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2008

O dilema social do biodiesel


Junho 2008 - 05 jun 2008 - 09:59 - Última atualização em: 09 nov 2011 - 19:06

A euforia em torno da produção de biodiesel no semi-árido nordestino é socialmente reconfortante, mas o caráter social do programa é justamente o que o tornou polêmico desde o lançamento, em 2005. O governo brasileiro tenta estabelecer um novo paradigma para a produção. Quer que o fornecimento de matéria-prima para a produção de biodiesel seja pulverizado, distribuindo mais riqueza do que o modelo de produção de etanol, onde prosperaram grupos agrícolas e industriais. A forma encontrada para criar esse novo modelo foi lançar o selo social - instrumento que garante benefícios fiscais e facilidades em financiamentos bancários apenas para as usinas que se comprometem a comprar parte da matéria-prima da agricultura familiar. Como o governo fazia questão de incluir agricultores do Nordeste, região árida para o plantio, elegeu a mamona, uma planta resistente ao calor, como o principal símbolo do programa. "A idéia é estruturar a cadeia de maneira diversificada, para oferecer espaço aos pequenos agricultores", diz Ricardo Dornelles, diretor do Departamento de Combustíveis Renováveis do Ministério de Minas e Energia.

À luz das novas teorias de produção de bioenergias, associar biodiesel a produção familiar tem estatura de inovação. E risco. De acordo com o professor indiano Monkombu Sambasivan Swaminathan, pai da Evergreen Revolution (teoria que preconiza a ascensão de uma segunda revolução verde), a utilização de bioenergias tende a reunir benefícios econômicos, tecnológicos, ambientais e sociais - esse último, por meio da agricultura familiar em pequenas propriedades. "A tendência mundial hoje é estabelecer os mercados de biocombustível sobre critérios socioambientais", diz o professor Ricardo Abramovay, da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo, especialista em movimentos sociais, governança ambiental e desenvolvimento territorial.
Plantas
Os especialistas da área de energia, no entanto, consideram essas propostas economicamente frouxas. Um dos princípios da geração de energia - seja ela qual for - é a produção em larga escala, a preços baixos, com regularidade na entrega de produto. Pequenos negócios historicamente têm dificuldade de padronizar a produção e o prazo de entrega, principalmente se o pequeno negócio é agrícola. Por causa dessa característica, o setor de energia consolidou-se dominado por grandes grupos. "Associar o desenvolvimento de combustível a um programa social é absurdo", diz Nivaldo Trama, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Biodiesel. "Esse tipo de iniciativa pode comprometer a competitividade do biodiesel brasileiro no futuro."

Passados dois anos, a polêmica em torno do programa de biodiesel tornou-se mais complexa ainda. Os ganhos sociais começam a aparecer em comunidades inesperadas, como Iraquara e Irecê, visitadas pela equipe de Época NEGÓCIOS. Paralelamente, é possível ver que o caráter social da proposta não inibiu a participação dos investidores, como alguns críticos previam. Cerca de R$ 1 bilhão foi injetado na modernização e, principalmente, na construção de mais de 50 usinas - metade das quais tem selo social e compra matéria-prima de pequenos agricultores. Entre elas estão grandes grupos, como o americano ADM, uma das maiores tradings do mundo, e o Bertin, importante exportador de carnes. Para completar, os leilões de compra de biodiesel foram considerados um sucesso pelo governo. No final de 2007, por exemplo, a oferta do combustível superou a demanda muito acima do esperado. O preço ficou em média 22% abaixo do valor previsto. No entanto, há sinais de fragilidade justamente onde os céticos mais temiam: na cadeia agrícola.

No dia-a-dia, tem sido penoso organizar a entrega da matéria-prima. Em parte, é complicado cativar justamente os mais beneficiados pela proposta, os pequenos agricultores. Muitos deles lutaram para ter seu pedaço de chão e poder cultivar alimentos. Alguns chegaram a integrar fileiras dos movimentos de trabalhadores sem-terra. Encaram com desconfiança as plantas dedicadas a monocultura, como a soja, e o cultivo de espécies que não servem de alimento, como a mamona e o girassol. Outros estão ilhados em comunidades perdidas no sertão, sem infra-estrutura. Há casos de pequenos agricultores que sequer têm uma certidão de nascimento e encontram enorme dificuldade de conseguir um financiamento para começar a lavoura. No início de 2007, o governo anunciou que cerca de 250 mil famílias deveriam aderir à agroenergia. O ano terminou com 100 mil famílias cadastradas.

