custos, que são aspectos cruciais em aplicações industriais (Karube et al., 1977).

A revisão da literatura recente mostra que inúmeros grupos de pesquisa, em diferentes países, estão investindo na melhoria de processos, para reduzir custos quanto ao uso de lipases, sendo a imobilização de enzimas um dos aspectos que merecem maior atenção dos cientistas. Artigos recentes mostram iniciativas inovadoras no desenho de processos robustos de imobilização enzimática, com a combinação de técnicas como a adsorção não-covalente, o aprisionamento covalente, a ligação com o substrato e o encapsulamento. O cientista chinês, radicado na Holanda, Dr. Linqiu Cao, em um artigo em que filosofa sobre o tema (Enzimas imobilizadas: ciência ou arte?) afirma que a disponibilidade de uma enzima imobilizada robusta, numa fase inicial de um processo, permite a visão antecipada desse processo em desenvolvimento, e implica em custos menores para o desenvolvimento de processos de produção (Cao et al., 2005).

Tendo em vista que a maioria dos artigos mais recentes sobre o uso de lipases para mediar reações de produção de biodiesel envolve o estudo de imobilização de enzimas, coerentemente vamos permear a presente análise com o aprofundamento deste tema, incluindo a discussão das diferentes técnicas de imobilização. Quando imobilizadas, as enzimas ficam fisicamente presas, embora preservando suas propriedades catalíticas. Existem duas grandes vertentes de aprisionamento: por via química ou por retenção mecânica.

Segundo Shah et al. (2004), uma enzima imobilizada deve executar duas funções essenciais. A primeira é a função catalítica, ou seja, mediar as reações de conversões dos substratos em novos produtos. A segunda, não catalítica, consiste em facilitar a separação dos produtos da reação. As principais técnicas de imobilização de lipases, empregadas na produção de biodiesel nos estudos realizados em laboratório, são de caráter de ligação química (adsorção, ligação iônica e ligação covalente) e de retenção física, que incluem o aprisionamento (entrapment) e o encapsulamento das enzimas.

3.1. Adsorção
Adsorção é definida como a fixação de enzimas na superfície de partículas de um suporte inerte por meio de ligações fracas, como a força de van der Waals1. A adsorção é o procedimento mais simples de imobilização enzimática, sendo de fácil preparação e de menor custo. Este método de imobilização não envolve produtos químicos tóxicos e a enzima imobilizada não apresenta limitações de transferência interna de massa, ao contrário do cross-linking ou aprisionamento.

A literatura registra estudos com diversas partículas de suporte para a imobilização de lipases na produção de biodiesel, como toionite 200-M, celite, terra diatomácea, polipropileno, membrana têxtil, hidrotalcita, sílica gel, resina acrílica e resina aniônica. Os estudos mostram que a taxa de conversão de óleos vegetais em biodiesel, usando lipase adsorvida, varia de 76 a 100%.

Yang et al. (2006) estudaram o efeito das propriedades polares e apolares das resinas, e concluiram que o grau de imobilização é alto, quando a lipase é adsorvida à uma resina apolar com diâmetro de poro entre 8,5-9,5 nm. Os mesmos autores relataram que o grau de imobilização aumenta com o aumento do diâmetro dos poros.

Apesar da técnica de adsorção resultar em alta atividade enzimática e o processo estar disponível no mercado, as enzimas podem ser liberadas do suporte durante a reação, pois a adsorção é baseada em forças de ligação fracas, resultando na perda da atividade enzimática devido à eventual lixiviação das enzimas (Yadav e Jadhav, 2005). Dependendo das forças de interação entre a enzima e o suporte, o processo de imobilização pode produzir mudanças de conformação na estrutura das enzimas, que são proteínas. Essas mudanças podem ser mais intensas com cargas baixas e podem até  causar a desnaturação da enzima (Bosley e Peilow, 1997). Os autores concluiram que a estabilidade da enzima imobilizada por adsorção é muito baixa, o que torna sua reutilização limitada e imprópria para aplicações industriais.

3.2. Cross-Linking
O método de cross-linking é baseado em ligações intermoleculares cruzadas entre as moléculas das enzimas, onde são utilizados reagentes bifuncionais ou multifuncionais tais como: glutaraldeído, bis-diazobenzidina, hexametileno di-isocianato, dentre outros. Os “agregados de enzimas” no sistema cross-linking formam matrizes de preparados imobilizados. Geralmente, o primeiro passo do processo de imobilização é a precipitação da enzima com acetona, para produzir os agregados físicos da enzima. Na sequência, estes agregados são reticulados com glutaraldeído, para formar uma estrutura mais robusta, conforme citado por Kumari et al. (2007).

A utilização de agregados de enzimas cross-linked mostrou uma aceleração na taxa de transesterificação, obtendo-se taxas de conversão da ordem de 92%.

