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2007

A bolha dos biocombustíveis


Abril 2007 - 05 abr 2007 - 16:47 - Última atualização em: 09 nov 2011 - 19:23

Em 1974, quando os Estados Unidos estavam cambaleando devido ao embargo petroleiro promovido pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), o Congresso norte-americano tomou a primeira de muitas medidas legislativas para promover o etanol produzido do milho como combustível alternativo. O presidente Jimmy Carter vestiu seu suéter e apareceu na televisão para informar os cidadãos de que equilibrar as necessidades de energia e os recursos energéticos nacionais seria um esforço "moralmente equivalente a uma guerra". O abandono gradual do uso do chumbo como aditivo, nos anos 70 e 80, ofereceu estímulo adicional à indústria do etanol, então incipiente. (O chumbo, uma substância tóxica, era usado como aditivo para melhorar o desempenho da gasolina, e foi parcialmente substituído pelo etanol.) Uma série de incentivos fiscais e subsídios também foram adotados, e ajudaram. A despeito dessas medidas, a cada ano que passa os Estados Unidos se tornam mais dependentes do petróleo importado, e o etanol nunca adquiriu importância mais que marginal.

Agora, graças a uma combinação de preços elevados para o petróleo e subsídios governamentais ainda mais generosos, o etanol feito de milho voltou a se tornar moda. Havia 110 refinarias de etanol em operação nos Estados Unidos, no final de 2006, de acordo com a Associação do Combustível Renovável. Muitas delas estavam sendo expandidas, e 73 usinas estavam em construção. Quando todos os projetos estiverem concluídos, pelo final de 2008, a capacidade norte-americana de produção de etanol terá atingido um total estimado em 43 bilhões de litros ao ano. Em seu mais recente discurso sobre o Estado da União, o presidente George W. Bush conclamou o país a produzir 132 bilhões de litros de combustível renovável ao ano, em 2017, quase cinco vezes o atual nível compulsório.

A campanha pelo etanol e por outros biocombustíveis gerou um setor econômico que depende de bilhões de dólares em subsídios públicos, e não só nos Estados Unidos. Em 2005, a produção mundial de etanol atingiu os 36,5 bilhões de litros, dos quais 42,5% produzidos pelo Brasil (com base em cana-de-açúcar) e 44,5% pelos Estados Unidos (de milho). A produção mundial de biodiesel (concentrada na Europa), produzido de sementes oleaginosas, atingiu quase 3,8 bilhões de litros.

O crescimento do setor implica que proporção cada vez maior da safra mundial de milho seja usada para alimentar as imensas usinas que produzem etanol. De acordo com algumas estimativas, as usinas de etanol estarão consumindo até metade do suprimento nacional de milho norte-americano, dentro de poucos anos. Em 2007, a demanda por etanol conduzirá os estoques de milho aos seus mais baixos níveis desde 1995 (um ano de seca), ainda que 2006 tenha trazido a terceira maior safra de milho registrada no país. O Estado de Iowa pode em breve se tornar importador de milho, em termos líquidos.

O enorme volume de milho requerido pelo setor de etanol está causando ondas de choque em todo o sistema de alimentação. (Os Estados Unidos respondem por cerca de 40% da produção mundial de milho, e por mais da metade das exportações totais.) Em março de 2007, os preços futuros do milho ultrapassaram a marca de US$ 4,38 por bushel, a mais alta em 10 anos. Os preços do trigo e do arroz também dispararam para as marcas mais elevadas em 10 anos, porque ao mesmo tempo em que esses cereais passam a ser mais usados como substitutos do milho, a área reservada ao seu plantio está caindo devido à ampliação das plantações de milho pelos agricultores.

