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Carlo Lovatelli: física da soja


Edição de Ago / Set de 2011 - 15 ago 2011 - 17:42 - Última atualização em: 19 jan 2012 - 16:15
Presidente executivo da Abiove, Carlo Lovatelli, fala a respeito do relacionamento – nem sempre pacífico – entre o óleo de soja e a indústria de biodiesel

Fábio Rodrigues, de São Paulo

Olhando para a familiaridade que o presidente executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), Carlo Lovatelli, tem com os temas da agroindústria brasileira, chega a ser difícil imaginá-lo fazendo outra coisa da vida. Mas, quando jovem, o físico sonhava em ser pesquisador e até chegou a dar uns passos nessa direção antes de perceber que a carreira acadêmica não o levaria longe. Foi aí que ele aceitou um convite para chefiar a área de pesquisas de um fabricante de baterias, onde teve a chance de se meter em projetos ambiciosos e até folclóricos: foi o responsável pelas primeiras baterias nacionais para os submarinos da Marinha.

A aproximação com o mundo do agronegócio veio há cerca de 30 anos, quando se transferiu para a Bunge. Na companhia, ele passou por praticamente todas as áreas até assumir o cargo de diretor de Assuntos Corporativos do Brasil. Desde 2003, Lovatelli comanda a associação que representa cerca de 70% do processamento de soja brasileiro. A responsabilidade é grande, afinal o Brasil é o segundo maior produtor e o maior exportador de soja do planeta. Ele alerta que ainda existe muito a ser feito antes que a atual onda de prosperidade brasileira seja convertida em riqueza de verdade e que ainda faltam rumos ao biodiesel para que ele possa cumprir sua missão a contento.

Revista BiodieselBR Há um consenso de que a soja não é a matéria-prima ideal para biodiesel. Mesmo assim, o óleo de soja foi fonte de 82% do biodiesel fabricado no Brasil. Isso não é um contrassenso?
Carlo Lovatelli Eu confirmo a tese inicial de que a soja não é a matéria-prima mais adequada para o biodiesel, e por várias razões. A mais importante é que na soja o óleo é 18% e o farelo é quase 80%, e não existe um mercado que absorva todo o farelo que seria produzido com o aumento na produção do óleo. O que fazer com o farelo nos preocupa muito. Além disso, a soja tem uma produtividade entre 500 e 600 quilos de óleo por hectare. Existem outras culturas, como a palma, que dão dez vezes isso e não têm esse problema do farelo. Esse é o argumento inicial. Também tem um dado histórico aí. A primeira opção do governo foi a mamona, que eles tentaram viabilizar, quase por decreto, em 2005. Os incentivos para a produção da mamona no Nordeste e Norte tinham um enfoque social forte, que era viabilizar uma cultura que pudesse remunerar o produtor numa região onde não havia quase nada. Isso implicaria certo investimento público inicial que não ocorreu e o projeto foi definhando, não vingou. Essa foi uma derrota técnica para o governo, que não levou em consideração variáveis muito importantes como a logística, a produtividade e a pureza do óleo de mamona. Enquanto isso, a participação da soja foi crescendo, basicamente porque ela estava disponível.

Seria possível o crescimento de matérias-primas alternativas numa janela razoável de tempo? Até 2020, digamos?
Carlo Lovatelli Não no todo. Provavelmente, a soja vai continuar a ser uma parceira importante do biodiesel, até porque temos grandes empresas da área de soja investindo em biodiesel. Empresas como ADM, Cargill e Bunge só fariam esses investimentos se estivessem vendo um panorama favorável para que eles sejam rentáveis. E o biodiesel de soja pode ser competitivo, desde que ele seja produzido e consumido na mesma região onde a soja é plantada. O que não dá é para ele ficar viajando da mesma forma que o diesel viaja. Mas, provavelmente, se uma boa parte dos projetos que estão sendo divulgados se concretizarem de fato, a substituição da soja vai ser gradativa e forte. Existem projetos muito grandes de palma da Vale e da Petrobras que estão em pleno processo de estruturação. São empresas que, até por seu retrospecto, certamente serão bem-sucedidas.

