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Décio Luiz Gazzoni

Aquecimento global e agricultura


Décio Gazzoni - 11 fev 2009 - 16:10 - Última atualização em: 09 nov 2011 - 19:08

A crer nas promessas de campanha do Presidente Barrack Obama, a postura dos EUA frente às ações necessárias para mitigar o aquecimento global em curso, sofrerão uma forte guinada. Não apenas no trato global da questão, assumindo a responsabilidade dos EUA como maior emissor mundial de gases de efeito estufa, porém, no particular, em relação ao apoio ao uso de energias renováveis, em larga escala. Neste contexto, é importante que o Brasil discuta profundamente o tema e se prepare para as reuniões multilaterais do Pós Kyoto, lutando com firmeza pela necessidade de ampliar o uso de energia renovável no mundo, particularmente biodiesel e etanol.

Dentre as conseqüências mais impactantes do aquecimento global está o seu impacto sobre a produção agrícola mundial, pelo aumento de temperatura (consequentemente da evapotranspiração) e pela mudança do regime pluviométrico, reduzindo a produtividade e tornando algumas áreas impróprias para a agricultura, no estado da arte da tecnologia agrícola. Esta discussão interessa duplamente ao Brasil, como país que detém o maior potencial de expansão da agricultura em escala mundial, tanto no aspecto de alimentos quanto de produção de agroenergia.
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A crise alimentar de 2006-2008 demonstrou a fragilidade da oferta de alimentos do mundo. O rápido crescimento da procura para a alimentação animal e de biocombustíveis, aliada com rupturas no abastecimento agrícola causados pelo mau tempo, pragas agrícolas e de restrições à exportação em países-chave como a Índia e a Argentina, criaram o caos nos mercados internacionais, com disparada de preços de produtos agrícolas. Lidar com o desafio da volatilidade dos preços agrícolas, no curto prazo, foi assustador. Mas, no longo prazo, o desafio perpétuo de evitar uma crise alimentar sob condições de aquecimento global é muito mais grave. Os registros históricos mostram que as temperaturas extremas podem ser prejudiciais para a produtividade agrícola, levando a intervenções pontuais de alguns países para garantir o seu abastecimento interno e desorganizando o mercado internacional.

Recentemente, os professores David. S. Battisti (do Department of Atmospheric Sciences, University of Washington), e Rosamond L. Naylor (do Program on Food Security and the Environment, Stanford University), publicaram um artigo muito interessante na revista Science (Vol. 323, 9/01/2009). De acordo com os autores, temperaturas mais elevadas podem ter consequências dramáticas para a produtividade agrícola, em2 decorrência para a segurança alimentar do planeta. Para o seu estudo, utilizaram dados de 23 modelos climáticos globais para mostrar uma alta probabilidade (> 90%) que, até ao final do século 21, as temperaturas durante o período de cultivo agrícola, em regiões tropicais e subtropicais do planeta, serão superiores à mais extrema temperatura registrada entre 1906 e 2006. Em regiões temperadas, as estações mais quentes já registradas passarão a ser o padrão, em muitos locais. Foram usados exemplos históricos para ilustrar a magnitude dos danos causados à produção agrícola, pelos extremos de temperatura. O estudo mostra que estes eventos observados de forma rara no passado, poderão tornar-se tendências firmes a longo prazo, se não houver investimentos suficientes para mitigação da elevação da temperatura e adaptação ao novo regime climático. Na seqüência, comentamos os pontos principais do estudo.

Nas regiões tropicais e sub-tropicais do planeta, onde vivem mais de 3 bilhões de pessoas (cerca de 20% delas sobrevivendo com menos de US$2,00/dia) se concentra o maior risco de aumento da temperatura média. Justamente nestas regiões se localizam os países cuja economia é fortemente dependente do agronegócio, e cujas populações também dependem dele para sua sobrevivência. Como se verifica na Figura 1, a previsão dos autores do estudo (com probabilidade de ocorrência superior a 90%) é que a temperatura média durante a safra agrícola, em países tropicais e sub-tropicais (como o Brasil e grande parte da América Latina, África, Austrália e Sul da Ásia) seja superior ao máximo já observado até o momento. Estas conclusões concordam, em linhas gerais, com o relatório do Painel Internacional de Mudanças Climáticas, produzido em 2008.

