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Décio Luiz Gazzoni

Alimento e biocombustíveis: uma análise completa


Décio Luiz Gazzoni - 28 abr 2008 - 15:33 - Última atualização em: 09 nov 2011 - 19:06

Como eu já havia dito...

por Décio Luiz Gazzoni

Os leitores que me perdoem voltar a discutir o sofisma do conflito entre a produção de biocombustíveis e de outros produtos agrícolas. Desde 2004 me dedico a prospectar os impactos da agricultura de energia sobre a oferta, demanda e preços da agricultura mundial. Pertencer ao Painel Científico Internacional de Energia Renovável sem dúvida abriu-me muitas portas e me permite um ponto de observação isento e distanciado. Como a história completa é comprida, vou começar pelas conclusões para depois demonstrar cada um dos pontos.

Com exceção do etanol de milho dos EUA e de trigo da UE, e do biodiesel de canola da UE, os biocombustíveis não têm quase nada a ver com aumento de preços de produtos agrícolas no mundo. Procure os culpados (!) na inclusão social na Ásia e na África, nos subsídios agrícolas do Primeiro Mundo, na desvalorização do dólar em escala global, no aumento estratosférico do custo dos fretes, na especulação financeira que está deslocando a liquidez para commodities (não só agrícolas) e no aumento de custo dos insumos agrícolas - que são causas estruturais - e no clima adverso que frustrou algumas safras de cereais no ano passado. Neste contexto, os biocombustíveis exercem um papel terciário e marginal no aumento de preços de commodities agrícolas. Este impacto, mesmo pequeno, se deve – repito - exclusivamente ao etanol de milho americano, o biodiesel de canola e o etanol de trigo na Europa. Ponto final.

Os fatos do Primeiro Mundo

As declarações contra a agroenergia (o presidente do FMI, do BIRD, da Nestlé, o Primeiro Ministro da Inglaterra, o Comissário para Agricultura da UE e outras lideranças do Primeiro Mundo.) fazem parte de um claro jogo de interesses. Ninguém é inocente e todos sabemos que algumas dezenas de bilhões de dólares, a permanência no cargo, a liderança geopolítica e a votação na próxima eleição depende do que o político ou o ocupante de um cargo  verbalizar na mídia. Nos bastidores das declarações de lideranças políticas e empresariais do Primeiro Mundo esconde-se a defesa do status quo petroleiro, dos subsídios agrícolas da Europa e da especulação com commodities.

Até pouco tempo, os mesmos líderes (ou similares) mostravam-se mortificados com a divulgação dos relatórios do Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas, o grupo de cientistas de primeira linha que ganhou o Premio Nobel da Paz de 2007. Na oportunidade, os políticos faziam declarações prometendo um futuro mais limpo, sempre com o apelo para a energia renovável, em especial da agroenergia. Por que? Pela simples razão que os formadores de opinião, a sociedade e os seus eleitores exigiram ações imediatas para resgatar a dignidade do Planeta Terra.

Foi neste contexto que a União Européia ampliou sua meta já agressiva de substituição de combustíveis fósseis por renováveis, prometendo, em 2020: a) reduzir em 20% a emissão de gases de efeito estufa; b) aumentar para 20% a participação da energia renovável na matriz energética (10% apenas com biocombustíveis); c) aumentar em 20% a eficiência de uso da energia. Foi pelo mesmo motivo que o Presidente Bush sancionou uma legislação ainda mais ambiciosa de substituição de derivados de petróleo.

Como o discurso mudou, em poucos meses... E depois reclamamos que jogador de futebol não para mais em time algum, vive trocando de camiseta, defendendo com o mesmo ardor a camiseta que veste no momento contra o time que defendeu com garra há apenas cinco partidas! E os políticos, que mudam para posições antagônicas, ao sabor dos interesses e das conveniências do momento? Esquecendo as juras e promessas do mês anterior? Será que o perigo das mudanças climáticas passou, que se tratava de alarme falso?

Mudanças climáticas

Não é o que mostram os fatos recentes. Apesar das nevascas do começo do ano na Europa e na China, o mês de março de 2008 foi o segundo mais quente já registrado no planeta, e o mais quente quando se considera só a temperatura em terra firme, de acordo com a NOAA (Agência Nacional da Atmosfera e Oceanos dos EUA). A agência afirmou que temperaturas altas na maior parte da Ásia puxaram a temperatura terrestre deste mês para 4,9º C, ou seja 3,9º C acima da média do século 20. Em 129 anos de medições, só o mês de março de 2002 foi mais quente que o mês passado. Embora a Ásia tenha tido neste ano sua maior cobertura de neve em janeiro, o calor em março causou um derretimento rápido, e a cobertura de neve naquele mês teve uma mínima recorde. Já nos oceanos, as temperaturas foram mais baixas, com março de 2008 sendo apenas o 13º mais quente da história.

O calor ao longo das últimas décadas, com 11 dos 12 anos mais quentes desde o século 19 (quando começaram as medições com termômetros) registrados desde 1990, continua a trazer preocupações com o aquecimento global, causado pelas emissões de gás carbônico pela queima de combustíveis fósseis. E, no que depender dos EUA, as temperaturas continuarão subindo pois, de acordo com a AIE, as emissões dos Estados Unidos devem crescer mais um quarto até 2025 em relação a 1990.

O ano de 2025 foi a data estipulada pelo presidente Bush para as emissões americanas pararem de crescer. Se Bush não tivesse rejeitado o Protocolo de Kyoto, a partir de 2008 as emissões americanas precisariam declinar em relação a 1990. Porém, de acordo com a AIE, as emissões de gases-estufa dos EUA vão crescer 18% entre 2005 e 2025 ou 38% a mais, comparado com 1990. Mesmo se todas as medidas anunciadas por Bush - como eficiência energética e biocombustíveis - forem implementadas, o crescimento total em relação a 1990 será de 23%.

Logo, a questão das mudanças climáticas e da necessidade vital de contar com a agroenergia para sua mitigação continua presente. Devemos, portanto, buscar as razões das reações dos políticos em outro terreno, perscrutando as razões subjacentes às suas falas.

