Para fugir do petróleo biocombustível
Os flex fuel fazem sucesso no Brasil e, na Europa e nos EUA, os combustíveis orgânicos começam a ganhar as ruas.
O álcool de cana-de-açúcar, usado como combustível, é um velho conhecido dos motoristas brasileiros. Nos anos 70, quando o preço do petróleo subiu às alturas após um embargo dos países árabes, esse combustível chegou a alimentar 96% dos carros que rodavam no Brasil. Depois, quando o preço do petróleo caiu para níveis razoáveis e tornou-se mais vantajoso para as usinas transformar a cana em açúcar, o álcool foi sumindo gradativamente dos postos. Nos últimos tempos, o álcool voltou às bombas na esteira de uma das mais surpreendentes reviravoltas da indústria automobilística brasileira: o sucesso de venda dos carros bicombustíveis, também chamados de flex fuel.
Graças a modificações efetuadas no sistema de injeção do motor, esses veículos podem rodar indistintamente com gasolina, álcool ou com uma mistura em qualquer proporção de ambos os combustíveis. Atualmente, seis fabricantes oferecem carros bicombustíveis. Na Volkswagen, a primeira a lançá-los, em 2003, os flex fuel já respondem por 66% das vendas e, até o fim de 2006, todos os automóveis produzidos pela empresa serão bicombustíveis. No cômputo geral, os flex fuel hoje respondem por 33% dos carros zero-quilômetro que saem das concessionárias. "Não há como fechar os olhos para esse fenômeno, nenhuma empresa pode ficar de fora do mercado dos flex fuel", diz Ana Theresa Borsari, diretora de marketing e qualidade da Peugeot no Brasil, que lançou sua linha bicombustível há três meses
O sucesso dos flex fuel fez com que as vendas de álcool combustível dessem um fantástico salto de 34% entre 2003 e 2004. Isso porque, para a maioria dos motoristas brasileiros, sai bem mais barato rodar com ele. Na ponta do lápis, para ficar em conta, o litro de álcool precisa custar até 70% do preço cobrado pelo litro de gasolina. Isso porque, no tanque do carro, o álcool rende 30% menos que a gasolina. Para os motoristas do estado de São Paulo, onde o álcool custa metade do preço da gasolina, a vantagem a favor do derivado da cana é evidente. Já no Distrito Federal e no Pará, locais em que o litro de álcool custa, respectivamente, 76% e 85% do preço da gasolina, esta é mais vantajosa para o consumidor. Calcula-se que hoje 90% dos proprietários de automóveis flex fuel encham o tanque exclusivamente com álcool.
"O carro flex fuel protege o consumidor das crises de abastecimento e das variações de preço. Se o preço do álcool aumenta, você vai para a gasolina, e vice-versa", observa Rafael Schechtman, diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Essa opção é particularmente atraente quando se considera que, nas últimas três décadas, os brasileiros correram para os veículos a álcool fugindo da crise do petróleo e, depois, se viram enfrentando filas nos postos para conseguir abastecer. "Nunca tive um carro a álcool porque tinha medo do histórico negativo desse veículo. Num dia tinha álcool e no outro não tinha mais", diz o empresário paulista João Angelo Fontana, que venceu o medo e comprou recentemente um Peugeot 206 flex. Segundo cálculos da União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica), que responde por mais da metade da produção nacional de álcool no país, o fantasma do desabastecimento estará afastado enquanto o preço do petróleo continuar em patamares elevados, como os atuais 50 dólares o barril. "Com o barril acima dos 35 dólares, o álcool já se torna mais vantajoso", diz Antonio de Padua Rodrigues, técnico do órgão.
Essa contabilidade é o principal motivo pelo qual a experiência brasileira na produção de combustível orgânico, o chamado biocombustível, é acompanhada com interesse no exterior. O preço do petróleo tem subido tanto que, pela primeira vez, o biocombustível começa a se tornar mais barato para o consumidor em escala mundial. Nos Estados Unidos, onde já há 4 milhões de veículos rodando com uma mistura de gasolina e álcool de milho, a produção deste biocombustível cresce 30% ao ano. Na Alemanha, a produção de biodiesel feito com óleo de canola aumenta anualmente 45%. A França pretende triplicar sua produção de álcool e de biodiesel até 2007. O Canadá prepara-se para construir uma usina de álcool combustível retirado da palha do trigo. As razões que movem esses países em direção aos biocombustíveis nada têm a ver com a defesa do verde. O objetivo é precaver-se contra eventuais reviravoltas na oferta de petróleo. O mundo que se forjou no século XX nasceu de um casamento indissolúvel com o petróleo, mas os indícios são de que todos os grandes lençóis petrolíferos já passaram de seu pico produtivo ou estão próximos dele. A Agência Internacional de Energia, com sede na França, projeta que será difícil para as economias desenvolvidas se manterem caso não possuam uma alternativa consistente aos derivados de petróleo, já que as reservas atuais seriam suficientes para atender ao crescimento da demanda somente nas próximas três décadas.
Outro fator de insegurança para os países europeus e os Estados Unidos – e também para o Brasil – é que a maior parte das reservas de petróleo se encontra sujeita aos ventos instáveis do Oriente Médio. Em nada ajuda o fato de que a Venezuela, o quinto maior produtor mundial, esteja sob o domínio de um clone de Fidel Castro disposto a usar seu petróleo como uma arma política. Tudo isso faz dos biocombustíveis uma real alternativa futura à gasolina e ao diesel. Não há nada de excêntrico nisso. O alemão Rudolf Diesel desenvolveu um motor preparado para funcionar com óleo de amendoim e, em teoria, poderia trabalhar também com óleo de cozinha – pelo menos até os filtros entupirem. Henry Ford era um entusiasta do álcool como combustível, mas se rendeu à gasolina devido ao preço mais em conta do produto na época. Por enquanto, o uso de biocombustíveis na Europa e nos Estados Unidos, assim como na China, encontra-se num estágio pouco além do experimental. Os americanos são os mais avançados, graças à disponibilidade de milho, usado como matéria-prima para o álcool.
O maior problema para a expansão de seu consumo é o custo de produção. Para que os biocombustíveis cheguem às bombas a preços competitivos com os da gasolina e do diesel, a maioria dos governos precisa desembolsar gordos subsídios. Nos Estados Unidos, o litro do chamado combustível E85, composto de 85% de álcool de milho e 15% de gasolina, custa cerca de 45 centavos de dólar – 16 centavos são bancados pelo governo. O litro da gasolina sai em média por 53 centavos. Na Alemanha, o biodiesel de canola é mais barato que o diesel convencional porque o governo deixa de cobrar 47 centavos de euro de imposto por litro. A França e a Inglaterra adotam subsídios semelhantes. No Brasil, onde o álcool já anda com as próprias pernas, não se subsidia o produto desde 1999. Pelo menos por enquanto, com o sucesso dos carros flex fuel e a fartura de cana-de-açúcar, o Brasil se mantém na linha de frente na troca da gasolina pelos biocombustíveis.