    Portanto, a primeira questão que se impõe é: como as populações de países que dependem da agricultura subsistirão, com a previsão de impactos substanciais na produtividade agrícola? A segunda questão é: como garantir o abastecimento de alimentos e de biocombustíveis do mundo, se parte substancial da produção agrícola provém de países tropicais e sub-tropicais?

As perguntas são trascedentais porque os resultados de pesquisas e de modelos matemáticos, para a produção de grãos nessas regiões, demonstraram decréscimos de produtividade entre 2,5 a 16% para cada 1 ° C de aumento da temperatura média. Apesar da percepção geral que a agricultura em latitudes temperadas possa se beneficiar do incremento da temperatura para aumentar a produção de alimentos, as regiões temperadas na faixa de transição para sub-tropical também serão fortemente afetadas. A Figura 2 mostra que a temperatura média entre 2080 e 2100 deverá situar-se, aproximadamente, no limite das maiores temperaturas observadas ao longo do século XX – justamente aquelas que redundaram em frustração de safras agrícolas.

Para colocar as Figuras 1 e 2 dentro de uma perspectiva de situações recentes de alta temperatura, pode-se relembrar a onda de calor que atingiu a Europa Ocidental, em 2003. Na oportunidade, um número estimado de 52.000 pessoas morreram entre junho e agosto, devido à intensa onda de calor. A onda foi mais intensa na França e no norte da Itália, onde mais de 30.000 pessoas pereceram. Na França, a temperatura média de verão foi de 3,6 ° C acima da média de longo prazo. Infelizmente, até ao final deste século, verões quentes como 2003, provavelmente serão a norma para o país (Fig. 3). A previsão para 2090 é que a media seja de 3,7o.C acima da média dos registros históricos, podendo chegar até absurdos 9,8º.C acima da média histórica!

A situação apontada pelo modelo não é muito diferente para a Ucrânia, considerada um dos esteios da produção agrícola do continente (Fig. 4).

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Elevadas temperaturas diurna e noturna, durante a maior parte do verão ocasiona a redução da água disponível no solo. O efeito conjunto de estresse térmico e hídrico provoca redução da área foliar e do desenvolvimento e enchimento de grãos de culturas como cereais ou soja, afetando também árvores frutíferas e provocando o amadurecimento acelerado cultura em 10 a 20 dias, além de causar estresses profundos nas criações (gado bovino, frango ou suínos).

Devido à onda de calor de 2003, a Itália experimentou uma queda recorde na produção de milho (36% sobre o ano anterior), enquanto na França a produção de milho e forragens diminuiu 30%, a produção frutícola diminuiu 25%, e a colheita do trigo (que tinha quase atingira a maturidade no momento em que o calor foi mais intenso) diminuiu apenas 21%.

Tomando outro exemplo, as temperaturas de verão extremamente elevadas na antiga União Soviética, em 1972, contribuiu para rupturas violentas no mercado mundial de cereais e de segurança alimentar, permanecendo como um “case“ histórico de frustração de safra, pois o período 1972-1974 quebrou uma tendência de mais de 50 anos de queda de preços médios dos produtos agrícolas . O preço nominal do trigo saltou de US$60 para US$208/t.

Os dois exemplos citados acima se incluem entre os 10% de casos extremos de anomalias na temperatura média, observados entre 1906 e 2006, com a temperatura do verão variando de 2° a 4°C acima da média de longo prazo. Uma grande lição destes casos, bem como da crise alimentar 2006-2008 – que não foi integralmente devida aos problemas climáticos - é que as perturbações regionais podem, facilmente, tornam-se globais por natureza. Países frequentemente respondem à queda de produção e à volatilidade dos preços restringindo o comércio ou efetuando  grandes compras de grãos nos mercados internacionais. Em ambos os casos, são atitudes que desestabilizam os mercados globais, afetam a segurança alimentar e causam insegurança e volatilidade de preços. Portanto, deve-se considerar que, no futuro, o estresse térmico nas culturas e na pecuária irá ocorrer em um ambiente de crescimento constante da procura de gêneros alimentícios, rações para animais e biocombustíveis, em todo o mundo, tornando os mercados ainda mais vulneráveis à acentuadas oscilações dos preços. Finalmente, deve-se considerar que preços altos e variáveis são mais prejudiciais para as famílias pobres, que gastam a maioria dos seus rendimentos em alimentos.