Os fatos dos outros

O jogo de interesses do time contrário à agroenergia não se esgota no Primeiro Mundo. Basta olharmos o que ocorreu durante a Conferência Regional da FAO, realizada em Brasília (14 a 17 de abril de 2008). Já na chegada, de forma orquestrada, os representantes da Bolívia, Argentina, Cuba e Equador abriram suas baterias contra os biocombustíveis, ameaçando com os quatro cavaleiros do Apocalipse ou com a peste da fome a quem produzisse energia ao invés de comida. Pode-se desconfiar de ignorância total sobre o tema, de má fé ou de jogo de interesses. Do meu ponto de vista, estes companheiros nada mais fizeram que reverberar o discurso do companheiro Chavez, de quem dependem financeira e politicamente.

Chávez ataca os biocombustíveis porque os recursos financeiros para fazer seu jogo geopolítico vêm dos petrodólares, portanto não poderia fazer gol contra. E porque jamais vai perder uma oportunidade de bater nos EUA e, particularmente, em Bush. No caso, os EUA realmente cometem o pecado mortal de produzir etanol de milho, ineficiente sob qualquer ótica de análise, seja ambiental, social, energética ou econômica.

Alguém pode argumentar: Mas o companheiro Chávez não poderia ser mais inteligente, e selecionar melhor onde e em quem bater? Acontece que ele é inteligente e tem objetivos muito claros. É muito fácil demonstrar o erro estratégico de produzir etanol de milho e suas conseqüências nefastas. Mas, o que ele ganha ao bater, indiscriminadamente, nos biocombustíveis, o que parece um contra-senso? Ora, ora, companheiro. Com quem ele disputa a liderança na América Latina, e o espaço de mídia tão ao seu gosto, para expor seus factóides de tanto mau gosto? Com Lula. Logo, ele precisa ser o contraponto do discurso de Lula porque, sendo seu aliado, ficaria obnubilado, o que não é exatamente o objetivo que Chavez persegue.

Lula

Então só o Lula é santo? O Lula não é santo coisissima alguma, ele também joga o jogo de interesses, só que do outro lado do campo. Ele foi – felizmente – emprenhado pela visão futurista de seu ex-ministro Roberto Rodrigues, de que a Agroenergia será o maior negócio do agronegócio mundial. E quem ganha neste jogo são os países que podem expandir sua agricultura, ou seja, América Latina e África. E, por expansão, entenda-se produzir mais, melhor e deforma sustentável, seja com aumento de produtividade ou expansão de área.

Lula está puxando a brasa para o seu assado, que é o assado da maioria dos países pobres ou remediados. Logo Lula joga o jogo do país que preside. Se Lula fosse presidente de um país com fortes subsídios agrícolas ou grande produtor de petróleo - onde a produção de agroenenergia não trouxesse benefícios sociais, ambientais ou econômicos - não acredito que o seu discurso atual seria prioridade para ele.

Por enquanto, ele é voz isolada. A Argentina poderia jogar no mesmo time, mas depende de Chávez para comprar seus títulos públicos e manter o populismo crônico dos ocupantes da Casa Rosada. Como ninguém quer comprar títulos do Tesouro argentino, o país fica refém de Chávez pois, caso contrário, teria que fazer sua lição de casa, cortando gastos públicos, reduzindo o déficit, reajustando preços da economia – especialmente alimentos e energia – e liberando as exportações agrícolas.

A Bolívia, igualmente depende de Chávez, de seu dinheiro e seu apoio logístico e político. Cuba é um país extremamente pobre e inviável há 50 anos. Chávez nada mais faz que substituir a ex União Soviética ao aportar milhões de petrodólares mensais para amparar um governo deficitário. Em troca, associa seu nome com Fidel Castro, um mito da esquerda contemporânea mundial. Não nos esqueçamos que Cuba gasta algo como US$3 bilhões por ano para importar alimentos, apesar da pobreza do seu povo e de sua economia ser eminentemente agrícola. Quem financia esta importação no devido momento, cobra seu preço. Não em dólares, mas em apoio político às suas teses bolivarianas.

Países africanos também se beneficiarão da agroenergia no futuro. Naquele continente existe muita terra para expansão da agricultura, seja para produzir alimentos, fibras, pastagens, flores, ou energia. Ocorre que nenhum país africano tem a projeção que o Brasil tem no mundo. Seus líderes ainda restringem-se às fronteiras nacionais e não podem sonhar com o espaço de mídia e a repercussão que o Brasil e Lula têm. Na recente visita de Lula á Gana, seu presidente John Kufuor apoiou a tese defendida pelo presidente brasileiro. Porém, quem acompanha a imprensa internacional viu que apenas Lula apareceu, o apoio de Gana passou totalmente despercebido.

Por enquanto, Lula é o Davi agrícola contra o time dos Golias petroleiros, protecionistas e especuladores. Quem sair vencedor desta contenda vai balizar muito do futuro do mundo: se permaneceremos com matriz energética suja ou se vamos limpá-la; se o impacto dos relatórios sobre Mudanças Climáticas provocarão mudanças estruturais no mundo ou se tudo não passou de um cala-boca momentâneo; se o Primeiro Mundo continuará a ditar as regras globais da agricultura e da energia, especialmente as comerciais, ou se viveremos uma nova quadra de maior equidade no mundo dos negócios planetários.

Inclusão social

Passemos das conclusões às demonstrações. Por questão de espaço, não será possível colocar todas as informações que demonstram que, nos últimos anos, a fome está diminuindo no Mundo e sua população está ingerindo produtos de melhor qualidade e mais alto valor nutricional. Não falo do Brasil, nem da América Latina, onde há fome, porém parcial, de menor escala. Refiro-me aos países asiáticos e africanos, onde se concentra a disparada maioria dos 800 milhões de famintos que a FAO ainda estima existir no mundo.

Este número já foi maior, porém o crescimento econômico espetacular de países superpopulosos (especialmente China e Índia) traz aos mercados, a cada ano, dezenas de milhões de seres humanos outrora famintos. O mundo não estava preparado para aumentar a produção agrícola na mesma proporção em que aumenta a demanda, há um retardo na reação, típica dos mercados regidos por demanda e oferta: primeiro cresce a demanda, em forma consistente, depois a oferta vem atrás.