Entretanto, a desvantagem intrínseca para os agregados cross-linked é o seu tamanho, geralmente abaixo de 10 mm. Assim, as dificuldades surgem quando o sistema é usado em reações heterogêneas, onde o sistema particula-substrato e agregados-partícula podem estar no mesmo intervalo de tamanho, o que pode acarretar problemas quanto a separação da enzima imobilizada e o produto (biodiesel), em reatores enzimáticos de uso contínuo (Cao et al., 2003).

3.3. Aprisionamento
O aprisionamento implica na ligação das enzimas à uma matriz polimérica (Xavier et al., 1990). A enzima assim imobilizada é muito mais estável do que a enzima fisicamente adsorvida. Ao contrário do método de ligação covalente, o aprisionamento utiliza um procedimento relativamente simples e a enzima imobilizada mantém sua atividade e estabilidade (Kennedy et al., 1990).

Um procedimento inovador para o aprisionamento de lipase de Pseudomonas cepacia dentro de uma matriz de sol-gel filosilicato, com tetrametil ortossilicato como precursor, foi descrito por Hsu et al. (2001). A lipase de P. cepacia foi aprisionada dentro dessa matriz polimérica sol-gel, preparada por policondensação de tetrametil ortosilicato hidrolisado e iso-butil timetoxisilano. A lipase imobilizada por essa técnica foi utilizada na transesterificação do óleo de soja, com uma taxa de conversão da ordem de 67%. Esse baixo grau de conversão, usando lipase aprisionada, pode ter sido devido à pouca difusão e à desnaturação da enzima aprisionada na superfície do suporte, durante o processo de transestrificação (Nourenddini et al., 2005).

3.4. Encapsulamento
Encapsulamento é o confinamento de uma enzima dentro de uma membrana porosa formando uma bicamada. O encapsulamento evita o contato direto entre a enzima e o meio de reação e previne a lixiviação da enzima (Yadav e Jadhav, 2005).

Entretanto, a produção de biodiesel utilizando lipases encapsuladas em sílica tipo aerogel, atinge uma taxa de conversão limitada, da ordem de 56%.

As enzimas encapsuladas podem ser recicladas várias vezes, sem qualquer deterioração visível pelo desgaste mecânico (Orçaire et al., 2006). Por outro lado, há grandes limitações quanto a difusão do uso de lipases encapsuladas, devido à alta concentração de enzimas, que pode obstruir os poros das matrizes. Assim, seria interessante produzir enzimas encapsuladas com tamanhos menores, para se evitar problemas de transferência de massa e, também utilizar enzimas purificadas para evitar o entumpimento dos poros da membrana de confinamento (Orçaire et al., 2006).

3.5. Outras técnicas de imobilização enzimática
A imobilização de enzimas, usando uma combinação de diferentes técnicas, é conhecida como imobilização híbrida, e apresenta resultados encorajadores tanto para a indústria de alimentos (Reyed, 2007), quanto para a farmacêutica (Posorske, 1984;. Bonrath et al, 2002).

Esta abordagem foi recentemente explorada para transesterificação de p-clorobenzil-álcool com acetato de vinil, para produzir p-clorobenzil acetato, usando lipase adsorvida em silica mesoporosa hexagonal, seguida por encapsulamento em alginato de cálcio (Yadav e Jadhav, 2005). Esse sistema de imobilização híbrido resultou em 68% de conversão e excelente reutilização, com uma diminuição da taxa de conversão de apenas 4%, após a quarta reutilização.

O potencial desta técnica poderia ser explorado para a produção de biodiesel, obviamente melhorando a taxa de conversão. Por exemplo, ela poderia ser usada para resolver a lixiviação de enzimas imobilizadas por adsorção o que possibilitaria uma alta taxa de conversão, utilizando-se pra tal uma membrana porosa e a técnica de encapsulamento, por exemplo.

Da mesma forma, microcristais revestidos de enzimas estão sendo utilizados em sistemas não aquosos, por apresentarem limitações de transferência de massa desprezíveis e atividade elevada comparativamente aos agregados (cross-linked) enzimáticos (Kumari et al., 2007). A preparação dos microcristais revestidos envolve a mistura da solução enzimática com uma solução concentrada de sal, açúcar ou de aminoácidos. À mistura aquosa é adicionado um solvente orgânico miscível em água, como acetona ou 1-propanol (Kreiner et al., 2001). A produção de biodiesel utilizando microcristais revestindos de enzimas apresentou alta conversão, entre 96 e 99% (Kumari et al., 2007).

Décio Gazzoni é Engenheiro Agrônomo, pesquisador da Embrapa Soja.

1  Em 1873, van der Waals elaborou uma equação relacionando a pressão e a temperatura de um gás com o seu volume. Para ele, a pressão deveria ser um pouco maior do que previam as equações até então adotadas, devido às forças de atração entre as moléculas do gás. A equação de van der Waals mostrou-se mais precisa do que as equações anteriores; por isso os cientistas aceitaram o novo modelo. As forças de van der Waals são muito fracas e atuam apenas quando as moléculas estão muito próximas umas das outras.
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