Até quando a soja consegue abastecer o biodiesel?
Carlo Lovatelli A soja vai continuar conseguindo atender o mercado por muito tempo ainda. Aumentar a produção e a produtividade da soja não é difícil, a grande variável vai continuar sendo o que fazer com o farelo. O consumo de farelo está crescendo de forma vegetativa, nós teríamos que equacionar esse problema. Para podermos aumentar a quantidade de óleo disponível para o biodiesel seria preciso aumentar a produção de frangos e de suínos no Brasil. O frango seria difícil porque já estamos no topo do mercado. No caso dos suínos, isso não acontece. Cerca de 40% dos países que importam carne suína não compram do Brasil. Para aumentar essa parcela, precisamos de mais acordos bilaterais como o que estamos negociando com a Rússia. Se conseguirmos fechar com os russos, teremos uma demanda adicional de farelo importante.

Sem o biodiesel, haveria sobra de óleo de soja brasileiro no mercado interno?
Carlo Lovatelli O mercado estava bem balanceado. Agora o biodiesel é uma opção, mas ele não remunera da mesma forma que o mercado alimentar necessariamente. O biodiesel é um produto importante, mas não é o carro-chefe e não vai ser nunca. Sem ele, teríamos que encontrar formas de colocar esse nosso óleo, mas conseguiríamos.

Isso não passaria por uma revisão do modelo de exportação que atualmente incentiva mais a comercialização de soja em grão do que de produtos industrializados?
Carlo Lovatelli Obviamente, sempre defendemos o aumento da participação para produtos de soja de maior valor agregado – óleo e farelo – nos mercados internacionais. Para isso, os produtores, o governo e o Itamaraty precisam fazer a nossa lição de casa de uma forma mais abrangente. Isso passa pela revisão da política tributária. A Lei Kandir foi muito parcial. Se você colocar a evolução das exportações de soja em grão brasileiras em um gráfico, vai perceber que elas sobem num ângulo de quase 45 graus. Um sucesso. Só que no caso do farelo e do óleo, o crescimento está paralelo ao eixo X. Tanto é que as grandes processadoras de soja – ADM, Cargill, Bunge e Dreyfus – hoje exportam grãos também. Elas tiveram que se adaptar ao jogo. Não é só no caso da soja que o Brasil incentiva a exportação de matéria-prima e não de valor agregado. Internacionalmente, somos os únicos fazendo isso. Todos os outros países do mundo incentivam a exportação de valor agregado. Não pode ser que todo mundo esteja errado e só a gente certo, não é mesmo? Eu acho que não estamos, e a Abiove está trabalhando fortemente para inverter esse processo.

Vocês não são os únicos a reclamar desse efeito adverso da Lei Kandir. Com um problema evidente e tanta gente incomodado com ela, por que tem se mostrado tão difícil reverter essa lei?
Carlo Lovatelli Ao exportar matéria-prima, o que estamos fazendo é exportar fábricas e empregos. Isso beira o inexplicável. A política tributária brasileira é extremamente complexa. Outro dia eu estava vendo uma exposição do Roberto Civita em que ele dizia que o Brasil tem 87 impostos diretos e indiretos enquanto a Austrália e a Nova Zelândia têm apenas três. É uma colcha de retalhos. Mas estamos falando muito com as autoridades sobre esses temas, o governo atual está nos dando certa abertura para isso e temos visto várias declarações de gente do governo indicando que existe vontade política de mudar um pouco as regras. Tanto que junto com outras entidades que participam da cadeia da soja, a Abiove está envolvida num processo de reestruturação tributária que conta com o aval do Ministério da Fazenda. Nós vamos fazer uma proposta grande, negociar e entrar no mérito técnico da proposta e tentar fazer a várias mãos uma proposta que consolide essa colcha de retalhos. Da porteira para dentro, você realmente precisa tirar o chapéu porque o produtor rural brasileiro é extremamente competitivo, mas da porteira para fora atrapalhamos muito ele.

