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Jogo do ganha e perde


Edição de Dez / Jan 2008 - 14 dez 2007 - 17:42 - Última atualização em: 17 dez 2012 - 10:12
Criado para garantir a inclusão de agricultores familiares na cadeia produtiva do biodiesel, o Selo Social deve passar por mudanças em 2008 para atender às demandas dos usineiros.

Spensy Pimentel, de Brasília

Implantado no país de forma emergencial, como reação aos drásticos aumentos nos preços do petróleo, em 1975, o Programa Nacional do Álcool (Proálcool) chamou a atenção do mundo todo por conseguir, em poucos anos, reverter um problema com o qual muitos países têm de arcar até hoje – a geração de energia alternativa.

O que o Proálcool não conseguiu fazer foi colaborar com a redução de um panorama social herdado do sistema colonial: o novo combustível continuou sendo produzido no velho modelo das usinas de açúcar, herança do tempo das sesmarias e capitanias hereditárias.

Quase 30 anos depois, diante de uma nova oportunidade histórica de mudar a matriz energética do país, o Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel chamou para si o desafio de, desta vez, fazer diferente. Nascia, assim, o Selo Social – hoje a principal arma do governo federal para a inclusão social amparada no crescimento do setor de biodiesel. E, de outro lado, a maior fonte de benefícios fiscais para quem investe no setor (leia mais sobre o selo no quadro ao lado).

Três anos depois de ser criado, a importância do selo é reconhecida não apenas pelo governo federal, mas também por especialistas, entidades que representam os agricultores e, principalmente, pelos donos de usinas. Das 44 unidades produtoras de biodiesel autorizadas pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) no país, 27 detêm o Selo Social. É um sinal, sem dúvida alguma, de que a iniciativa foi bem recebida.

Nem por isso, agricultores e gestores públicos deixam de lado o debate sobre possíveis aperfeiçoamentos. Melhorar a forma como a política do selo vem sendo aplicada é uma demanda crescente dos empresários do setor que, afinal de contas, são os maiores interessados em manter e ampliar o negócio do biodiesel. A principal queixa é de que, aos agricultores familiares, sobra vontade de produzir, mas falta técnica e preparo. Por causa disso, muitos usineiros já se viram de mãos vazias na hora de fazer o biodiesel. O diretor de Políticas Agrícolas da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Antoninho Rovaes, destaca que há dificuldades relativas à própria tecnologia disponível. “No caso da mamona, não há sementes certificadas e que tenham garantia de germinação”, explica.

Nem os mais experientes produtores estão livres do ponto deinterrogação que é hoje o cultivo de oleaginosas para o biodiesel. É o caso, por exemplo, dos agricultores familiares do Rio Grande do Sul – estado onde há várias experiências consolidadas de se trabalhar a partir de contratos com frigoríficos e a indústria do fumo, por exemplo. O problema é que, no caso do biodiesel, ainda há muito a aprender e quase nunca o conhecimento aplicado a outras culturas funciona. Mesmo assim, os agricultores gaúchos estão correndo atrás e já garantiram a entrada no setor. Na região de Canguçu (RS), cerca de mil famílias fizeram contratos para fornecer mamona e girassol para as empresas Brasil Ecodiesel e BSBios.

Ainda que haja muito a melhorar, Rovaes garante que o saldo é positivo. “É normal que, em uma atividade tão nova, surjam dificuldades”, diz ele. Além disso, muitas das falhas na entrega que aconteceram recentemente foram causadas por fatores que fogem do controle do agricultor”, diz. “Tivemos problemas climáticos, como a seca no Nordeste, que prejudicou a mamona, e a geada no Sul, que afetou o girassol”, explica. Para ele não existe tradição de plantar muitas das culturas usadas no biodiesel e, por isso, é preciso que as indústrias reforcem a assistência ao agricultor familiar.
 

Muita técnica e disposição

O Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) estima que 85% dos estabelecimentos rurais no país, mais de 4,1 milhões, praticam a agricultura familiar. Ou seja, contam basicamente com a mão-de- -obra da família que reside na área agrícola. Os agricultores familiares ocupam 107 milhões de hectares, 30,5% do total de terras cultivadas no país, de onde retiram uma renda equivalente a 37,9% de todo o valor bruto da produção agropecuária brasileira.

