Qual o sentido das políticas para o futuro dos biocombustíveis?
As crises e problemas do etanol e do biodiesel recolocam com frequência a questão das políticas de apoio aos biocombustíveis. Têm sentido essas políticas? Qual a direção e foco que devem ter?
Na perspectiva da abordagem que temos desenvolvido nesta série de artigos, essas políticas devem antes de tudo ter como orientação a indústria do futuro, o que significa ter como ponto de partida o conjunto da bioeconomia e não se ater apenas aos biocombustíveis. Isso quer dizer que o centro do problema é a exploração da biomassa para gerar de forma econômica e sustentável produtos de valor para a economia do século XXI e para buscar a inserção competitiva da indústria brasileira nessa indústria em construção.
A agenda brasileira, que se originou e teve resultados notáveis com foco em biocombustíveis, tem sido de certa forma tímida na transição para uma agenda mais ambiciosa e ampla voltada para a bioeconomia como um todo. Iniciativas como a do PAISS – Plano BNDES-FINEP de Apoio à Inovação dos Setores Sucroenergético e Sucroquímico –, já discutido em postagens anteriores, e a iniciativa em curso do Plano Brasil Maior – identificação de tecnologias emergentes em Química Verde a serem apoiadas com a perspectiva de conferir à indústria química brasileira competitividade e capacidade de inovação – são exemplos desse processo de transição.
Dois eventos que tivemos a ocasião de acompanhar nos últimos meses permitem retomar a questão e ilustrar dois pontos importantes em torno da pergunta central: Qual o sentido das políticas públicas e industriais para a bioeconomia? Estamos nos referindo à recente Conferência Internacional Biodieselbr 2012, realizada em São Paulo nos dias 1 e 2 de outubro, e à Advanced Biofuels Leadership Conference, realizada em Washington nos dias 2 a 5 de abril passado. As conferências na área têm se multiplicado. Provavelmente, o contraste que encontramos ao explorar esses dois eventos se reproduz em muitos outros.
A Conferência Internacional Biodieselbr 2012 foi, e tem sido nos anos anteriores, um evento de grande qualidade com variedade de intervenções e pontos de vistas. Na edição recente, o mote era: “O futuro chegou: as mudanças no setor e a adaptação à nova dinâmica”. As apresentações e debates permitiram uma excelente visão da situação da indústria hoje, dos seus problemas e das perspectivas do governo em relação a esses problemas. Sem dúvida, uma aula de economia industrial aplicada ao biodiesel. Mas a ideia de futuro que era apresentada na chamada do evento apareceu de forma muito tímida na minha visão. A palavra “inovação” apareceu em duas apresentações. “Novos produtos” foram mencionados em uma apresentação apenas.
A discussão dos problemas foi clara e aprofundada. Mas esses problemas, bem reais certamente, giravam em torno do teor da mistura – B5 ou B10 ou B20 –, da capacidade ociosa, do novo marco regulatório, dos obstáculos à exportação. Reconhecemos que são problemas concretos e críticos para a sobrevivência da indústria, mas até que ponto o atendimento a essas questões ajuda a construir uma indústria competitiva para um futuro em grande transformação que a bioeconomia está vivendo? Se a indústria tem grande capacidade ociosa, atingir teores maiores de mistura faz sentido do ponto de vista dos produtores. Da mesma forma, se existe um potencial exportador é justo que sejam removidos os obstáculos. Que o marco regulatório seja atualizado e aprimorado. Que os leilões sejam aprimorados. Que os procedimentos regulatórios sejam melhorados. Tudo isso é central. Mas, em longo prazo, vão prosperar as empresas que tiverem uma visão inovadora do negócio de extração de valor das biomassas – e não de uma perspectiva de produção de biocombustíveis para atender consumos definidos pelo uso mandatório definido pelo governo.
Se essa perspectiva foi efetiva para criar a indústria em sua fase inicial, ela poderá vir a ter pouco valor na definição das empresas competitivas na fase madura da indústria. Questões como aproveitamento integral e integrado dos recursos de biomassa, aproveitamento e valorização dos subprodutos, diversificação de produtos e de mercados, estarão inevitavelmente na agenda do futuro. Nesse ponto, podemos acompanhar as reclamações da indústria em relação à evolução das políticas públicas, mas acrescentaríamos um novo ponto que não tem aparecido: uma agenda de incentivos e cobranças voltadas para a inovação e construção de uma base industrial que dê ao país uma posição competitiva na bioeconomia. Sem isso, a indústria do biodiesel, tal como a vemos hoje, pode ter um lugar pouco expressivo no futuro.