Isso pode parecer o nirvana para os produtores de milho, mas o mesmo não se aplica aos consumidores, especialmente nos países pobres e em desenvolvimento, que sofrerão duplo choque se os preços dos alimentos e do petróleo se mantiverem ambos em alta. O Banco Mundial estimou que, em 2001, 2,7 bilhões de pessoas viviam com menos de US$ 2 ao dia, no mundo; para elas, aumentos ainda que moderados nos custos dos cereais básicos poderiam ser devastadores. Encher o tanque de um utilitário esportivo (95 litros) com etanol puro requereria mais de 200 quilos de milho, um volume de cereal que contém calorias suficientes para alimentar uma pessoa por um ano. Ao pressionar a oferta mundial de safras comestíveis, a alta na produção de etanol se traduzirá em preços mais elevados tanto para os alimentos industrializados quanto para os básicos, em todo o mundo. Os biocombustíveis terminaram por amarrar os preços da comida e os do petróleo de uma maneira que pode perturbar profundamente o relacionamento entre produtores e consumidores de alimentos, e entre as nações, nos próximos anos, o que acarreta implicações potencialmente devastadoras tanto para a pobreza no mundo quanto para a segurança alimentar.

O petróleo e a economia dos biocombustíveis

Nos Estados Unidos e em outras economias de grande porte, o setor de etanol é estimulado artificialmente por meio de subsídios públicos, níveis mínimos de produção e créditos tributários. Os preços elevados do petróleo nos últimos anos tornaram o etanol competitivo de maneira natural, mas o governo dos Estados Unidos continua a subsidiar pesadamente os produtores de milho e os de etanol. Os subsídios diretos à produção de milho no país atingiram os US$ 8,9 bilhões em 2005. Ainda que esse total deva cair em 2006 e 2007 devido aos preços elevados do milho, o sistema vigente de subsídio pode em breve ser soterrado sob a ampla gama de créditos tributários, concessões de verbas e empréstimos públicos que fazem parte do projeto de lei de energia aprovado em 2005 e de um projeto de lei da agricultura que tem por objetivo apoiar os produtores de etanol. O governo federal já oferece aos refinadores de etanol um credito tributário de 14 centavos de dólar por litro que produzem, e muitos Estados pagam subsídios adicionais.

O consumo de etanol nos Estados Unidos deve ter ultrapassado os 22,7 bilhões de litros em 2006. (O consumo de biodiesel para o ano havia sido estimado em 945 milhões de litros.) Em 2005, o governo norte-americano impôs uma meta compulsória de uso de 28,3 bilhões de litros de biocombustíveis ao ano até 2012; no começo de 2007, 37 governadores propuseram que esse número fosse elevado a 45,3 bilhões de litros ao ano em 2010, e o presidente Bush elevou ainda mais essa meta, para 132 bilhões de litros anuais em 2017. Mais de 22 bilhões de litros de etanol são necessários a cada ano para substituir o aditivo conhecido como MTBE, cujo uso em combustíveis está sendo eliminado devido aos seus efeitos poluentes sobre o lençol freático.

A Comissão Européia está empregando medidas legislativas e diretrizes para promover o biodiesel, produzido principalmente na Europa com base em sementes de colza e girassol. Em 2005, a União Européia produziu 3,36 bilhões de litros de biodiesel, mais de 80% do total mundial.A Política Agrícola Comum da União também promove a produção do etanol com base em beterraba e trigo, por meio de subsídios diretos e indiretos. Bruxelas quer que 5,75% do combustível para veículos usado na União tenha origem biológica em 2010, e que o total se eleve a 10% em 2020.

O Brasil, que no momento produz volume de etanol semelhante ao dos Estados Unidos, extrai a maior parte de seu álcool da cana-de-açúcar. Como os Estados Unidos, o Brasil começou sua busca por fontes alternativas de energia na metade dos anos 70. O governo ofereceu incentivos, estabeleceu padrões técnicos e investiu no apoio a tecnologias e na promoção do mercado. Determinou que todo o diesel do país contenha 2% de biodiesel em 2008, e 5% a partir de 2013. As autoridades brasileiras também determinaram que a indústria automobilística produzisse motores capazes de utilizar biocombustíveis e desenvolveu estratégias industriais e de uso da terra de longo alcance para promover o setor. Outros países também estão aderindo ao movimento do biocombustível. No Sudeste da Ásia, vastas áreas de florestas tropicais estão sendo desmatadas e queimadas a fim de plantar palmeiras, cujo óleo pode ser usado na produção do biodiesel.