As metas do governo federal para a adesão ao biodiesel são modestas: 200 mil famílias previstas para serem incluídas neste início do programa, o que representa 5% do total de agricultores familiares do país. A curto prazo, porém, considerando-se o início da obrigatoriedade da adição de 2% de biodiesel ao diesel em 2008,é fácil perceber que o desafio para chegar aonde o governo quer é grande. Até agora, cerca de 90 mil famílias estão produzindo regularmente para o setor. Esses produtores estão em 21 estados brasileiros, mas se concentram, principalmente, na região Nordeste – por lá, eles já chegam a 46 mil, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Eles não são poucos apenas em número, mas também em produção. A safra de mamona 2006/2007, segundo a Contag, ficou cerca de 30% abaixo do esperado, alcançando algo entre 160 mil e 170 mil toneladas de grãos. Muito pouco para suprir as necessidades do setor e fazer com que os usineiros durmam tranqüilos.

O consenso é que, para melhorar a produção, o agricultor precisa de ajuda. E de técnica, muita técnica. Esse, justamente, tem sido o papel do agricultor familiar André Santos, que é também presidente da União das Associações de Produtores do Interior de Canguçu (Unaic). Experiente com a lida na terra, Santos foi encarregado de coordenar os técnicos que prestam assistência às famílias incorporadas aos contratos. “Tudo é diferente: a capina, a colheita... Tinha agricultor que nunca havia visto um cacho de mamona, não sabia a hora de colher. Até os técnicos estão aprendendo”, conta ele. “O pessoal aqui está acostumado com o milho, que não demora uma semana para germinar – a mamona leva de 20 a 25. Daí, depois de um tempo, eles começavam a ficar aflitos, vinham perguntar se não tinha que replantar tudo.”

Apesar das dificuldades, a Unaic avalia que a experiência está sendo positiva e planeja ampliar a entrega de oleaginosas para a indústria. Além das mil toneladas de mamona, girassol e canola, que já renderam quase R$ 700 mil para os agricultores, estão sendo contratadas mil toneladas de soja. Ao todo, serão três mil hectares cultivados para o biodiesel, sendo parte para produção de sementes próprias. A associação também planeja investir em uma esmagadora para, no futuro, entregar diretamente o óleo à indústria e aproveitar o que sobra dos grãos na alimentação do gado leiteiro.

Para custear a assistência técnica aos produtores, a Unaic está se valendo de um mecanismo que não é comum ainda no setor: na nota fiscal dada à indústria pela matéria-prima vendida, a associação já embute o custo da assistência. Sem isso, a empresa compradora não teria como aplicar os benefícios fiscais que oferece o selo ao valor gasto com os técnicos.

A empresa Barralcool, instalada em Barra do Bugre (MT), é uma das que enfrentam esse problema. O gerente da empresa, Silvio Rangel, afirma que os gastos com assistência técnica, treinamento e viagens para firmar e manter contratos já superam as vantagens obtidas com a isenção fiscal relativa ao selo. A parceria envolve 110 famílias de agricultores de sete municípios cuja produção de soja a empresa compra. “Era preciso estudar alguma forma de corrigir isso, aumentar os recursos para a agricultura familiar”, diz ele. “A gente sabe da carência desse pessoal. Eles requerem um atendimento especial para se incorporar ao mercado.”

Segundo o coordenador geral de Agregação de Valor e Renda do Ministério do Desenvolvimen-to Agrário, Arnoldo Campos, a criação de mecanismos que possibilitem a inclusão da assistência técnica entre os benefícios fiscais é um dos temas em debate hoje no governo. “O ano de 2008 vai marcar uma reforma legal do selo. O governo reconhece as críticas e está estudando como combater as distorções”, diz ele, que também é um dos encarregados no governo de monitorar o projeto do biodiesel.

Também está sendo discutida a readequação das porcentagens da matéria-prima a serem associadas à agricultura familiar em cada região. Muitos defendem a ampliação dos atuais 10% no Centro-Oeste, região repleta de assentamentos da reforma agrária, e uma eventual diminuição dos 50% exigidos no Nordeste. Além disso, o governo estuda criar uma lista de oleaginosas para o selo (leia quadro da página anterior).