O outro evento que gostaríamos de contrastar com a agenda da BiodieselBR 2012 foi a Advanced Biofuels Leadership Conference, ABLC, promovida pelo Biofuels Digest. Nesse evento, também houve críticas e reclamações em relação às políticas públicas americanas. A diferença entretanto é marcante num ponto: as empresas tentavam mostrar de todas as formas seus esforços inovadores. Os mecanismos de apoio, tipo RFS (Renewable Fuel Standard), apontam na direção de metas voltadas para novos biocombustíveis avançados. Aliás, a indústria tem tido dificuldades no atendimento das metas estabelecidas. Mas as metas apontam na direção da inovação e de novas alternativas tecnológicas. Além disso, os investidores de risco, presentes na maioria das empresas, reforçam a busca de resultados que permitam o retorno de suas apostas. Nada mais atraente, para uma IPO por exemplo, do que um potencial de inovação que convença o mercado.
Mas o que trouxe o maior contraste entre os dois eventos foi a natureza da intervenção dos representantes do governo. No caso brasileiro, escutamos técnicos competentes procurando explicar e discutir os problemas de curto prazo da indústria. Nenhum reparo à qualidade desses técnicos. Ao contrário, o nível é respeitável. O problema está na perspectiva da agenda das políticas públicas.
Na ABLC tivemos uma palestra de 20 minutos com o Secretário de Agricultura, responsável pelo USDA, equivalente ao nosso Ministério da Agricultura, Tom Vilsack. Nessa palestra, Vilsack apresentou seis razões pelas quais o governo americano entende que deve apoiar os biocombustíveis e a exploração dos recursos agrícolas. Vilsack começa dizendo que, como todos esperam do Secretário da Agricultura, ele vai dizer que devemos apoiar os biocombustíveis porque isso estimula e gera renda para a agricultura e porque gera empregos. Outras justificativas – num ponto particular da situação americana de abastecimento de energia – estão ligadas ao aumento de escolha do consumidor e à redução da dependência externa, trazendo mais segurança ao abastecimento. A quinta razão, também facilmente identificável, é ligada aos benefícios climáticos com produtos que geram por exemplo menor emissão de gases de efeito estufa.
Mas a sexta razão é o grande foco da apresentação de Vilsack na qual ele se detém na maior parte do tempo: o potencial de inovação e a extraordinária oportunidade que a exploração da biomassa representa para os EUA. Os EUA foram durante os anos de crescimento da economia mundial exportadores de produtos químicos. A balança comercial era largamente superavitária. Entretanto, nas últimas décadas, a competitividade se deslocou seja para países ricos em petróleo e gás, seja para países emergentes que construíram indústrias competitivas. A única forma de recuperar a posição competitiva é, segundo Vilsack, perceber a extraordinária oportunidade que a bioeconomia oferece e colocar todo o engenho inovador americano na exploração desse potencial.
O Brasil nunca foi líder da indústria química mundial. Mas também tem hoje um grande e crescente déficit comercial que a falta de competitividade da nossa indústria tem tornado de difícil reversão. Por certo, a nossa base científica e tecnológica, apesar de progressos nos últimos anos, ainda está muito distante da americana. Mas nossas vantagens comparativas no cultivo e produção de biomassa – basta citar a cana e a soja para demonstrar que nesse terreno somos competitivos e de ponta no mundo – e a nossa experiência recente na produção e utilização de biocombustíveis, em particular de etanol, sugerem que essa “extraordinária oportunidade” de que fala Vilsack pode existir para o Brasil.
Essa é a resposta da nossa pergunta inicial: o sentido das políticas públicas e industriais é o sentido da inovação e do papel competitivo e de liderança na indústria que está se formando com base na utilização da biomassa e dos recursos da bioeconomia. Nessa perspectiva, B5 ou B10 é uma questão importante, mas muito pequena, muito curto prazo para ser central na agenda da indústria e do governo. Precisamos de um Vilsack?
José Vitor Bomtempo é professor da Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Seu artigo foi originalmente escrito para o Blogo Infopetro do Grupo de Economia da Energia do Instituto de Economia da UFRJ.