Sob pressão dos Estados Unidos e de países produtores de petróleo, a Organização Marítima Internacional (IMO, na sigla em inglês), volta a se reunir, nesta semana, para decidir se adota, em caráter terminativo, um acordo global para reduzir as emissões de navios até atingir o net-zero em 2050. O Brasil considera o arcabouço regulatório um passo decisivo a menos de um mês da COP 30, em novembro, além de uma oportunidade para os biocombustíveis produzidos em território nacional.
A agência da ONU para temas do mar aprovou, em abril, um acordo histórico que prevê multas de US$ 100 a US$ 380 por tonelada de dióxido de carbono não abatida, além de um fundo bilionário para financiar a transição energética. Caso adotadas, as regras entram em vigor em 2027.
A reunião da IMO começa na terça-feira (14) envolta em incertezas sobre o comportamento da delegação americana. Os Estados Unidos abandonaram a negociação anterior, enquanto Arábia Saudita, Rússia e Emirados Árabes Unidos votaram contra a proposta. Apesar das resistências, o texto alcançou os dois terços necessários para ser aprovado no início do ano.
Agora, os EUA ameaçam retaliar os países que adotarem as medidas de descarbonização. Autoridades e especialistas que acompanham o assunto afirmam que as discussões devem ser tensas, com debates até o último minuto, devido à postura da Casa Branca, que divulgou na sexta (10) um comunicado em que rejeita o plano e diz que avalia sanções a países a favor da proposta.
“Os EUA têm um peso muito grande e podem pressionar os países de diversas formas. Mas essa medida tem apoio de europeus, de um grupo grande de países em desenvolvimento, e está muito bem representada. Caso a IMO não a adote, cada país vai começar a taxar por si e vai ser muito ruim para o comércio internacional”, afirma o assessor da Comissão Coordenadora para os Assuntos da Organização Marítima Internacional (IMO) na Marinha do Brasil, Flavio Mathuiy.
As metas do setor marítimo, assim como as da aviação, foram negociadas fora do Acordo de Paris pela dificuldade em estabelecer os responsáveis pelas emissões de uma atividade que trafega em águas internacionais. O transporte marítimo representa 80% do comércio global e responde por 3% das emissões de gases poluentes na atmosfera.
Com longa experiência em negociações da IMO, o negociador chefe da área de navegação sustentável do Ministério do Clima e Meio Ambiente da Noruega, Sveinung Oftedal, acredita que o momento para descarbonização é forte em várias partes do mundo, apesar da resistência de alguns países. Parceiros históricos em iniciativas como o Fundo Clima, Brasil e Noruega estabeleceram recentemente corredores verdes de navegação.
“O momento para a descarbonização do transporte marítimo é forte na Ásia, na Europa, na América Latina, na África, assim como no grupo que inclui pequenas ilhas”, disse ao Valor em junho.
“Infelizmente, havia alguns membros dizendo que não queriam vir junto. O resultado foi claro e, agora, precisamos nos certificar que [o texto] será adotado”, completou.
O Brasil atuou ativamente nas discussões da IMO para que os biocombustíveis de primeira geração fossem reconhecidos pelo organismo como alternativas válidas ao bunker, óleo de origem fóssil utilizado nos navios. Fontes renováveis como o etanol e o biodiesel, no entanto, enfrentam resistência entre países europeus, que defendem soluções baseadas em combustíveis como amônia verde, hidrogênio e metanol, além da eletrificação.
O argumento, rebatido pelos brasileiros, é de que o aumento da demanda por produtos que têm como matéria-prima açúcar, milho e soja poderia afetar a produção de alimentos e aumentar o desmatamento.
“Isso tem uma carga geopolítica forte porque os europeus entendem que somente os combustíveis avançados, como metanol e amônia, podem descarbonizar. Mas são combustíveis que dependem de um processo com alta incidência de eletricidade e são muito caros”, diz Camilo Adas, diretor de transição energética da consultoria Be8, que participou dos debates.
O texto aprovado em abril representou uma vitória para o Brasil ao incluir os biocombustíveis, mas deixou uma lacuna sobre o processo de certificação. Essa é a nova frente da delegação brasileira, que se debruça junto com 16 países e 12 ONGs sobre uma proposta de certificação própria para a IMO, que não exclua os combustíveis produzidos no Brasil.
“A nossa preocupação é que não haja um direcionamento para excluir os biocombustíveis de primeira geração. Caso a IMO não estabeleça um sistema de certificação próprio, provavelmente teria que utilizar sistemas já aceitos internacionalmente, da Europa e dos EUA, que não se adequam à visão que o Brasil defende”, explica Mathuiy.
Um estudo produzido pelo Boston Consulting Group (BCG) indica que o Brasil tem até 25 milhões de hectares de terras degradadas aptas a integrar a cadeia de biocombustíveis sem competir com a produção de alimentos.
“O Brasil já é uma rota marítima importante e é o maior produtor de ‘feedstocks’ [estoques de alimentos] que podem ser usados na cadeia de produção de biocombustíveis. E a produção adicional não tem nada a ver com o desmatamento ou a competição com os alimentos”, observa Arthur Ramos, diretor-executivo e sócio do Boston Consulting Group (BCG).
O mesmo relatório, divulgado na Semana do Clima em Nova York, em setembro, aponta que o Brasil, considerado o segundo maior produtor de etanol e biodiesel do mundo, pode atender 15% da demanda de energia do setor marítimo global até 2050, além de cortar 170 milhões de toneladas de CO2 equivalente por ano.
Os especialistas apontam que o biodiesel tem vantagens para liderar a descarbonização a curto prazo, especialmente por ser compatível com os motores dos navios já construídos, o chamado “drop-in” no jargão do setor.
“Um navio é construído para durar entre 20 e 30 anos, então levaria muito tempo para trocar toda a frota atual por navios com motores adaptados aos novos combustíveis. Se eu começo a usar o biocombustível, que é drop-in, no dia seguinte eu começo a ter uma redução efetiva de emissões”, diz Matuhiy.
A indústria também ressalta que apesar de protótipos já desenvolvidos, ainda há poucas encomendas de embarcações a metanol, hidrogênio e amônia verde. O diretor-executivo da Associação Brasileira de Armadores de Cabotagem (Abac), Luís Fernando Resano, aponta que ainda há questões relacionadas à segurança a bordo.
“A amônia tem um baixo poder calorífico, então nós precisaríamos aumentar muito a capacidade de armazenagem no navio para poder fazer a mesma viagem. Além de que é extremamente tóxica e corrosiva”, diz.
Ramos, do BCG, afirma que o Brasil tem potencial para produção de hidrogênio e derivados, mas ressalta que os combustíveis só devem atingir viabilidade comercial ao fim da década de 2030 devido à necessidade de desenvolvimento da tecnologia e de plantas em escala industrial. “Por isso que, no curto prazo, a melhor estratégia é utilizar tecnologias existentes e competitivas”, completa.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) lançaram, no ano passado, uma chamada pública para projetos de produção e desenvolvimento tecnológico de combustíveis sustentáveis para aviação (SAF, na sigla em inglês) e para navegação. As instituições selecionaram iniciativas que somam R$ 133 bilhões, dos quais R$ 43 bilhões para e-metanol, amônia verde e Bio-GNL para navegação.
Paula Martini – Valor Econômico