Nesta situação, ocorre o que consta dos manuais de rudimentos da ciência econômica há séculos: maior demanda sem oferta equivalente, preços mais elevados. Bingo. Parece que as lideranças do Primeiro Mundo, além de não lerem as notícias de jornais ou as estatísticas dos órgãos internacionais que mostram o crescimento acelerado destas economias, não sabiam que aumento da renda per cápita em países pobres leva, inexoravelmente, ao aumento da demanda de alimentos. Também cabularam as aulas de economia que lhes teriam ensinado que, nesta condição, só há um rumo a tomar: aumentar a produção de alimentos. Depois o Terceiro Mundo é que tem ensino de baixa qualidade. Se descartarmos esta tese, a alternativa é muito pior, pois indicaria que apenas beócios são guindados a cargos políticos de poder e liderança.

Na Figura 1 pode-se verificar o quanto aumentou a demanda de soja pela China e, na Figura 2, o aumento da demanda de milho, pelo mesmo país. Verifica-se que, em ambos os casos, a China troca de sinal no mercado internacional, passando de exportadora para importadora de grãos. No caso de soja, em 2004 e, no caso do milho, em 2010. Não cabe qualquer discussão sobre as causas que levaram a China a aumentar dramaticamente suas importações de soja ou milho. Trata-se, indubitavelmente, de aumento de consumo de alimentos, aliado a uma redução da disponibilidade de área plantada e frustrações de safra.

Figura 1. Importação de soja pela China.

 

Fonte: 1982-2007: ERS/USDA; 2008-2021: projeções do autor

Figura 2. Importação e expoertação de milho pela China



Fonte: ERS/USDA.

A Figura 3 mostra a evolução do preço dos óleos vegetais no mundo, mostrando com clareza como o mercado precifica a futuro o desequilíbrio entre a demanda de China e Índia por óleos vegetais e a escalada de preços, a partir de 2006

Figura 3. Cotação dos principais óleos vegetais na CBOT

Fonte: ERS/USDA

Embora os estudos tenham sido efetuados antes de o mundo perceber o dramático impacto na inclusão social gerada pelo abandono das teses comunistas e a adesão ao capitalismo pelo governo chinês, as previsões efetuadas pelo IFPRI (International Food Policy Research Institute) já apontavam para uma demanda acelerada de alimentos, no período, conforme pode ser observada nas Figuras 4 e 5.

Figura 4. Demanda mundial de cereais para consumo humano direto

Fonte: IFPRI

Figura 5. Demanda mundial de carnes
  
Fonte: IFPRI

Percebe-se que a demanda por carnes apresenta uma taxa de incremento alta, o que significa também maior consumo de cereais. Qualquer agrônomo bem informado sabe que, em média, a produção de um quilo de carne nos sistemas confinados exige o consumo de 7 kg de grãos. Logo, comer mais e melhor significa que a agricultura terá que aumentar em muito sua produtividade e, até certo ponto, a área ocupada, caso contrário os ganhos de renda per cápita nos países pobres terá sido em vão, porque os alimentos vão subir acima dos demais preços da economia. A menos, obviamente, que os países ricos se disponham a reduzir seus subsídios agrícolas e abrir seus mercados. Viva fosse e Maria Antonieta poderia dizer” ...se falta pão que comam gadgets”. Porque gadgets? Ora, porque mais pão (=alimentos) será produzido nos países pobres e os gadgets eletrônicos continuarão a ser produzidos nos países ricos, ou por empresas destes países.

A figura 6 mostra a evolução do PIB mundial, nos últimos anos, demonstrando que, nunca antes na História recente da Humanidade o mundo experimentou um ciclo de crescimento alto e sustentando, por um período tão longo. Desde 2003 iniciou-se um ciclo de crescimento, com crescimento médio mundial superior a 5% ao ano. As economias menores e os países em desenvolvimento mostram maior dinamismo e pujança, com crescimento mais elevado que as economias maduras e estabilizadas. A China e a Índia tem sido as locomotivas deste crescimento mundial.

A figura 7 mostra como os programas de controle de inflação, aplicados em escala mundial nos anos 90, reduziram a inflação mundial, tanto nos países ricos quanto nos pobres. A combinação dos dois fatos (crescimento econômico e inflação baixa) melhorou a distribuição de renda e permitiu o acesso de um grande número de pessoas à alimentação, o que não ocorria até o final do século passado. A evolução do PIB per cápita pode ser observada na Figura 8.

Figura 6. Crescimento anual do PIB mundial

Fonte: World Bank

Figura 7. Inflação anual mundial
  
Fonte: World Bank

Figura 8. Crescimento anual e acumulado do PIB per cápita

Fonte: IMF

Nas Figuras 9 a 11 exponho minha visão, destarte simplificada, da relação entre evolução da renda per cápita e consumo de alimentos. Para melhor entendimento, o eixo das ordenadas é o mesmo para os três gráficos, logo existe uma relação de magnitude entre os mesmos.

Figura 9. Comportamento do consumo de alimentos ou energia em função do crescimento populacional.


Na Figura 9 observa-se que o aumento do consumo de alimentos ou de energia, devido exclusivamente ao crescimento populacional, é uma reta, ou seja, cada filho que nasce em determinada família, em condições ceteris paribus (a renda dos filhos é a mesma dos pais), o consumo de alimentos ou de energia tende a ser o mesmo de geração para geração.

Figura 10. Relação entre renda per cápita e consumo de alimentos


Figura 11. Relação entre renda per cápita e consumo de energia.

 

Na Figura 10 observa-se que o primeiro aumento de renda per cápita é dirigido quase que exclusivamente para a alimentação. Entre as populações muito pobres, no início há um aumento do consumo quantitativo de alimentos (mais calorias). Atingida a saciedade calórica, ocorre a busca por alimentos mais nobres e de melhor qualidade, utilizando apenas parte da renda. Finalmente, na terceira parte da curva, ocorre a saciedade de ambos os fatores (quantidade e qualidade) e a renda passa a ser dirigida para outras necessidades. É importante observar que, na terceira parte da curva, o aumento da demanda de alimentos se deve, exclusivamente, ao aumento populacional. Nesta fase, o consumo de alimentos é inelástico em relação ao aumento da renda per cápita, que é a condição dos países ricos.