Na prática, também tem sido complicado fazer com que o pequeno agricultor entenda a lógica do mercado e respeite as oscilações de preço. "Não dá para deixar o desenvolvimento da agricultura energética na mão de agricultores desarticulados", diz Francisco Graziano Neto, agrônomo e secretário de meio ambiente do estado de São Paulo. No Nordeste, por exemplo, a maioria ficou muito feliz quando fechou contratos de venda de mamona com as usinas em valores acima de R$ 30. Era um dinheiro certo. Em 2006, no entanto, a seca castigou as plantações, reduziu a produção e elevou o preço do produto para R$ 80. Assediados por outros compradores, os agricultores pediram às usinas liberdade para não cumprir os contratos. A Ecodiesel, que apostou na mamona nordestina, liberou os agricultores e recorreu à soja para manter a produção. Cerca de 60% do biodiesel do país até agora veio exclusivamente da soja comprada de produtores profissionais. Os outros 40% são uma mistura de soja com outros óleos. Não é a melhor opção.

Caso a indústria nacional de biodiesel torne-se dependente da soja, em algum momento, no futuro, poderá haver concorrência entre as indústrias de alimento e de energia - o que os especialistas consideram prejudicial. Não apenas porque pode afetar a produção de comida, mas também porque vai desequilibrar os preços do grão. Além do mais, a soja não oferece tanto óleo quanto outras culturas e, para dar conta da demanda, seria preciso expandir as plantações muito acima do recomendável ou investir na criação, em laboratório, de espécies mais produtivas para a fabricação de biodiesel.

A falha na obtenção de matéria-prima já é apontada como uma das causas para a deficiência na entrega do produto final. Quase metade do biodiesel vendido nos cinco primeiros leilões realizados pelo governo não foi entregue no prazo. "Ainda é cedo para dizer quais foram as principais razões para o atraso, pois estamos apurando", diz Edson Silva, superintendente da Agência Nacional de Petróleo, responsável pelos leilões. "Mas com certeza é preciso fazer uma reflexão sobre o papel da agricultura familiar, pois houve gargalo na entrega de matéria-prima."

A mamona em si também se revelou uma planta problemática. No imaginário popular, ela serve apenas para guerra de estilingue. Mas na vida real conta com um mercado global que, apesar de pequeno, é rentável. Por ano, o comércio internacional da prosaica baga movimenta cerca de US$ 700 milhões. A mamona é utilizada pela indústria farmacêutica para a produção de medicamentos e pela Nasa, a agência espacial americana, para lubrificar o motor dos foguetes. Quando a safra é ruim, a demanda de setores especializados torna o preço proibitivo para o biodiesel. Há um grave problema adicional. O subproduto do óleo, a torta de mamona, contém substâncias tóxicas. Uma delas, a ricina, é tão perigosa que, nos Estados Unidos, está catalogada como potencial arma para o bioterrorismo. Mal processada, a torta pode causar graves alergias. "Menos de 2% do biodiesel hoje é produzido com mamona", diz o pesquisador Décio Luiz Gazzoni, membro do Painel Científico Internacional de Energia Renovável. "Mesmo projetando o futuro, dificilmente passará de 3% ou 4%." Graziano concorda: "Para que o programa decole, será preciso ter competência técnica para desenvolver espécies mais produtivas, investir na formação de uma cadeia de abastecimento e garantir escala ao processo". Hoje acredita-se que uma das melhores opções para o sertão seria o cultivo do pinhão-manso, conhecido pelo nome científico de jatropha. A planta resiste ao calor e tem uma altíssima concentração de óleo (veja quadro). Virou uma coqueluche global quando se fala em biodiesel. Está sendo cultivada na Índia e na China, e avaliada no Brasil. Já existem até eventos internacionais de apoio à cultura, como a Jatropha World 2008, conferência realizada em Jacarta, Indonésia, no final de janeiro. No entanto, a planta é selvagem e seu cultivo formal ainda está sendo pesquisado.

