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Disputa por petróleo leva a estado de guerra permanente


Folha de S. Paulo - 29 nov 1999 - 22:00 - Última atualização em: 09 nov 2011 - 19:22

Estudioso de causas e prevenções de guerras nos últimos 35 anos de sua vida, o cientista político americano Michael Klare, 62, acredita que a competição por recursos como o petróleo é, atualmente, a maior fonte potencial de conflitos mundiais.

Partindo de projeções em que o crescimento da demanda por petróleo vai superar a oferta global, Klare estima que o mundo vive "o crepúsculo do petróleo", um momento de transição entre a abundância e a escassez.

A disputa pelo recurso que ainda resta, considerado essencial em termos de segurança nacional, levará a um estado de guerra permanente, caracterizado pela presença de grandes potências em regiões de instabilidade política, étnica e religiosa, diz o autor do livro "Blood and Oil" (Metropolitan Books), lançado em 2004.

No livro, Klare argumenta que, por causa do declínio da extração doméstica, países como os EUA estão se tornando, de modo crescente, mais dependentes de petróleo importado. E mais e mais desse petróleo tem vindo de áreas instáveis cronicamente, como o Oriente Médio, a região do mar Cáspio, a África e determinadas regiões da América Latina. Para Klare, o resultado disso tudo é que o mundo vai pagar um custo mais alto em petróleo e em sangue.

Folha - Como o sr. analisa o momento atual do petróleo?

Michael Klare - Descrevo este novo momento como o crepúsculo do petróleo, ou seja, uma transição entre uma era ensolarada, de óleo abundante, e uma era da escuridão, de escassez absoluta. Nesta era do crepúsculo, o óleo não vai desaparecer, mas se mostrará insuficiente para atender à demanda global cada vez maior. Assim, teremos, periodicamente, momentos de escassez, preços altos e extrema vulnerabilidade a choques de petróleo. Um exemplo é o dano agora do furacão Katrina. A disputa internacional por petróleo também vai crescer.

Folha - Que fatos ou números justificam esse crepúsculo?

Klare - Estamos vendo um forte aumento na procura por petróleo -muita dessa demanda vinda de China, Índia, Coréia do Sul, Brasil, México e outras economias em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, testemunhamos um forte declínio na taxa de novas descobertas de campos de petróleo. No passado, as grandes empresas do setor descobriam mais óleo por ano do que eram capazes de extrair, o que não acontece mais hoje em dia: estamos extraindo mais óleo do que temos capacidade de repor com novas descobertas. Há também o fato de que algumas novas regiões de petróleo -onde um dia se acreditou serem muito promissoras, como a área do mar Cáspio- mostraram-se bastante decepcionantes. Então, mesmo que a extração mundial, hoje em torno de 84 milhões de barris por dia, cresça nos próximos anos, eu não acredito que cresça o suficiente para satisfazer uma demanda projetada de 120 milhões de barris por dia em 2025, conforme estimativas do Departamento de Energia dos Estados Unidos.

Folha - Quando deve começar a "era da escuridão"?

Klare - Isso depende, em alguma medida, da situação na Arábia Saudita e na Rússia. Se esses países, os dois maiores produtores mundiais de petróleo, puderem continuar a aumentar suas produções nos próximos anos -como seus presidentes insistem que acontecerá- a "era da escuridão" vai provavelmente começar por volta de 2020 ou 2025, quando muitos dos grandes campos de petróleo no mundo estarão esgotados. Entretanto, se a Arábia Saudita e a Rússia não forem capazes de manter o aumento de suas produções -como é previsto por muitos céticos-, essa era começará mais cedo, talvez ainda no meio da próxima década.

Folha - A quanto chegará o preço do barril de petróleo até lá?

Klare - Acredito que os preços atingirão U$100 o barril no caso de diversas catástrofes ocorrerem simultaneamente -por exemplo, outro grande furacão no Golfo do México e reviravoltas internas no Irã ou na Arábia Saudita. Mas os preços altos vão levar a uma recessão mundial, reduzindo, assim, a demanda por óleo e fazendo os preços caírem novamente. O ponto-chave é que nesta nova era, a produção será tão limitada que qualquer interrupção, como a do Katrina, produzirá imediatamente uma alta.