Na Figura 11 verifica-se um comportamento quase inverso, pois os primeiros incrementos da renda per cápita quase não significam aumento do consumo de energia, posto que a renda é dirigida essencialmente para a alimentação. Na fase central da curva há uma divisão relativamente similar entre alimentos e energia. Já, na fase final da curva (renda per cápita muito elevada), ocorre um aumento logarítmico do consumo de energia. É a fase onde o consumidor adquire o segundo, depois o terceiro carro; quando passa a viajar de avião cada vez com mais freqüência; a residência passa a ser maior, com maior necessidade de iluminação e de eletrodomésticos. No início da curva, o efeito população é mais intenso que o efeito renda, para explicar o aumento do consumo de energia. A partir de renda per cápita média, o efeito população é muito inferior ao efeito renda, para explicar o aumento de consumo.

Portanto, embora não seja possível colocar números no sentimento qualitativo, eu diria que cerca de 50% do incremento de preços de commodities agrícolas nos últimos dois anos se deve ao aumento de consumo de alimentos em países pobres, explicado parcialmente pelo aumento da população (cerca de 1,2% ao ano), porém especialmente pelo aumento de renda per cápita (incremento anual de 4% ao ano).

Subsídios agrícolas

Aqui não é preciso gastar muito fosfato nem muita saliva. Quem acompanha de perto esta discussão, em especial a rodada de Doha, sabe que os países de Primeiro Mundo (leia-se União Européia, Estados Unidos e Japão) não abre mão de seus subsídios agrícolas, que ultrapassam o valor de 1 bilhão de dólares por dia, quase US$400 bilhões por ano. Para efeito de comparação, o valor total da produção brasileira de grãos mal ultrapassa a US$60 bilhões.

Como os subsídios agrícolas afetam os preços? De muitas formas e de maneira muito complexa. Estereotipadamente, os produtores americanos recebem diversos mimos das gordas tetas do Tesouro americano, o que lhes permite fugir da exposição aos riscos do mercado. Assim, podem produzir de forma ineficiente, com altas aplicações de insumos (o que aumenta o custo de produção). Na Europa não é diferente. Por exemplo, um produtor de leite, que tenha 20 vacas, recebe, anualmente, o equivalente a US50.000,00 apenas pelo fato de ser proprietário das vacas! Este valor já seria uma boa remuneração, porém, alicerçado nos demais subsídios, consegue manter elevada produtividade de leite por vaca, conseqüentemente maior volume de venda de produtos lácteos. No setor de grãos, as distorções causadas por subsídios são similares.

Com o incentivo muito forte dos subsídios, os agricultores do Primeiro Mundo produzem além do necessário para abastecer seu mercado doméstico. Aí entram os subsídios para exportação, que são ainda mais perniciosos, pois eliminam do mercado os países mais pobres, com maiores vantagens comparativas naturais, os quais não podem subsidiar sua produção como os países ricos, e acabam alijados do mercado. Eliminado o fator que poderia tornar mais naturais os preços de mercado de produtos agrícolas, os países ricos impõem seu preço ao mundo. Ocorre que a renda per cápita superior a US$25.000,00 anuais dos países ricos permite aos seus consumidores pagar altos preços por alimentos, o que não é o caso dos países desenvolvidos.

Estudo recente da OCB demonstrou que 27% da receita do agricultor vêm dos cofres do governo nos 30 países-membros da OCDE. Os preços de produtos agropecuários nos países ricos são, em média, 21% mais altos do que os preços mundiais. O exemplo mais gritante é o arroz: seu preço doméstico é 230% maior nos países da OCDE que a cotação mundial. O açúcar é 97% mais caro nos países ricos, para proteger produtores locais. O leite, 39%. Ovos e trigo, 7%; soja 4%. A entidade é crítica em relação ao Japão e Coréia do Sul - entre os mais protegidos no mundo desenvolvido. Os campeões do ranking de subsídios agrícolas, no entanto, continuam sendo a Islândia, Noruega, Coréia e Suíça, com mais de 60% da renda dos produtores sendo originada nos subsídios agrícolas. Ou seja, para proteger seu mercado doméstico a ferro e fogo, os países ricos pouco se importam com a fome no mundo – e isto não é classificado como um problema moral.

Portanto, quando o presidente do FMI, o europeu Dominique Strauss-Kahn comete o desatino de dizer que “...produzir biocombustíveis é um problema moral”, pode-se entender sua servidão aos interesses de quem o colocou e o mantém no cargo – seguramente não os países pobres. Porém, se livre fosse destes grilhões, poderia dizer que os subsídios agrícolas dos países do Primeiro Mundo são um problema moral, ao perpetuar a pobreza e a fome no mundo, mesmo quando os países pobres vivem um momento de crescimento de suas economias. Ou seja, o Sr. Strauss-Kahn poderia impor aos países ricos – que ainda subsidiam sua agricultura ineficiente – a mesma política que impôs a países do Sudeste asiático, como a Tailândia, quando de sua crise financeira, na década passada. Lembremo-nos que o FMI exigiu o fim dos subsídios agrícolas, jogando na miséria e na fome uma multidão de tailandeses, que dependiam do arroz subsidiado. Naquele caso não havia um problema moral, apenas um problema de dois pesos e duas medidas, ou de amnésia seletiva.

De minha parte tenho a convicção de que a agricultura da Europa não resistiria a três anos de competição limpa, sem subsídios, com países emergentes, como Brasil, Paraguai, Argentina e outros. Os americanos até poderiam resistir, porém fazendo uma brutal reforma agrária às avessas, com forte concentração de terras, para diminuir os custos fixos e ganhar escala e competitividade. Sem subsídios, seguramente teríamos formação de preços mais transparente, que auxiliaram na inserção social de mais famélicos do mundo.

Desvalorização do dólar

Este tema é árido, porém vou tentar explaná-lo de forma didática. Há cinco anos, de forma consistente, o dólar vem perdendo valor na paridade com todas as moedas do mundo. Este fenômeno causou uma série de problemas, alguns que veremos nos tópicos seguintes. Porém, sua relação direta com os preços é a seguinte: sendo o dólar a referencia internacional para os preços agrícolas, estes apresentam maior cotação nominal nesta moeda. O fato ocorre porque as Bolsas de Chicago (CBOT) e Nova Iorque (NYSE) concentram o maior volume de negócios do mercado internacional de produtos agrícolas. Porém, em outras moedas, a cotação pode ser menor que outras, verificadas em anos anteriores, com paridade cambial mais favorável ao dólar.