Há um grave problema em processar a mamona: a torta resultante contém uma substância tão tóxica - a ricina - que nos EUA foi catalogada como arma de bioterrorismo

DESEQUILÍBRIOS NATURAIS

Esses empecilhos indicam que o programa está dando para trás? Os especialistas recomendam cautela no julgamento. "De acordo com o conceito de desenvolvimento sustentável, cada vez mais respeitado no mundo dos negócios, a produção de biodiesel deve gerar benefícios econômicos, ambientais e sociais", diz Jorge de Rosa, analista da consultoria Frost & Sullivan. "É natural que durante o desenvolvimento de um programa do gênero ocorram desequilíbrios. O desafio é corrigi-los." O fato é que o biodiesel ainda é uma experiência. Na melhor das comparações, o biodiesel de hoje é o que foi o etanol há 30 anos. Tem um grande potencial, mas depende de aperfeiçoamentos tecnológicos e de mecanismos econômicos antes de firmar-se. O biodiesel custa cerca de 30% mais caro que o diesel. Com o barril do petróleo beirando os US$ 120, seu uso começa a ser comercialmente viável. O etanol tornou-se competitivo quando o petróleo chegou na casa dos US$ 60. "Estamos apenas no segundo ano do programa e muita coisa terá de se adaptar no meio desse caminho", diz Reinhold Stephanes, ministro da Agricultura. "O etanol, afinal, tem 30 anos."

No entanto, diferentemente do substituto da gasolina, que por décadas foi uma aposta solitária do Brasil, o substituto do diesel vem sendo pesquisado e testado em diversos países. Há uma corrida global para o seu desenvolvimento. Desde o começo da década, a produção mundial foi multiplicada por seis e encostou em 13 bilhões de litros no ano passado. Mesmo sendo mais caro, o biodiesel já é misturado ao óleo diesel na União Européia, nos Estados Unidos e na Ásia em proporções que variam de 5% a 20%. A adoção de metas agressivas em diferentes países faz com que o uso do biodiesel em nível internacional ocorra de forma muito mais rápida do que o do etanol.

Nos últimos dois anos, o número de usinas americanas triplicou e ultrapassou 100. A produção já passou de 1 bilhão de litros e o consumo tem sido incentivado em vários estados por meio do corte de tributos. Na União Européia, o processo é ainda mais intenso: lá se produz quase metade do biodiesel do mundo. Em 2007, por exemplo, a demanda européia encostou nos 7 bilhões de litros. O volume equivale a quase metade do dispêndio de etanol no Brasil no mesmo período. Estima-se que em 2020 o consumo europeu ficará próximo de 12 bilhões de litros. A indústria cresce de forma acelerada em países como França, Itália, Espanha e Inglaterra. A liderança absoluta nesse nascente mercado pertence à Alemanha. Sozinha, ela responde por cerca de 60% da produção na União Européia. No país, há bombas com biodiesel em mais de mil postos - o equivalente a 10% da rede de abastecimento. Boa parte delas já oferece o chamado B-100, o biodiesel puro.

Em parte, a efervescência internacional é positiva para o Brasil. O país tem enorme potencial para se tornar fornecedor global. O problema é a velocidade com que o país vai conseguir desenvolver sua cadeia de produção. Se não tiver agilidade para solucionar os entraves já detectados, o Brasil pode acabar tornando-se mero fornecedor de matéria-prima para as usinas instaladas no Primeiro Mundo e não fornecedor de combustível, como ocorre com o etanol. "O mercado de biodiesel já está em formação", diz o ex-embaixador Rubens Barbosa, que preside o Conselho Superior de Comércio Exterior da Federação das Indústrias de São Paulo. " O mundo não vai esperar pelo Brasil."

Etapas de Produção
A idéia de produzir combustíveis à base de óleos vegetais é antiga e o processo, simples. Acompanhe as etapas da produção de biodiesel feito com base na mamona:
Clique na imagem para ampliar
DO CAMPO À BOMBA DE COMBUSTÍVEL
Fontes: Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis e Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária

por Alexa Salomão e Antonio Alberto Prado
Época Negócios