Folha - Por que o sr. pensa que as guerras pelo controle do petróleo serão uma característica desta e das próximas décadas?

Klare - Primeiro, por causa da crescente competição entre Estados Unidos, China, Japão e outros grandes consumidores pelo acesso ao que sobrará de áreas produtoras no mundo. Para promover seus interesses, esses países, especialmente os EUA e a China, estão se preparando para forjar laços militares com países produtores e fornecer armas modernas -os EUA com o Kuait e a Arábia Saudita, e a China com o Irã e o Sudão. Isso, naturalmente, leva a uma tensão crescente nessas regiões. Ao mesmo tempo, muitos dos países produtores estão divididos por conflitos étnicos, religiosos e políticos. Há, portanto, um perigo porque as grandes potências vão entrar em conflitos locais, transformando-os em conflitos maiores e, possivelmente, levando a uma intervenção de diversas grandes potências, seja de forma direta ou indireta.

Folha - Mas na história da humanidade sempre houve guerras -por comida, metais preciosos, recursos energéticos. Por que o sr. acredita que desta vez haverá um estado de guerra permanente?

Klare - Para começar, não há mais novos continentes para descobrir e pilhar -nós agora estamos extraindo recursos de cada canto do planeta. Quando essas ofertas se esgotarem, não haverá qualquer outro lugar para se apoderar. Ao mesmo tempo, por causa da globalização, mais e mais países estão competindo pelo acesso a essa oferta remanescente de petróleo e a demanda está crescendo. Finalmente, as maiores potências têm a tendência de "securitizar" recursos vitais -isto é, retratá-los como sendo essenciais para a segurança nacional. Dessa forma, legitimam o uso de forças militares para sua procura e proteção. Isso foi feito explicitamente no caso do petróleo durante a "Doutrina Carter", em janeiro de 1980, quando o então presidente Jimmy Carter declarou que o Golfo Pérsico era essencial para a segurança dos Estados Unidos e, por isso, usaríamos "quaisquer meios necessários, incluindo a força militar" para assegurar um fluxo seguro ao país.

Folha - Que fatos recentes comprovam sua teoria?

Klare - O Congresso americano vetou neste ano a compra da Unocal [companhia de petróleo com base na Califórnia] com argumentos de segurança nacional, alegando que a aquisição de uma companhia americana pela China diminuiria a produção doméstica dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, China e Rússia ficaram mais firmes no propósito de diminuir a influência americana em áreas produtoras da Ásia Central e do mar Cáspio. Um encontro recente da Shanghai Cooperation Organization, que é fortemente influenciada por Moscou e Pequim, conclamou as nações da Ásia Central a expulsar as bases militares americanas lá instaladas. Poucas semanas depois, o Uzbequistão pediu que os Estados Unidos removessem a base de seu território.

Folha - O estado de guerra será caracterizado por vários focos regionais ou por uma grande guerra mundial envolvendo a maioria dos países?

Klare - Isso é muito difícil de prever. O cenário mais provável é o de várias pequenas guerras, mas a história nos mostra que pequenas guerras podem detonar grandes guerras quando as maiores potências se envolvem em conflitos locais, como ocorreu nos Balcãs antes da Primeira Grande Guerra. Minha grande preocupação é que isso ocorra novamente no futuro, principalmente no Golfo Pérsico ou na região do mar Cáspio. Os conflitos vão começar justamente nas áreas onde os interesses das grandes potências se interponham a áreas de instabilidade regional. O cenário mais propenso seria a bacia do mar Cáspio, onde os interesses vitais das potências se interpõem a um caldeirão fervente de disputas políticas, étnicas e religiosas.

Folha - As estratégias militares serão mais importantes do que as questões econômicas?

Klare - As questões econômicas vão permanecer dominantes no curto prazo, mas as estratégias militares podem vir a se tornar mais importantes à medida que a oferta global de óleo diminua e permaneça, entre as principais potências, a briga pelo controle do petróleo remanescente.