Para o governo federal, as soluções começaram a sair do papel. Uma demanda já deve estar resolvida na safra 2007/2008. Ao longo dos anos, os produtores vêm sofrendo com a falta de zoneamento agrícola – um estudo que mostra onde se deve plantar o quê e garante a concessão de seguro para a produção. Como a conclusão desse estudo vem sendo adiada, o agricultor não consegue recursos para plantar nem segurança no caso de quebra da safra. Mas, de acordo com o governo federal, já há avanços para o próximo ano. Mamona e girassol estão amplamente garantidos, segundo Campos, e estão em curso os processos para dendê, amendoim, canola e gergelim. Um alívio para o produtor.

No entanto, no caso das sementes, o país ainda terá de conviver algum tempo com o problema. “Não há como acelerar o ciclo de aperfeiçoamento das sementes, que avança ano a ano, mas acreditamos que, na próxima safra, já se vai dar um salto importante”, diz o coordenador.

Um ponto em que o governo não tem como intervir, segundo Campos, é na reclamação sobre agricultores que firmaram compromissos mas, no meio do caminho, venderam produtos como a mamona ou o girassol para outros fornecedores porque encontraram preços melhores do que os contratados. “Consideramos que isso tem de ser resolvido entre as partes. Porém, vale observar que não tem como o agricultor viver uma situação de tamanha disparidade entre os preços do mercado e do contrato.”

Para ele, o problema está ligado às fortes altas do óleo de mamona no mercado mas, na próxima safra, com a adequação do preço mínimo para os contratos, de R$ 0,55 para R$ 0,75 o quilo, deverá haver menos ruído. “De qualquer maneira, não importa se a mamona vai ou não para o biodiesel, o importante é diversificar a base de oleaginosas que são utilizadas no país, o que vai permitir uma concorrência muito saudável entre as diversas culturas no futuro”, diz.

Campos diz que uma solução que já começa a aparecer em alguns contratos para mamona ou girassol, que não têm preço cotado no mercado, é a implantação de gatilhos, mecanismos que possibilitam ao agricultor a possibilidade de pedir à empresa compradora um valor superior ao acordado, em caso de aumento dos preços no mercado. “A empresa não tem a obrigação de comprar mas, de qualquer modo, mantém a preferência”, explica ele.

Georges Flexor, pesquisador do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), acredita que desacertos como esses devem persistir por algum tempo, uma vez que a forma inovadora como o programa está montado exige que interesses e lógicas muito diversas sejam conciliados. “Isso [os ‘calotes’] é mais um índice dos conflitos de interesses do que um problema em si, até porque há versões contraditórias entre empresários e agricultores”, diz ele. “O programa vai melhorar com as pessoas aprendendo a se ajustar entre elas.”

Noves fora, a aposta no sucesso do biodiesel como combustível para a inclusão social dos agricultores familiares permanece. “Temos de aperfeiçoar, de fato, mas é bom lembrar que, sem essa ferramenta do Selo Social, a agricultura familiar estaria totalmente alijada do processo”, ressalta André Santos, da Associação de Agricultores de Canguçu (RS). “Não basta a terra. É preciso ajudar o pessoal a fazer da terra uma forma de gerar riqueza. Há muita coisa para ser feita, mas o biodiesel nasceu para dar certo”, diz Carlos Zveibil Neto, diretor da Ponte di Ferro.

Entenda o Selo Social

A principal bandeira levantada pelo governo federal é a de que o biodiesel deve ser um instrumento de inclusão social. Portanto, a preferência é de que a matéria-prima usada pelas indústrias seja fornecida por agricultores familiares.

Até 2008 a meta é incluir mais de 200 mil agricultores familiares na nascente cadeia produtiva do biodiesel. Para isso, o governo federal flerta com os empresários, atacando o ponto mais frágil do investidor, que é o bolso. Para as indústrias, o selo significa acesso a isenções fiscais - que chegam a 100% no caso da mamona e do dendê compradas no Nordeste -, maior facilidade na hora de conseguir um financiamento público e participação nos leilões da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Oferta tentadora.

Mas, para pagar menos imposto o empresário, deve dar a contrapartida. Em troca, as usinas devem assegurar que uma parcela da matériaprima provenha da agricultura familiar, o que deve ser estabelecido por contratos que incluam garantia de compra, além de fornecimento de assistência e capacitação técnica. A porcentagem a ser comprada dos agricultores familiares varia de acordo com a região do país: é de 10% para Norte e Centro-Oeste, 30% para Sul e Sudeste, e chega a 50% no Nordeste.