A maior cotação nominal de um produtos agrícola não significa que o agricultor ou o restante da cadeia agrícola tenham rentabilidade maior que apresentavam há cinco anos, equalizando-se as cotações agrícolas. Grosso modo, isto poderia ser entendido pela paridade do poder de compra de outros produtos, com a venda de uma tonelada de soja ou de milho, pelo mesmo valor em dólares em 2003 ou 2008. Seguramente, em 2003, a mesma cotação em dólares era mais remuneradora.

Neste caso conta mais a percepção social de subida de preços que uma efetiva escalada das cotações – embora, em valores reais medidas por paridade de preços, as commodities agrícolas estejam mais caras hoje que há cinco anos. Sei que a amostra é enviesada - porque o real foi a moeda que mais se valorizou frente ao dólar nos últimos 5 anos – mas lembremo-nos que no dia da posse do Presidente Lula (1/1/2003) um dólar comprava quase quatro reais. Hoje compra R$1,67. Porém, neste período, a inflação brasileira foi de 25% e a americana de 7%. Logo, por poder de compra, um dólar equivale hoje a R$1,35, em termos de paridade de compra comparada aos R$4,00 do início de 2003.

Portanto, usando apenas o exemplo brasileiro, tomemos a cotação da soja, para um cálculo extremamente simplificado. O produtor que vendeu soja em janeiro de 2003, na cotação Chicago de US$264,00/t obteve R$1.056,00/t. O mesmo produtor que vendeu em abril de 2008 a US$551,00, obteve o equivalente a R$743,00, mantendo-se o poder de paridade de compra do real de janeiro de 2003. Ou seja, a cotação em dólar mais que dobrou porém, na internalização cambial do preço e na correção da paridade de compra, o agricultor estaria perdendo cerca de 30%. Este cálculo não pode ser extrapolado para o mundo porque, repito, o Brasil foi o país do mundo com a maior apreciação de sua moeda nos últimos 5 anos. Outros exportadores agrícolas também perderam com a desvalorização cambial, porém muito menos que os agricultores brasileiros.

Na Figura 12 observa-se o comportamento do Real (Brasil), Peso (Argentina), Yuan (China), Rupia (India), Euro (União Européia) e Libra (Reino Unido), como amostras de países desenvolvidos e em desenvolvimento, de alto e baixo crescimento.

Observa-se, claramente, que o real foi a moeda que mais se valorizou frente ao dólar, dentro deste grupo. Entretanto, mesmo considerando outras cestas de moedas, o real continuará aparecendo como a moeda mais valorizada. Isto explica, parcialmente, o baixo crescimento do Brasil (15%) frente à China (46%), à Índia (34%) e à Argentina (35%), entre 2003 e 2008.

A segunda maior valorização no período foi do Euro, o que explica a perda de dinamismo e de competitividade da Europa (9%) e a menor desvalorização a do peso argentino, o que também ajuda a explicar porque um país que aplicou o maior calote da História na sua dívida externa conseguiu crescer 35% no período. No caso da Europa, incluso o Reino Unido (crescimento de 11%), baixas taxas de incremento do PIB são naturais, em virtude da alta renda per cápita e da maturidade de suas economias.

Figura 12. Percentual de valorização de algumas moedas, em relação ao dólar, considerando a paridade de 1:1 em 1/1/2003

Fonte: Bank of Canada

Custo dos fretes

Os fretes estão subindo por quatro fatores principais: a) o custo terrorismo, após o ataque terrorista de 11 de setembro, nos EUA; o aumento do comércio globalizado, em especial dos produtos agrícolas; a desvalorização do dólar; e o aumento da cotação do petróleo. Os fretes marítimos afetam os preços agrícolas de duas formas. Em primeiro lugar, aumentando o preço dos insumos importados por um país, como fertilizantes, sementes e agrotóxicos, ou máquinas e implementos, redundando em aumento do custo de produção. Em segundo lugar, pelo aumento do custo de transporte entre o país exportador e o importador.

O Brasil é afetado nas duas pontas, por sua dependência de fretes tanto para a importação de insumos de longas distâncias, quanto para colocação de seus produtos nos mercados importadores, especialmente os asiáticos, de distância mais longa.

Na Figura 13 observa-se a evolução do custo do frete marítimo por dia de uso de grandes graneleiros, enquanto a Figura 14 mostra o custo por tonelada transportada. Em ambos os casos verifica-se uma ascensão abrupta dos preços dos fretes a partir de 2003, aumentando em 900% o custo diário e em 620% o custo por tonelada transportada, no período 2003/2008. Este fator, seguramente, pesa mais no aumento dos preços das commodities agrícolas que a produção de biocombustíveis.

Figura 13 – Custo do frete marítimo em US$1000,00 por dia de uso de um graneleiro de grande porte.

Fonte: USDA


Figura 14. Custo do frete marítimo em dólares por tonelada, no trecho EUA/Japão

Fonte: USDA

Especulação financeira

Obviamente, não é possível colocar especulação financeira em gráficos ou tabelas. A sua análise é claramente factual. In casu, o fato central é o excesso de liquidez existente no mundo, causado pelo elevado crescimento econômico dos últimos 5 anos e pelo ritmo intenso do mercado internacional. Uma vez auferido um lucro ou um rendimento, os detentores de capital buscam aplicações remuneradoras para o mesmo. Essa aplicação pode ser em terras, em imóveis, em títulos públicos ou privados, em ações, em derivativos, em commodities agrícolas, commodities não agrícolas, para falar apenas nos negócios legais.

Estamos atravessando, no momento, um período de intensa turbulência no mercado de capitais, causado justamente pelo excesso de liquidez, que é uma das causas dos ciclos típicos do capitalismo. De forma simples, o que ocorreu foi que, devido à elevada disponibilidade de recursos e à necessidade de encontrar tomadores para aplicações efetuadas em títulos bancários, os bancos americanos reduziram suas exigências nas análises de risco dos tomadores de crédito, ingressando num terreno pantanoso conhecido nos EUA como “sub-prime”. Uma tradução liberal deste termo seria um mercado de alto risco de calote.