Folha - Quais seriam as principais mudanças na geopolítica mundial?

Klare - A ver. Mas eu acredito que países mais dependentes do petróleo importado, em especial os Estados Unidos, Japão e China, vão sofrer mais que os países com capacidade de se libertarem dessa dependência e de contarem mais com fontes domésticas de energia. Também me preocupo que muitos dos países produtores vão sofrer com as brigas políticas internas a respeito da alocação das receitas de petróleo -um perigo especialmente grande na Nigéria, no Azerbaijão, no Cazaquistão e na Venezuela.

Folha - E o papel de organizações como a Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) vai mudar?

Klare - A Opep vai continuar a ter um papel importante porque agrega os maiores produtores do Oriente Médio, como Irã, Iraque, Kuait e Arábia Saudita. Esse países estão situados sobre, aproximadamente, dois terços das reservas restantes do petróleo mundial. Mas se deve ter em mente que a Opep não tem poder ilimitado para controlar a produção e os preços: deve prover petróleo a seus maiores consumidores em quantidades suficientes e a preços razoáveis, senão eles vão substituir o recurso e contar com outras fontes de energia.

Folha - Como ficarão os países em desenvolvimento, como China e Índia?

Klare - A China, obviamente, tem um grande papel, porque é o segundo maior consumidor de petróleo mundial e está se tornando fortemente dependente de importados, assim como os Estados Unidos. E, como já ressaltei, a China está forjando laços militares com produtores estrangeiros e se tornando mais ativa na tentativa de diminuir a influência americana em áreas estratégicas.

Folha - E o Brasil?

Klare - O que eu sei mais sobre o Brasil é que o país é um líder no desenvolvimento de fontes alternativas de energia, especialmente o etanol. Na minha cabeça, essa é a melhor saída que um país pode adotar nesta nova era. Penso que podemos aprender muito com o Brasil.

Folha - Essas fontes alternativas de energia são, então, solução para que não haja crises e conflitos?

Klare - Até agora, não estão disponíveis numa escala suficientemente ampla para substituir o petróleo quando este ficar escasso. A não ser que direcionemos muito mais investimentos para essas alternativas, podemos esperar condições muito duras nos próximos anos. Sob as circunstâncias atuais, o conflito será inevitável.

Folha - E quanto às grandes empresas de petróleo? Vão desaparecer ou serão reestruturadas?

Klare - Minha aposta é que as inteligentes, como a BP, vão dar mais e mais ênfase no desenvolvimento de fontes alternativas de energia -eólica, gás natural, hidrogênio- e tentar manter sua proeminência como gigantes da energia. Acho que as empresas que falharem na adoção dessa estratégia vão desaparecer no longo prazo.

Folha - As pessoas, usuários finais do petróleo, vão mudar seu modo de vida, suas rotinas?

Klare - A humanidade vai, certamente, mudar seu modo de vida, primeiramente por causa da pressão econômica. Por exemplo, a venda das grandes carros, tipo caminhonetes, que bebem muita gasolina, caiu muito nos Estados Unidos nos últimos meses, por causa da alta do preço da gasolina. Deve-se destacar, porém, que a transição será mais difícil para os que têm menos meios de se adaptar. Como vimos em Nova Orleans depois do furacão Katrina, os pobres têm menor capacidade de adaptação a desastres e adversidades do que os mais ricos.

Folha - Se o sr. fosse um líder global, quais seriam suas medidas para prevenir a crise e as guerras?

Klare - A única solução é convencer os países que dependem da importação de petróleo a reduzir seu consumo por meio de medidas de preservação e o desenvolvimento de combustíveis alternativos. Além disso, países que têm muito petróleo, como a Nigéria, precisam aprender a alocar os benefícios econômicos de um modo justo, que evite guerras civis por causa das receitas advindas do petróleo.

Folha - O sr. se considera um pessimista?

Klare - Tenho confiança que os homens serão capazes de criar novas soluções para os significantes desafios que enfrentaremos. Mas temo que não estamos nos movendo suficientemente rápido para desenvolver essas soluções. Então, teremos que, primeiro, passar por um período de grande dificuldade.