O lado ruim dessa história é que já se sabe que centralizar a fabricação de biodiesel a partir da matéria-prima cultivada por pequenos agricultores não vai ser tarefa fácil. Hoje quase 90% da produção do combustível verde no Brasil é feita a partir de soja – produzida em grandes latifúndios e amparada por tecnologia de ponta.

Já os pequenos agricultores têm a vontade de produzir, mas falta a eles preparo – o que, muitas vezes, significa problemas para o usineiro, que tem o fornecimento interrompido por causa de atrasos na entrega da matéria-prima.

Outro ponto é que o dinheiro aplicado na capacitação técnica dos agricultores é alto e, no caso de algumas empresas, chega a superar os benefícios obtidos com o Selo Social. A conta não fecha.

SOJA X MAMONA

Nove entre dez empresários, agricultores e gestores públicos acreditam que a soja deverá manter a primazia por mais alguns anos. “Ela não vai ser derrubada do pedestal da noite para o dia. Foram anos de pesquisa e investimento para se tornar o que é hoje”, diz Arnoldo Campos, do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Ele pondera, contudo, que devido à excelência que a produção de soja alcançou no país, as perspectivas de novos ganhos de produtividade na cultura são pequenas. “Com um pouco de investimento dá para se pensar em ganhar 40, 50% de produtividade na mamona. Na soja, conseguir mais 10% já é difícil.” O MDA calcula que cerca de 60% do biodiesel na- cional é feito a partir da soja. Mas há estudos que indicam que esse número já chega a 90%. Isso não significa, necessariamente, um domínio absoluto do agronegócio.

Cerca de um terço de toda a soja do país é produzida pela agricultura familiar, de acordo com o ministério. É o quinto produto mais importante do segmento, atrás apenas do leite, frango, gado de corte e milho.

Por outro lado, a viabilidade da mamona, que chegou a mais de R$ 1 por quilo, demandada pela recinoquímica e a indústria de cosméticos, segue como incógnita para alguns observadores.

Enquanto o governo e a Contag esperam que a área de plantio se amplie para que os preços alcancem maior equilíbrio, há quem aposte que ela permanecerá impraticável para a indústria do biodiesel. “É absurdo falar em biodiesel de mamona por causa do preço. Quem falou que iria fazer com mamona está usando soja”, diz Carlos Zveibil Neto, diretor da Ponte di Ferro, empresa paulista que está produzindo biodiesel à base de algodão emEngenheiro Coelho (SP).

A oscilação nos preços afetou diretamente a Ponte di Ferro: ganhadora do leilão de abril de 2006, com um preço entre R$ 1,70 e R$ 1,80 o litro, a empresa pediu o “realinhamento” do contrato porque não estava conseguindo comprar matéria-prima para produzir a esse preço. Mesmo assim, Zveibil diz acreditar na viabilidade da inclusão da agricultura familiar na cadeia produtiva do biodiesel, desde que sejam feitos ajustes no mecanismo do Selo Social.

O maior problema, segundo ele, é o isolamento do pequeno agricultor em boa parte do país. “Principalmente no Norte e no Nordeste, o pessoal precisa de muito treinamento”, diz ele, que defende o envolvimento no programa dos órgãos estaduais de extensão rural, as Ematers. Além disso, na avaliação de Zveibil, o futuro do biodiesel passa pelo desenvolvimento do cooperativismo. “Sem isso, o programa não vai conseguir melhorar a vida dos pequenos. Ninguém vai viver de monocultura, sozinho, em cinco ou dez hectares.”

Na avaliação do governo, a preferência pela soja e as dúvidas sobre a viabilidade da mamona não ameaçam o sucesso do programa na região onde se pretende que o biodiesel tenha especial papel na alavancagem da pequena produção agrícola, o semi-árido nordestino. “Há o problema da infra-estrutura e da falta de organização e de apoio aos agricultores mas, em compensação, temos espécies adaptadas à região e muita terra livre, sem concorrência com outros tipos de aproveitamento”, diz Campos, do MDA.

O professor Georges Flexor, da UFRRJ, acredita que é fundamental a diversificação da matéria-prima. “É complicado olhar apenas para os preços atuais. O dólar está baixo, os preços do petróleo estão muito altos e não dão sinal de que vão baixar”, diz ele. “É preciso investir em outros cultivos para não depender só da mamona no semi-árido.”