Outra região em risco de temperaturas mais elevadas no futuro é o Sahel (Fig. 5), onde as culturas e a produção animal desempenham um papel essencial na economia, empregando cerca de 60% da população economicamente ativa e contribuindo com 40% do produto nacional bruto. O Sahel sofreu uma prolongada seca a partir de finais dos anos 1960 até o início de 1990, que fez despencar a produtividade das culturas e da pecuária, e que contribuiu para inúmeras mortes relacionadas com fome, além do acirramento das taxas de migração sem precedentes do norte o sul da região, e da área rural para a urbana ou para o litoral de países costeiros.

O estudo de Battisti e Naylor mostra que, para a região do Sahel a situação será mais grave, justamente por estar situada na faixa tropical do planeta. Neste caso, no final do século, a previsão é que a temperatura média durante o período de cultivo agrícola será superior aos valores extremos observados no século passado.

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Estes exemplos ilustram os danos que já foram causados por ondas de  calor forte e servem para alimentar os modelos de previsão dos danos que possam vir a ser causados no futuro. Se as temperaturas no final do século 21 efetivamente saltarem de patamar, e excederem as grandes ondas de calor do passado recente, a segurança alimentar global seria gravemente comprometida. As projeções dos modelos climáticos utilizados pelo IPCC em 2007 sugerem que este fenômeno é muito provável, e o estudo de Battisti e Naylor foi amplo, utilizando 23 diferentes modelos de previsão do comportamento do clima, e apontam para o aumento da temperatura durante o período de safra agrícola, com 90% de probabilidade de ocorrência. A figura 7 indica os locais do planeta onde, no período 2040-2060, são previstos verões mais quentes que qualquer registro anterior, enquanto a figura 8 mostra a mesma previsão para o período 2080-2100.

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Quatro importantes conclusões podem ser tiradas a partir das projeções contidas no estudo de Battisti e Naylor:
a)     países tropicais têm sofrido menos variações extremas de temperatura, na comparação com o ano anterior, porém a tendência de aumento da temperatura média é superior aos países de clima temperado - portanto serão os primeiros a sofrer prejuízos na agricultura, por conta do aumento da temperatura. Entretanto, mesmo em países temperados, a tendência será de temperatura média mais alta – no mínimo equivalente aos recordes dos extremos observados até o momento – logo sua agricultura também será prejudicada.
b)     as previsões de temperatura média sazonal representam a mediana, e não os extremos da distribuição do clima e, portanto, devem ser consideradas como o novo padrão para o futuro. Com efeito, com probabilidade superior a 90%, até ao final do século XXI, a temperatura média do verão deverá exceder o mais quente registrado até o momento, nos trópicos e regiões subtropicais.
c)     temperaturas que excedam o ano mais quente da série histórica, atingindo alguns países importantes do ponto de vista da produção agropecuária, tornarão o problema global, perdendo o caráter regional. Será extremamente difícil promover o equilíbrio de déficits alimentares em uma parte do mundo com excedentes alimentares em outro, a menos que grandes investimentos sejam feitos  para adaptar-se à nova situação. Em especial, o desenvolvimento de variedades de plantas cultivadas tolerantes ao calor e ao estresse hídrico e sistemas de irrigação adequado para diversos agroecossistemas são altamente prioritários.
d)    É fundamental mitigar o impacto das mudanças climáticas, reduzindo, drasticamente, a emissão de gases de efeito estufa. Apenas com a adoção de biocombustíveis (etanol, biodiesel e biogás) a Suécia logrou reduzir em 10% as suas emissões, o que representa o dobro do estabelecido pelo protocolo de Kyoto. Aí está a grande oportunidade da agenda brasileira para as discussões pós Kyoto.

Décio Luiz Gazzoni é Engenheiro Agrônomo da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e membro do Painel Científico Internacional de Energia Renovável.

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