Além da questão tributária, tem o nó logístico que é a outra perna do custo Brasil. Tem havido avanços nisso?
Carlo Lovatelli Os avanços têm vindo lentamente e não necessariamente nos modais mais adequados. Nos Estados Unidos, 70% dos granéis agrícolas são transportados por via fluvial. No Brasil, 70% é transportado por caminhões, que é uma forma de transporte “só” dez vezes mais cara. Nós temos um monte de rios navegáveis, temos que usar isso de uma forma ambientalmente responsável. O modal ferroviário é quatro vezes mais barato e também não é incentivado. Temos hoje os mesmos 30 mil quilômetros de ferrovias que tínhamos nos anos 1940 e, desses, nas contas da ANTT, só 12 mil são explorados pelas empresas que assumiram a malha quando ela foi privatizada. Eles utilizam só o filé mignon da rede. Isso vem sendo questionado e estamos assistindo grandes quedas de braço entre o governo e as ferrovias privadas. Até porque nós já estamos dando murro nessa ponta de faca há 10 ou 15 anos e tem alguma coisa acontecendo. Já foi muito pior e tenho certeza de que vai melhorar muito, mas nós temos que incentivar isso. Também precisamos de mais portos, porque o que pagamos de sobre-estadia nos portos brasileiros é um absurdo. Depois de três ou quatro dias parado, um graneleiro panamax cobra entre US$ 40 mil e US$ 50 mil por dia de atraso.

Qual é a influência real da demanda por biocombustíveis nos preços das commodities alimentares?
Carlo Lovatelli Eu acho que 80% disso tudo é fumaça. Imagine o seguinte: a China e a Índia reúnem 40% da população mundial e o consumo per capita de óleos e gorduras desses dois países está abaixo de 15 quilos por ano. Na Europa e nos Estados Unidos, que são mercados que já atingiram o ponto de saturação, o consumo é de mais de 45 kg. Aqui no Brasil estamos em 23 kg. Se o consumo dos chineses e indianos subir só um quilinho a mais, isso dá uma demanda extra de 3 milhões de toneladas. É tudo o que o Brasil exporta por ano, e somos o maior exportador de óleo do mundo. Então, a verdade é que estamos lidando com um mercado de uma sensibilidade impressionante.

Há pouco tempo surgiram suspeitas sérias de que o mercado de commodity estaria sendo alvo de uma onda de especulação que estaria inchando os preços. Esse é um perigo real?
Carlo Lovatelli Essa tese correu solta há algum tempo e estava muito atrelada às movimentações que alguns grandes grupos e fundos estavam fazendo na Bolsa de Chicago. Havia fundos enormes que, acreditava-se, conseguiam fazer o mercado. Embora ninguém tenha realmente conseguido comprovar essa tese, de vez em quando a gente sentia que os preços em Chicago não reagiam de forma compatível com o que estava acontecendo nos fornecedores. Às vezes os preços iam na contramão e a especulação era a única forma de explicar. Isso foi antes da crise mundial de 2008. Agora os preços estão estáveis há bastante tempo. Então, eu acho que os especuladores não têm conseguido afetar o mercado como um todo.

Em 2009, a União Europeia aprovou uma diretiva que exige que os biocombustíveis vendidos lá emitam 35% menos CO2 do que os fósseis. Nas contas da UE, o biodiesel de soja não passa nesse teste. Vocês pensam em contra-atacar?
Carlo Lovatelli Nós estamos ocupando espaços comerciais que não eram nossos. Então, embora não concorde com os métodos que os europeus estão usando, acho compreensível que eles estejam lutando para que não ocupemos esses espaços. Estamos trabalhando com o Itamaraty para que o nosso pessoal de política externa entenda um pouco melhor do que estamos falando e possa nos defender mais.

O que ainda falta para a indústria do biodiesel se estruturar melhor?
Carlo Lovatelli Mais ordenação. As coisas ainda estão muito soltas e os nossos associados estão preocupados com o setor de biodiesel por causa disso. A área tem entidades que não se entendem. Houve uma cisão da Ubrabio em que metade das empresas foi para um lado e metade para o outro. Além disso, tem muita gente que não está em associação nenhuma e sempre vem nos pedir algum conselho ou colaboração. Não tem espaço para essa tropa toda. Há muita heterogeneidade no mercado, inclusive na qualidade do produto, e os compradores querem algo mais padronizado porque isso afeta o fluxo deles. O Brasil é um país muito grande e se você não projetar direitinho suas fábricas e áreas comerciais, arrisca-se a morrer na praia. Hoje o transporte de biodiesel custa uma fábula e as perdas são grandes. Isso precisa ser levado em consideração porque, lá na frente, quando esse bom momento que estamos vivendo na economia passar, pode ser que tudo trave.