A tendência é forte. A despeito de um recente declínio, muitos especialistas antecipam que o preço do petróleo cru se mantenha elevado, em longo prazo. A demanda por petróleo continua a crescer mais rápido do que os suprimentos, e as novas fontes de petróleo são muitas vezes difíceis de explorar ou se localizam em áreas de elevado risco político. De acordo com a Administração de Informações de Energia dos Estados Unidos, o consumo mundial de energia subirá em 71% entre 2003 e 2030, com a demanda dos países em desenvolvimento, especialmente China e Índia, ultrapassando a dos países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) por volta de 2015. O resultado será pressão sustentada de alta nos preços do petróleo, o que permitirá que os produtores de etanol e biodiesel paguem ágios muito maiores pelo milho e sementes oleaginosas do que seria concebível há apenas alguns anos. Quanto mais subirem os preços do petróleo, mais altos podem ser os preços do etanol sem perder a competitividade e tanto mais os produtores de etanol pagarão pelo milho. Se o petróleo atingir os US$ 80 por barril, os produtores de etanol podem arcar com custos de mais de US$ 5 por bushel de milho.

Com o preço das matérias-primas em escalada desse tipo, a onda do biocombustível pode causar desgaste significativo em outras áreas do setor agrícola. De fato, já está causando. Nos Estados Unidos, o crescimento do setor de biocombustíveis deflagrou altas não só nos preços do milho, sementes oleaginosas e outros grãos mas também nos preços de safras e produtos aparentemente não relacionados. O uso da terra para o cultivo de milho usado na alimentação da voraz máquina do etanol causa redução na área dedicada a outras safras. As empresas de processamento de alimentos que empregam produtos como ervilhas ou milho doce foram forçadas a pagar mais caro para garantir a segurança de seu suprimento e esses custos terminarão no futuro repassados aos consumidores. A alta nos preços da ração animal também vem afetando a criação de bovinos e aves. De acordo com Vernon Eidman, professor emérito de administração de agribusiness na Universidade de Minnesota, os custos mais altos da ração causaram queda acentuada nos retornos, especialmente nos setores de aves e suínos. Se os retornos continuarem em queda, a produção se reduzirá, e os preços da carne de frango, peru e porco, bem como do leite e dos ovos, subirão. Alguns criadores de suínos de Iowa podem ser forçados a deixar o negócio, nos próximos anos, se tiverem de disputar suprimentos de milho contra os produtores de etanol.

Os proponentes do etanol feito de milho argumentam que a área plantada e o rendimento das safras podem ser elevados, a fim de atender à necessidade crescente por etanol. Mas o rendimento das plantações de milho norte-americanas vem crescendo em cerca de 2% ao ano nos últimos 10 anos, e mesmo que esse ritmo de avanço seja duplicado não seria possível atender à demanda atual. À medida que a área plantada com milho se estende, será preciso retirar áreas reservadas a outras safras, ou explorar locais ambientalmente frágeis, como os protegidos pelo Programa de Reserva e Conservação do Departamento da Agricultura.

Além dessas forças fundamentais, as pressões especulativas criaram o que poderia ser definido como uma "mania de biocombustível": os preços estão subindo porque muitos compradores acreditam que eles subirão. Os fundos de hedge vêm fazendo imensas apostas no milho e no mercado em alta deflagrado pelo etanol. A mania do biocombustível está tomando o controle de estoques de grãos, desconsiderando as possíveis conseqüências. Ela parece unir forças poderosas, entre as quais o entusiasmo dos motoristas por veículos grandes e ineficientes no uso de combustível, e a culpa que as pessoas sentem pelas conseqüências ecológicas do uso de combustíveis à base de petróleo. Mas mesmo que o etanol tenha criado oportunidades de enorme lucro no setor de agribusiness, para os especuladores e para alguns fazendeiros individuais, ele perturba os padrões tradicionais de comércio e consumo tanto no setor agrícola quanto fora dele.