Em determinado momento, os bancos – na falta de tomadores com bom cadastro – passaram a conceder empréstimos hipotecários neste mercado de sub-prime (ou de alto risco), gerando derivativos que foram negociados além fronteira dos EUA, o que explica a contaminação parcial do setor financeiro mundial, a partir de um problema de crédito doméstico dos EUA.

Ocorre que a desvalorização dos imóveis nos EUA, fruto de um movimento de racionalização do mercado, expôs os tomadores de crédito a uma situação em que seus imóveis valiam muito menos que as hipotecas tomadas. Conclusão: ao tomador do empréstimo era melhor negócio devolver o imóvel ao banco, através da inadimplência no pagamento, mesmo com perdas do que houvera pago. Em conseqüência, há um ano o sistema financeiro está buscando amortizar a enorme dívida gerada pelo sub-prime, parcialmente por mecanismos de mercado (como concordatas e falências), por injeções de liquidez do Fed americano e por redução acentuada da taxa de juros que, no momento, é negativa nos EUA, o que aumenta a liquidez do mercado e incentiva a população a consumir.

Explicada a crise, fica fácil entender o nexo entre o elevado risco do sub-prime e de outras linhas de crédito e a busca por aplicações, mais seguras, rentáveis e de alta liquidez. A liquidez do mercado encontrou um refúgio momentâneo nas commodities, tanto as agrícolas (milho, trigo, arroz, soja, óleos, farelos, etc.), quanto as não agrícolas (petróleo, minério, aço, carvão, etc.). Dá para entender agora porque o petróleo está disparando de preço (Figura 15), sem um correspondente incremento de demanda que justifique esta escalada? E porque a maior cotação do petróleo em todos os tempos não está provocando uma recessão brutal em um mundo visceralmente viciado em petróleo? Embora, efetivamente, parcela da cotação atual do petróleo possa ser explicada por um incremento da demanda, e pela precificação a futuro do esgotamento das reservas, parcela ponderável do aumento do petróleo é especulação em mercado spot, pelo deslocamento da liquidez do mercado para investimentos em commodities.

Figura 15. Cotação do petróleo tipo Brent em Nova Iorque.

Fonte: British Petroleum

Como é da lógica do capitalismo, alguém ganha e alguém perde e logo esta especulação em commodities entrará em ciclo de baixa, com os investimentos buscando outro porto seguro. Com isto, reduz-se o preço do petróleo, do milho, da soja, e não será porque diminuiu a produção de biocombustíveis. Será porque o capital especulativo foi parar em outro ancoradouro. Isto também explica com maior consistência o aumento de preços de produtos agrícolas que o ataque emocional aos biocombustíveis.

Estudos do Instituto Ícone demonstram a influência do petróleo sobre as commodities agrícolas energéticas, como soja, cana e milho, porém o reverso não é verdadeiro. Entretanto, é importante notar que outras commodities não energéticas, como café, frutas e hortaliças também se encontram em alta, sem que possa ser estabelecido um nexo causal entre biocombustíveis e estas commodities.

Aumento dos custos de produção

O custo de produção de soja entre 2000 e 2008 aumentou 133%, passando de R$706,00 para R$1650,00, conforme apresentado na Figura 16. O que tem a ver custo de produção com cotação de mercado de um produto agrícola? Embora a cotação não reflita, diretamente, o custo de produção, o mercado sabe que se o custo de produção se aproximar, perigosamente, da cotação de mercado, o produtor será desestimulado a produzir pela relação desfavorável entre risco e rentabilidade e pelo custo de oportunidade de outras aplicações.

Por outro lado sempre existe uma disputa no seio de qualquer cadeia produtiva. Quando a cotação de mercado de um produto sobe, inicia-se uma luta entre os elos da cadeia pela apropriação do diferencial, cada qual buscando aumentar suas margens. No caso da soja, a disputa ocorre entre as cadeias de insumos, os produtores, os esmagadores, os exportadores e os importadores.

Figura 16. Evolução do custo de produção de um hectare de soja.

Fonte: CONAB

Nos últimos três anos observamos um aumento no custo de produção, em parte devido a esta disputa pela apropriação dos diferenciais, em parte pelo aumento real da demanda de insumos e, finalmente, pelo aumento dos custos de produção de insumos, em especial com o aumento do petróleo e dos fretes.

Desde que os preços do petróleo dispararam a partir de 2003, quando estava cotado a US$26,00, chegando agora a US$116,00, delineou-se um salto de patamar de preços das commodities agrícolas. Nos últimos anos os preços do petróleo e da maioria das commodities agrícolas passaram flutuar com os mesmos índices – porém puxados pelo petróleo. Percebe-se, então, uma interação tríplice entre petróleo, custo de produção e cotações agrícolas.

Os preços dos agrotóxicos e dos fertilizantes dispararam nos últimos três anos. No caso de fertilizantes potássicos, a subida de preços foi superior a 300% em 3 anos, índice semelhante ao aumento de custo dos fertilizantes nitrogenados. O Brasil é dependente da importação destes produtos. No caso do potássio Canadá, Rússia e Alemanha, são os principais produtores, e são rotineiramente acusados de combinação de preços. A única jazida brasileira localiza-se na Amazônia, e sua exploração padece de restrições ambientais. No caso de fósforo, o Brasil produz 49% do total consumido, mas a capacidade de produção está praticamente no limite. No caso do nitrogênio, o potencial é maior, porque depende de petróleo, o que não é propriamente um problema para o Brasil.

A dependência, que aumenta os custos de produção brasileira (e o Brasil é um dos mais importantes países agrícolas no mercado internacional de alimentos), pode ser demonstrada em números. Em 2007, importamos US$ 4,528 bilhões em fertilizantes, contra US$ 2,355 bilhões importados em 2006. No primeiro trimestre de 2008, o valor despendido chega a US$1,258 bilhão, segundo a Secretaria do Comércio Exterior (Secex). Esta escalada de valores é devida principalmente ao aumento de preços e em menor intensidade ao aumento de volume. Uma vez mais fica demonstrado que o aumento do custo de produção é de tamanha intensidade que explica com maior consistência a manutenção das cotações agrícolas em patamares elevados que a embrionária agroenergia.

