PUBLICIDADE
CREMER2024 CREMER2024
Bio

Pinhão-manso: a dificuldade de atingir escala em projetos regionais


. - 01 jul 2011 - 10:40 - Última atualização em: 09 nov 2011 - 19:17

Depois que anoitecia, as ruas de Garalo, pequena cidade no sul de Mali, costumavam ficar em completo breu. Sem eletricidade, seus perto de 10 mil habitantes usavam parafina (querosene) para iluminar suas casas e locais de trabalho, e lanternas a pilha para andar pelas ruas.

Há anos que a população pedia pela ampliação da rede elétrica até a região, mas o trabalho se provara muito dispendioso. Em 2006, os agricultores de Garalo tomaram a questão nas próprias mãos. Percebendo que o algodão já não lhes dava uma renda razoável, eles resolveram plantar pinhão-manso (Jatropha curcas), cujas sementes produzem um óleo que pode ser queimado para produzir eletricidade. Para realizar seus planos, os moradores de Garalo uniram forças com uma ONG chamada Fundação FACT (Fuels from Agriculture in Communal Technology Foundation). Com sede na Holanda, a fundação assiste países em desenvolvimento na produção e uso de biocombustíveis. Hoje, os agricultores locais cultivam pinhão-manso em 600 hectares de terra, gerando eletricidade para 350 casas – praticamente metade da população da cidade – e estabelecimentos comerciais, assim como para a iluminação das ruas. Outras 200 residências já expressaram interesse em integrar-se à rede elétrica, afirma Winfried Rijssenbeek, diretor da Fundação FACT.

Além de fornecer luz, aquecimento e combustível para transporte, os biocombustíveis deram aos estabelecimentos comerciais e trabalhadores de Garalo confiança e instrumentos para modernizar-se e expandir. Houve um alfaiate, por exemplo, que comprou uma máquina de costura elétrica, e um fabricante de móveis que comprou ferramentas elétricas. Ambos podem agora realizar seus trabalhos melhor e mais rápido, aumentando seus ganhos, afirma Rijssenbeek. “A eletricidade teve um grande impacto sobre os moradores. Criou uma atitude positiva nas pessoas que vivem aqui”, acrescenta ele.

O projeto Garalo é prova de como a produção de biocombustíveis pode melhorar formidavelmente a vida de pessoas pobres em países em desenvolvimento. Tanto é que a Fundação FACT está copiando o modelo para outros dez vilarejos próximos, visando atender mais agricultores e plantar outros 900 hectares de pinhão-manso. Rijssenbeek diz que seu objetivo em longo prazo é prover eletricidade gerada a partir de biocombustíveis para cem vilarejos.

fact-pm-mali.jpg
Trabalhadores em Garalo, Mali extraindo o óleo da Jatropha curcas para ser queimado e gerar eletricidade

Poder coletivo
O que faz do projeto Garalo um sucesso tão grande, diz Rijssenbeek, é que os habitantes assumiram o controle e se responsabilizaram pela iniciativa por conta própria. Os agricultores de Garalo organizaram-se numa cooperativa onde as sementes de pinhão-manso são recolhidas e esmagadas. Eles tomam decisões e lidam com problemas em conjunto, garantindo coletivamente preços justos para suas colheitas e para a eletricidade que compram.

Para dar início ao projeto, várias organizações, como a Stichting Het Groene Woudt (fundação privada de origem holandesa) e um departamento estatal de Mali financiado pelo Banco Mundial, forneceram fundos para a construção das instalações de esmagamento das sementes e de uma estação elétrica onde o óleo é convertido em eletricidade. A estação elétrica é gerida por uma organização não-governamental local, o Mali Folkecenter. Além disso, a Fundação FACT ajudou estabelecimentos locais a obter acesso a crédito para fazer proveito da nova rede de energia.