Essa onda criará problemas diferentes caso o preço do petróleo venha a cair, digamos que por conta de uma desaceleração na economia. Com o petróleo vendido a US$ 30 por barril, a produção de etanol deixará de ser lucrativa a não ser que o preço do milho caia abaixo dos US$ 2 por bushel, e isso significaria um retorno ao velho e triste passado de preços baixos para os fazendeiros norte-americanos. As usinas de etanol subcapitalizadas estariam em risco, e as cooperativas controladas por fazendeiros seriam especialmente vulneráveis. Os pedidos de subsídios, cotas compulsórias de utilização e incentivos fiscais se tornariam ainda mais ruidosos do que agora, e haveria um clamor geral pelo resgate público a um setor inchado pelo excesso de investimento. Caso isso aconteça, os grandes investimentos que tiverem sido feitos no biocombustível começarão a se assemelhar a uma aposta fracassada. Por outro lado, se o preço do petróleo continuar a flutuar entre os US$ 55 e os US$ 60 por barril, os produtores de etanol poderiam pagar entre US$ 3,65 e US$ 4,54 por bushel de milho, e ainda assim obter lucro da ordem de 12%.

O que quer que venha a acontecer no mercado do petróleo, o esforço pela independência energética que vem sendo a justificativa básica para os imensos investimentos e os subsídios à produção de etanol já tornou o setor dependente de preços elevados para o petróleo.

Cornucópia

Uma das raízes do problema é que o setor de biocombustível está há muito sob o domínio não de forças de mercado, mas da política e dos interesses de algumas poucas empresas de grande porte. O milho se tornou a matéria-prima dominante ainda que o biocombustível possa ser produzido eficientemente de diversas outras fontes, como gramíneas e lascas de madeira, caso o governo financie os esforços necessários de pesquisa e desenvolvimento. Mas nos Estados Unidos, ao menos, milho e soja vêm sendo usados como insumos primários há muitos anos, graças larga medida aos esforços de lobby dos plantadores de milho e soja e da Archer Daniels Midland Company (ADM), a maior produtora de etanol do mercado norte-americano.

Desde o final dos anos 60, a ADM se posicionou como "supermercado do mundo", e adotou como objetivo a criação de valor nas commodities a granel por meio de sua transformação em alimentos processados, que obtêm preços melhores. Nos anos 70, a ADM começou a produzir etanol e outros derivados do milho, como por exemplo o xarope de milho, com alto teor de frutose. O grupo rapidamente passou de pequeno produtor de ração animal a gigante de alcance mundial. Por volta de 1980, a produção de etanol da ADM superava os 660 milhões de litros anuais, e o xarope de milho com alto teor de frutose se havia tornado um agente adoçante de alta procura em alimentos industrializados. Em 2006, a ADM era a maior produtora de etanol nos Estados Unidos, com volume total de mais de quatro bilhões de litros, quatro vezes superior à sua mais próxima rival, a VeraSun Energy. No começo de 2006, a empresa anunciou planos para elevar seu investimento de capital no etanol de US$ 700 milhões a US$ 1,2 bilhão, e ampliar sua produção em 47%, ou perto de 1,9 bilhão de litros, até 2009.

A ADM deve boa parte de seu crescimento às suas conexões políticas, especialmente com líderes importantes do Legislativo capazes de reservar subsídios aos seus produtos. O vice-presidente Hubert Humphrey defendeu muitas propostas favoráveis à empresa, nos anos 50 e 60, quando era senador por Minnesota, e senador Bob Dole, republicano do Kansas, defendeu incansavelmente a companhia durante sua longa carreira. Como apontou o crítico conservador James Bovard, uma década atrás, quase metade dos lucros da ADM vinham de produtos que o governo norte-americano subsidia ou protege.

