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Qualidade: Águas passadas


Edição de Ago / Set 2012 - 27 ago 2012 - 10:08 - Última atualização em: 31 out 2012 - 12:01
Enquanto era discutida, a nova especificação que reduziu teor de água no biodiesel dividiu opiniões. Passados três meses, os envolvidos na cadeia produtiva parecem concordar que a medida sinaliza uma nova fase na produção de biodiesel no Brasil

Juliana Tavares, de São Paulo

Pouco mais de um ano atrás, o elevado teor de água no biodiesel brasileiro era quase sempre apontado como o bicho-papão da qualidade no segmento. Essa opinião era particularmente popular entre os representantes do varejo de combustíveis, segundo os quais, além de facilitar a proliferação de micro-organismos nos tanques de armazenamento de óleo diesel, o excesso de água comprometia a qualidade do produto e os expunha ao risco de acabarem punidos pelos fiscais da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) por venderem combustíveis fora dos padrões. O problema se agravaria ainda mais com a chegada do S50 e do S10, produtos cuja menor concentração de enxofre os tornava mais vulneráveis à contaminação bacteriológica.

Não foi por acaso, portanto, que o teor de água foi um dos pontos mais polêmicos nos debates que culminaram na publicação da Resolução ANP nº 14 em 18 de maio, aposentando de vez a especificação estabelecida na Resolução ANP nº 7, de março de 2008. Pelo texto aprovado no documento, os fabricantes de biodiesel tiveram até 18 de julho passado para reduzir o teor de água em seu produto dos 500 ppm (partes por milhão) permitidos pela regra antiga para 380 ppm. Em janeiro do ano que vem, o teor máximo passa a ser de 350 ppm e, no início de 2014, cai para 200 ppm.

A medida é considerada positiva pela maior parte dos envolvidos na cadeia produtiva: menos água no biodiesel minimiza a proliferação dos micro-organismos que formam uma espécie de borra que se acumula nos tanques, causando todo tipo de contratempo para os postos de combustíveis. O resultado esperado é um aumento na qualidade do produto. Apesar disso, a proposta é vista com ressalvas por alguns setores. Para o presidente da Associação dos Produtores de Biodiesel do Brasil (Aprobio), Erasmo Carlos Battistella, o fato de o biodiesel ser um produto higroscópico e, portanto, ter uma grande capacidade de absorver umidade do ar, pode dificultar a manutenção do teor de água em 200 ppm ao longo de toda a cadeia.

“Embora a nossa posição seja a de cumprir integralmente a exigência, é preciso discutir com as distribuidoras e demais representantes do setor do varejo se há condições de manter esse índice ou se será necessário revisar a norma”, explica Battistella. “Isso porque, tanto no transporte do produto até as distribuidoras, quanto no processo de armazenamento e mistura do biodiesel ao diesel, é possível ocorrer absorção de água pelo combustível, o que afetaria o índice de água na composição”, adverte, preocupado que a emenda possa acabar saindo pior que o soneto.

A dúvida que fica é o que acontece caso a ANP flagre uma carga de biodiesel com mais água do que deveria. O órgão vai aplicar punições ao menor desvio ou vai trabalhar com margens de tolerância (não mencionadas na Resolução nº 14) que permitam à cadeia funcionar com menos sustos? A reportagem de BiodieselBR chegou a questionar o órgão fiscalizador sobre esse ponto. Mas, até o fechamento dessa edição, a ANP não se posicionou sobre como vaiser feito o acompanhamento das adaptações e como serão conduzidos os testes para verificar o atendimento das normas.

Adaptação

Além desse percalço com higroscopicidade do biocombustível, para se adaptar à nova medida a indústria produtora deverá investir em novos processos de produção e em adaptações no parque de tancagem, segundo Battistella. Embora essas alterações variem de usina para usina e de tecnologia para tecnologia, isso vai significar gastos e dores de cabeça adicionais para o empresariado. “Em alguns casos pode ser necessário a aquisição de novos equipamentos. Em outras situações, será preciso adaptar as plantas, o que exigiria novas licenças e autorizações”, explica.

Algumas modificações necessárias para adaptar o setor à resolução, porém, podem ser mais simples do que se imagina. Segundo Donato Aranda, professor da UFRJ e consultor da União Brasileira do Biodiesel (Ubrabio) – um dos órgãos que sugeriram a medida à ANP –, há soluções disponíveis comercialmente que podem ser adotadas imediatamente pelas usinas. “A injeção de nitrogênio nos tanques, por exemplo, evita o contato do combustível com o ar, reduzindo riscos de explosões e impedindo a produção de umidade. Há, ainda, dispositivos que podem ser acoplados ao caminhão-tanque e que permitem um sistema de alimentação de combustível por baixo e não pela escotilha, como é feito usualmente. Essa já é uma realidade no transporte do metanol e deverá ser incorporada também no transporte do biodiesel,” informa Aranda.