Será que projetos como o de Garalo podem ser expandidos para o resto da África de modo a causar um impacto significativo no alívio da pobreza e na melhoria das condições de vida? É uma perspectiva tentadora. Vários países africanos sem saída para o mar e com infra-estrutura primária têm pouco ou nenhum acesso aos combustíveis fósseis de que os países desenvolvidos dependem. Os biocombustíveis, fabricados a partir de alguma matéria-prima apropriada para a região, poderiam tornar-se uma fonte interna de combustível a preços acessíveis, e inclusive comercializados para o exterior, diz Tom Richard, bioengenheiro da Universidade do Estado da Pensilvânia. A produção em larga escala criará um mercado de exportação para biocombustíveis fabricados em países em desenvolvimento, tornando possível aos agricultores “diversificar suas fontes de renda”, diz Richard. Desta forma, a crescente indústria de biocombustíveis pode ajudar os países pobres a fortalecer suas economias e criar empregos e novas formas de renda para agricultores.

Apesar dos seus muitos sucessos, a iniciativa de Garalo fica bem aquém dessa ambição grandiosa. Seus benefícios ainda se limitam a casas e comércios anexados à rede elétrica neste momento. Além disso, o projeto ainda depende de financiamento externo. “Sai muito caro tocar pequenas destilarias”, diz Frank Rosillo-Calle, pesquisador honorário da área de políticas energéticas do Imperial College London.

Projetos de caridade como este são um ótimo primeiro passo, mas é improvável que ajudem a África a conseguir maior crescimento econômico e independência energética. O objetivo de Rijssenbeek de que o projeto seja gerido como negócio autossustentável ainda é uma esperança longínqua. A renda gerada com a venda de eletricidade cobre as despesas operacionais, mas mal arranha os custos incorridos no estabelecimento do projeto. “Neste estágio, não dá para tocar o empreendimento como projeto comercial”, admite Rijssenbeek.

A estrada para a produção em larga escala de biocombustíveis é cheia de percalços para os países em desenvolvimento, e o que funciona como projeto assistencialista de pequena escala raramente se traduz em sucesso comercial. O grosso dos investimentos na produção de biocombustíveis em países em desenvolvimento vem de grandes companhias de capital estrangeiro, cujo objetivo é estabelecer plantações de escala industrial, diz Laura German, especialista em governança de florestas do Centro para Pesquisa Florestal Internacional (Cifor), com sede na Indonésia. Um estudo realizado por German e Jan Willem van Gelder, da empresa de pesquisas econômicas Profundo, levantou que, entre 2000 e 2009, um total entre US$ 5,7 e US$ 6,7 bilhões foi investido por dez grandes empresas da Ásia, África e América Latina (com o Brasil respondendo por mais da metade deste volume). No entanto, os projetos comerciais de capital estrangeiro estabelecidos até agora não conseguiram, em sua maioria, trazer os benefícios esperados para as populações locais.

German estudou iniciativas de produção comercial de biocombustíveis em Gana e na Zâmbia, onde empresas estrangeiras adquiriram, respectivamente, 1,1 milhão e 600 mil hectares, a maior parte para plantar pinhão-manso. As comunidades e agricultores locais costumam vender suas terras para companhias estrangeiras na esperança de conseguir emprego, ou então assinam contratos vinculantes com alguma empresa para o plantio de pinhão-manso. Mas as empresas muitas vezes voltam atrás nos contratos, diz German, e os empregos prometidos jamais se concretizam. Em um caso na Zâmbia, agricultores foram contratados para plantar pinhão-manso por um preço fixo para uma empresa específica. Mas quando o plantio entrou em fase de frutificação, “a empresa não pôde ser encontrada em lugar algum”, diz ela.

Nessas situações, as companhias estrangeiras estão com a maior das cartas nas mãos. Os moradores locais geralmente não têm experiência e conhecimento jurídico para negociar condições favoráveis, e têm muito pouco poder para exigir algo das empresas. Em consequência, muitas comunidades acabam amarradas a contratos de arrendamento de longo prazo, de até 50 anos, em que as empresas ditam o preço que será pago aos agricultores. “As pessoas anseiam desesperadamente por investimentos, mas se deixam deslumbrar quanto aos benefícios que podem obter”, diz German. “As expectativas são grandes, mas há pouca compreensão do que é necessário para conseguir os benefícios.”