Problemas climáticos

É raro o ano em que problemas climáticos não reduzem as expectativas de produção agrícola. Em 2007, foram observados problemas intensos de seca na China, no Leste Europeu (especialmente na Ucrânia), na União Européia, no Canadá e na Austrália. Este é o principal motivo da explosão do preço do trigo no mercado internacional, em 2007 (Figura 17). O mercado globalizado atua em interfaces transversais, onde cada produto influencia outros produtos, em função do grau de substituibilidade e da competição por área de cultivo. Sempre que ocorre o aumento do preço de um cereal específico – no caso o trigo – ele contamina o preço de outros cereais, como milho, cevada, centeio ou arroz. Igualmente, quando sobe o preço do milho, ocorre uma contaminação do preço do trigo, seja porque com a menor oferta de milho aumenta o consumo de trigo, ou porque o preço mais alto do milho envia uma sinalização ao mercado para expansão de sua área, à custa de outros produtos, agrícolas, entre eles o trigo.


Figura 17. Evolução do preço do trigo na Bolsa de Chicago

Fonte: http://futures.tradingcharts.com/

Na Europa, as chuvas ocorreram na hora errada e no local errado, reduzindo a produtividade do trigo e da cevada. Na Ucrânia a seca foi considerada como a mais severa no período de 100 anos, reduzindo fortemente a safra de cereais, em especial do trigo, reduzindo a produtividade em mais de 60%. Em conseqüência, o governo da Ucrânia limitou fortemente as exportações, forçando os preços no mercado internacional. Na Austrália, a produção foi reduzida em 27% em comparação com a média dos últimos 5 anos. No Canadá houve uma redução superior a 15% na produção.

E os biocombustíveis?

Partilho da tese que o conflito entre produção de biocombustíveis e de outros produtos agrícolas está, no momento, circunscrito ao milho nos EUA, trigo e canola na União Européia. No Brasil não percebemos qualquer sintoma deste conflito e, seguramente, não vamos perceber nos próximos anos.

O programa de biodiesel é fortemente concentrado na utilização do óleo de soja, o que não é recomendável, eficiente ou sustentável no longo prazo. Entretanto, o Brasil solucionará este problema por três vias distintas: a) utilizando outras oleaginosas, de alta densidade energética e sem uso alimentar; b) utilizando processos de obtenção de bio-óleo por pirólise de biomassa; c) pela progressiva substituição do petrodiesel por etanol, em motores de ciclo diesel.

O programa de substituição de gasolina por etanol é um paradigma mundial, perfeitamente compatível com os conceitos de sustentabilidade social, ambiental e econômica. Seguramente, dentro de 15 anos o consumo de gasolina será marginal no Brasil, restrito a 5% do consumo de combustíveis para veículos leves.

Devido às suas características edafo-climáticas e geográficas, o Brasil apresenta condições não apenas de suprir integralmente seu mercado doméstico, como de abastecer grande parte do planeta, nas mesmas condições de sustentabilidade. Ao projetar o futuro, devemos considerar que, no momento, a produtividade de cana-de-açúcar representa cerca de 30% de seu potencial teórico, podendo ser duplicada em um horizonte de 20 anos, devido à inovações de tecnologia agronômica. Igualmente, a produtividade industrial deve crescer no mínimo 50%, por ganhos diversos devidos aos avanços tecnológicos, em especial o etanol celulósico.

Neste cenário, o Brasil pode passar dos atuais 3,5 milhões de hectares e 23 bilhões de litros de etanol previstos para 2008 para algo como 10 milhões de hectares e mais de 100 bilhões de litros de etanol, em pouco mais de 10 anos. Deste total, o consumo doméstico representaria 50%, sendo o restante liberado para exportação. De onde sairiam os 6,5 milhões de hectares adicionais? Especialmente de pastagens abandonadas, que perderam sua condição de rentabilidade devido à degradação e que não serão incorporadas novamente à produção animal pelo diferencial de rentabilidade entre produzir carne em forma extensiva (0,9 cabeças por hectare) e produzir cana-de-açúcar. Estima-se existir mais de 100 milhões de hectares de pastagens degradadas no Brasil. Logo, usar 6,5% deste patrimônio não convenientemente explorado em prol da Humanidade é, acima de tudo, uma obrigação do país.

É justamente o receio de que o Brasil transforme as suas vantagens comparativas em vantagens competitivas que apavora as lideranças políticas e setoriais do Primeiro Mundo. Eles temem que as sobretaxas, as cotas e outras barreiras impostas ao etanol brasileiro não sejam suficientes para evitar que um produto muito mais competitivo se imponha no mercado internacional. Como o discurso não pode ser direto, dizendo que estão fechando seu mercado doméstico e subsidiando as exportações de produtos ineficientes, prevalece o discurso do sofisma entre produção de biocombustíveis e alimentos.

Neste particular, é interessante analisar a questão por um aspecto que não chamou a atenção de mais ninguém até o momento – ao menos nada foi publicado a respeito e que tenha chegado ao meu conhecimento. Vamos assumir algumas premissas para esta análise:

a) O crescimento da população mundial seguirá a previsão da FAO, iniciando em 1,2% ao ano em 2008, com redução anual progressiva desta taxa;
b) A população de famélicos do mundo é de 800 milhões de pessoas, conforme estimativa da FAO;
c) As lideranças mundiais executam um ambicioso programa destinado a promover a inclusão alimentar de 5% dos famélicos ao ano, sem prejuízo nutricional para o restante da população;
d) Não haverá incorporação de áreas de terras adicionais para a produção de alimentos;
e) A produtividade agrícola no mundo crescerá, anualmente, entre os 1,5% atuais até 1,75% no vigésimo ano do programa.

Pela análise da Figura 18 observa-se que, no período de 20 anos, a oferta de alimentos se incrementará em 38,3%, superior à demanda que crescerá apenas 30%. Haveria déficit variável no período entre 2009 e 2017, atingindo um déficit máximo de 1,12% em 2012.