Embora não seja possível precisar os investimentos que serão ne-cessários para adaptar toda a cadeia à nova medida, Aranda acredita que, por serem tecnologias disponíveis no mercado, os custos não deverão ser assim tão salgados.

Com ou sem necessidade de grandes investimentos, o fato é que as produtoras precisariam de um prazo para se ajustar às mudanças propostas. Foi por essa razão que a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) propôs que a redução fosse gradativa. “Os equipamentos adquiridos pelas fábricas em construção e em operação foram projetados para atender à especificação de 500 ppm. É preciso de um tempo de no mínimo seis meses para que a produção em escala seja feita com teor de água menor, sob o risco das empresas encontrarem ainda mais dificuldade para cumprir a medida”, diz Daniel Furlan Amaral, gerente de economia da Abiove, comemorando o fato de a ANP ter acolhido a proposta na versão final da Resolução nº 14.

Mistura ideal

O conjunto de medidas propostas pela ANP traz vantagens para o biodiesel que são irrefutáveis. Segundo Amaral, a nova especificação ajudará a diminuir as resistências existentes ao aumento do teor de biodiesel na mistura com o diesel. “O teor de água de 500 ppm gerava problemas de armazenamento, de distribuição e na bomba que restringiam a mistura entre os dois combustíveis”, afirma o executivo da Abiove. “A partir do momento que o biodiesel segue uma especificação mais rígida, abre-se uma importante oportunidade para que o biodiesel cresça tanto na mistura obrigatória, como no mercado voluntário.” Ele menciona ainda a possibilidade dessa situação abrir mercados para a adoção de misturas maiores em frotas das empresas de transportes urbanos e frotas cativas. Pode até ajudar no tão sonhado B20 metropolitano.

O aumento nas exigências pode ter reflexos positivos até na agricultura familiar do país. “O programa brasileiro de biodiesel foi idealizado e implementado visando inserir a agricultura familiar na agroenergia. Com o aumento da qualidade do biocombustível, aumentará a demanda por qualificação do setor, o que pode gerar emprego, renda e produtividade para a pequena propriedade rural, algo que estava previsto desde o início do programa”, especula Amaral.

De todos os atores da cadeia dos combustíveis, a Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e de Lubrificantes (Fecombustíveis) é a que mais tem colocado o bloco na rua para exigir a melhora da qualidade do biodiesel. A entidade parece satisfeita com a nova regulamentação, que, no seu entender, atende aos interesses do mercado. “Ela melhora o produto, fazendo com que o nosso mercado se iguale em qualidade ao europeu”, diz Ricardo Hashimoto, diretor de Postos de Rodovia da Fecombustíveis. “A especificação mais rígida aumentará os custos para os produtores e tornará o produto mais caro. Em contrapartida, devem diminuir as queixas dos consumidores quanto à qualidade do produto”, comemora.

Nenhum dos entrevistados detalhou as adaptações que serão feitas. Ao que tudo indica, tudo ainda está muito impreciso, apesar da disposição do setor em atender à nova especificação da ANP. A certeza que fica é a de que, em função das modificações, sobrará para o consumidor final arcar com a conta. Espera-se que a qualidade do produto compense os custos adicionais.

Teor de Enxofre e ponto de entupimento

A resolução da ANP coloca fim às dúvidas sobre a qualidade do biodiesel brasileiro. Além de estipular a redução do teor de água para 200 ppm até 2014, outros pontos igualmente importantes também foram definidos.

Um deles foi a determinação pelo ponto de entupimento de filtro a frio, parâmetro que observa a temperatura mínima na qual o biodiesel começa a cristalizar e a apresentar risco de entupimento nos motores. Na resolução antiga, o limite era de 19ºC e valia para o país inteiro durante o ano todo. Em razão da dimensão continental do Brasil, havia necessidade de se adaptar a legislação às condições climáticas de cada região. A partir da nova resolução, passou a prevalecer uma tabela de referência que estabelece limites mínimos para cada estado da federação ao longo do ano.

A medida da ANP também alterou a quantidade máxima de enxofre no biodiesel, que passou de 50 mg/kg na resolução antiga para 10 mg/kg. Embora o teor de enxofre nunca tenha sido considerado propriamente um problema para o biodiesel, a alteração coloca a nova especificação em linha com os novos teores de enxofre do óleo diesel brasileiro.