Nem tudo é má notícia: German e os colegas dela depararam com algumas empresas em Gana que operavam de acordo com as regras. As empresas registraram-se nas agências governamentais adequadas, obtiveram autorizações ambientais e ofereceram pagamento e acordos justos aos moradores. Entretanto, todos os empreendimentos da área de biocombustíveis estão “manchados” aos olhos da sociedade civil e dos militantes dos direitos humanos, que defendem os direitos dos habitantes da região. Ironicamente, são as empresas responsáveis, que conversam com grupos locais e mantêm as autoridades informadas, as que sofrem investigações mais pesadas, diz George Schoneveld, também pesquisador de governança florestal do Cifor. “Quanto mais visível e engajada é a empresa, mais ela tende a ser escrutinada”, diz ele. “As mais suspeitas e cheias de segredo não sofreram quase nenhuma exposição.”

Expansão com ética
A eficiência e as economias de escala que advêm da comercialização e centralização da produção de biocombustíveis trazem benefícios limitados para a população local. Em um relatório publicado em abril, o Conselho de Bioética de Nuffield, think-tank com base em Londres, afirma que a política europeia de exigir que 10% da demanda energética na área de transportes seja atendida por combustíveis renováveis até 2020 está levando a uma expansão “insustentável" e “antiética” da produção global de biocombustíveis.

Mesmo assim, dado o potencial para combater a mudança do clima e reduzir a pobreza, o relatório do Nuffield conclui que o governo tem o “dever” de desenvolver biocombustíveis. Se os países puderem assegurar que parâmetros éticos e ambientais sejam seguidos – ou seja, que os combustíveis não prejudiquem a saúde das pessoas, não infrinjam direitos trabalhistas, nem contribuam para o aumento das emissões de gases de efeito estufa –, então eles devem incentivar o investimento estrangeiro em projetos de biocombustíveis, diz Richard Templer, diretor do Instituto Porter para Pesquisas em Bioenergia Sustentável do Imperial College London. “Se eles conseguirem fazer biocombustíveis da forma correta, eles devem fazer”, diz ele.

Os autores do relatório do Nuffield sugerem que a Comissão Europeia deve estabelecer um sistema de monitoramento para verificar que todo combustível consumido na Europa atenda a parâmetros de direitos humanos e para possibilitar sanções rápidas àqueles que abusarem desses direitos, como, por exemplo, ao não pagar salários justos ou empregar crianças no processo de produção. Eles também solicitam ao Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente que desenvolva um critério internacional para promover “um mercado para biocombustíveis economicamente sustentável e respeitador dos direitos humanos”, diz Joyce Tait, pesquisadora de ciência política e autora principal do estudo.

Os governos também podem desempenhar um papel maior ao regulamentar a expansão da indústria de biocombustíveis, assegurando que seus benefícios sejam materializados nas comunidades locais, diz German. Nisto pode se incluir a exigência de compromissos concretos das empresas e a responsabilização das mesmas quando as promessas não forem cumpridas, assegurando que as pessoas recebam compensações legais. Ademais, diz German, os governos poderiam dar maior assistência financeira e incentivos para o estabelecimento e operação de projetos de biocombustível para a agricultura familiar, como o da Fundação FACT, colaborando para eliminar a disparidade entre pequenos projetos assistencialistas e empreendimentos comerciais de grande escala. Tais parâmetros e regulamentações internacionais ajudariam as comunidades a perceber os benefícios dos biocombustíveis, encorajariam melhores práticas entre as empresas investidoras – e melhorariam a reputação dos biocombustíveis.

Ainda há tempo para aprender lições e fazer mudanças para melhor. Mais projetos demonstrando o impacto positivo dos biocombustíveis, como aquele em Garalo, ajudarão a superar o ceticismo dos grupos preocupados com o impacto negativo dos biocombustíveis em termos de justiça social e segurança alimentar, diz Tom Richard.

“É fácil imaginar que faríamos biocombustíveis de larga escala de forma errada no futuro, porque fazemos de forma errada agora”, diz Richard, acrescentando que “precisamos sair desta mentalidade”. Os biocombustíveis, desenvolvidos em escala industrial e local, diz ele, precisam fazer parte das opções disponíveis para situar o mundo sobre uma base mais sustentável e equitativa.

Natasha Gilbert
Fonte: Nature
Tradução e adaptação BiodieselBR.com