Para suprir este déficit o mundo teria duas alternativas: a) reduzir em 1,12% o desperdício de alimentos no mundo, estimado em quase 20%, no percurso entre a lavoura ao consumidor; b) aumentar em 1% a área plantada entre 2009 e 2017 (apesar da premissa de que não haveria expansão de área, fixada apenas para verificar-se qual seria a contribuição exclusiva do incremento de produtividade).

A partir de 2018, passaríamos a contar com superávit de produção de alimentos que, nos primeiros 8 anos serviriam para compor poderosos estoques destinados a enfrentar uma eventual seqüencia de anos ruins para a agricultura. Após este período, a Humanidade poderia se dar ao luxo de reduzir a área plantada de alimentos, sem conseqüências adversas para o seu abastecimento quantitativo ou qualitativo.

Esta análise pode parecer futurista, porém está calcada em números reais e projeções perfeitamente razoáveis. Por exemplo, nos últimos 40 anos a produtividade agrícola no mundo cresceu, em média, 1,5% ao ano (Figura 19). Verifica-se que, entre 1960 e 2008, a população mundial cresceu de 3 para 6,6 bilhões (120%), entretanto a área cultivada passou de 0,95 para 1,08 bilhão de hectares (13%). A razão da diferença entre as taxas de crescimento populacional e de área cultivada é o crescimento da produtividade da agricultura, que diminuiu de 1,5 para 0,75 (50%) o número de hectares necessários para alimentar uma pessoa.

Figura 18. Oferta e demanda mundial de alimentos, objetivando erradicar a fome no planeta em 20 anos.


Figura 19. População mundial, área cultivada e número de hectares necessários para alimentar uma pessoa

Fonte: FAO

Em decorrência, é perfeitamente razoável imaginar que as taxas de ganho de produtividade possam ser projetadas para o futuro mediato, sendo incrementadas ainda mais quando as inovações da biotecnologia e da nanotecnologia puderem ser incorporadas aos sistemas agrícolas.

Portanto, o que eu recomendaria aos líderes que insistem no discurso contrário à Agroenergia é promover fortes investimentos em geração e transferência de tecnologia agrícola, em especial nos países em desenvolvimento, abrindo seus mercados para o escoamento da produção agrícola.

Obviamente que a análise tem outra premissa: que vamos deixar o mercado flutuar de acordo com o embate de forças de suas leis naturais e os países ricos vão deixar de insistir em produzir energia a partir de sistemas agrícolas ineficientes, como o etanol de milho provocando distorções como as observadas na Figura 20.

Figura 20. Uso do milho produzido nos EUA.

Fonte: USDA.

Observa-se que o percentual de milho destinado à alimentação humana ou animal está em processo de declínio desde 1997, quando atingiu o pico de 79%. Coincidentemente, é neste ano que inicia o impulso de produção de etanol de milho, que apresenta três saltos de patamar em 2000, 2002 e 2007.

O segundo problema decorrente do desvio da produção de milho americana para o etanol é a progressiva retirada dos EUA do mercado internacional de milho, onde este país vinha sendo o principal exportador. Após atingir um pico de exportação de 25% de sua produção de milho, em 1995, os EUA vêm diminuindo consistentemente os seus envios ao exterior, que são previstos estabilizarem-se em 11% nos próximos anos.

Na realidade, é este movimento de retirada do mercado internacional que provocou a elevação dos preços do milho no mercado internacional, contaminando também os preços da soja, uma vez que outros países deverão produzir o milho que o mercado internacional demanda e os EUA não mais fornecerão. Estes países também estão sendo pressionados a produzir mais soja, ocorrendo uma disputa por área, no curto prazo.

Na Figura 21 observa-se a subida de preços de soja, milho e trigo no, ocorrida em 2007/08. Explicamos a ascensão destes preços anteriormente (milho= etanol americano; trigo= frustração de safra; soja = aumento do consumo na Índia e China). No gráfico projeta-se a redução destes preços a partir de 2011, como parte da reação dos produtores, expandindo a produção, através do aumento da produtividade ou da área cultivada.

Figura 21. Preços internacionais de soja, trigo e milho, cotados na CBOT e previsão de comportamento futuro

Fonte:ERS/USDA

Entretanto, é importante ressaltar que esta disputa por expansão de área ocorre por aumento da demanda mundial de milho e soja para alimentação, pouco ou nada tendo a ver com a produção de etanol de milho ou biodiesel de soja.

Finalmente, analisemos uma última questão. Se podemos abastecer o mundo de alimentos apenas incrementando a produtividade agrícola, podemos utilizar a área agrícola ainda por incorporar para outras finalidades. A FAO estima que ainda existem 1,5 bilhões de hectares aptos para agricultura. Vamos considerar que apenas 30% deste estoque possa ser efetivamente mobilizado nos próximos 50 anos, por motivos ambientais ou de outra ordem. Seriam 450 milhões de hectares ainda por cultivar!

Imaginemos, por hipótese, que 10% deste total (45 milhões de hectares) fossem destinados ‘a produção de bicombustíveis, sendo 22,5 milhões para cana-de-açúcar e área equivalente para palmáceas tropicais, como dendê. No caso da cana de açúcar obteríamos cerca de 250 bilhões de litros de etanol, além de estimados 800GWh de eletricidade gerados a partir da combustão do bagaço. Com o plantio de dendê ou outras palmáceas tropicais será possível obter mais de 130 bilhões de litros de biodiesel. Em conjunto, estes dois bicombustíveis poderiam substituir 10% dos combustíveis fósseis atualmente utilizados, acima das metas atuais de políticas públicas.

Portanto, ao invés de recorrer a sofismas para encobrir interesses não confessados, melhor fariam as lideranças mundiais se atentassem para o enorme perigo representando pelas Mudanças Climáticas Globais e se utilizassem todo o potencial das energias renováveis, em especial da agroenergia, para mitigar este problema. Além de ajudar a resolver os dilemas energéticos e ambientais, o avanço da agroenergia permitirá acelerar a inclusão social de dezenas de milhões de famílias de agricultores – este sim um problema moral que poderia ser equacionado pelo FMI.

Décio Luiz Gazzoni é Engenheiro Agrônomo, membro do Painel Científico Internacional de Energia Renovável.