Em parte como resultado do apoio do governo, o etanol (e em menor medida o biodiesel) se tornaram parte importante dos setores norte-americanos de agricultura e energia. Além do incentivo fiscal da ordem de 14 centavos de dólar por litro oferecido pelo governo federal aos produtores de etanol, os produtores de menor porte recebem uma redução de mais de dois centavos de dólar por litro produzido em seus impostos a pagar, que incide sobre os primeiros 56,7 milhões de litros que suas empresas produzirem em cada exercício. Há também o "padrão do combustível renovável", nível compulsório de combustível não fóssil a ser usado em veículos a motor, que terminou por gerar um leilão político em Washington. A despeito dos subsídios governamentais já elevados, o Congresso está estudando a oferta de verbas adicionais à produção de biocombustíveis. Projetos de lei que fazem parte da lei da agricultura de 2007, promovidos pelo deputado Ron Kind, democrata do Wisconsin, solicitam que o governo eleve de US$ 200 milhões a US$ 2 bilhões suas garantias de crédito aos produtores de etanol. Defensores do etanol feito de milho racionalizaram a proposta de subsídios apontando que a demanda mais elevada por etanol está elevando os preços do milho e reduzindo os subsídios aos plantadores desse produto.

O setor de etanol se tornou também uma arena de protecionismo na política comercial norte-americana. Ao contrário das importações de petróleo, que chegam ao país sem tarifas, a maior parte do etanol atualmente importado pelos Estados Unidos porta tarifa de 14 centavos de dólar por litro, em parte porque o etanol mais barato de países como o Brasil representa ameaça aos produtores norte-americanos. (A cana-de-açúcar brasileira pode ser convertida em etanol de maneira mais eficiente que o milho norte-americano.) A Iniciativa da Bacia do Caribe (CBI) pode solapar essa proteção. O etanol brasileiro já pode ser embarcado sem tarifas para países integrados à CBI tais como Costa Rica, El Salvador ou Jamaica, e o acordo permite que o álcool siga de lá para o mercado norte-americano igualmente com tarifa zero. Mas os defensores do etanol no Congresso estão pressionando por medidas adicionais que limitem essas importações. Medidas governamentais como essas protegem o setor contra competição, a despeito das repercussões prejudiciais aos consumidores.

Esfomeando os famintos

Os biocombustíveis podem ter efeitos ainda mais devastadores sobre o resto do mundo, especialmente sobre os preços dos alimentos básicos. Caso os preços do petróleo permaneçam altos o que é provável-, as pessoas mais vulneráveis aos aumentos de preços causados pelo boom do biocombustível seriam os habitantes de países que ao mesmo tempo sofrem déficits alimentícios e importam petróleo. O risco se estende a boa parte dos países em desenvolvimento. Em 2005, de acordo com a Organização de Agricultura e Alimentos das Nações Unidas (FAO), a maioria dos 82 países de baixa renda que sofriam deficiências alimentícias eram também importadores líquidos de petróleo.

Nem mesmo grandes exportadores de petróleo que empregam seus petrodólares para adquirir alimentos importados, como o México, poderão escapar aos aumentos nos preços da comida. No final de 2006, o preço da farinha para tortillas havia dobrado no México, que recebe 80% de suas importações de milho dos Estados Unidos, graças em parte ao aumento nos preços do milho norte-americano de US$ 2,80 a US$ 4,20 por bushel, nos meses anteriores. (Os preços subiram mesmo que as tortillas sejam feitas basicamente de milho branco cultivado no México, porque o uso do milho amarelo importado, empregado na ração animal e para alimentos industrializados, caiu devido à alta nos preços norte-americanos, levando os usuários industriais a adquirir milho branco em seu lugar.) A disparada nos preços for exacerbada por manobras especulativas e por formação de estoques. Com cerca de metade dos cerca de 107 milhões de habitantes do México vivendo na pobreza e dependendo das tortillas como fonte principal de calorias, os protestos públicos foram ferozes. Em janeiro de 2007, Felipe Calderón, o novo presidente do México, foi forçado a impor limites de preços aos derivados de milho.

O Instituto Internacional de Pesquisa de Política Alimentar (IFPI), de Washington, produziu estimativas cautelares quanto ao potencial impacto mundial da alta da demanda por biocombustíveis. Mark Rosegrant, diretor de uma divisão do instituto, e seus colegas projetaram que, dada a alta continuada nos preços do petróleo, o rápido crescimento na produção mundial de biocombustíveis deve elevar os preços mundiais do milho em 20%, até 2010, e em 41% até 2020. O preço das sementes oleaginosas deve subir em 26% até 2010 e em 76% até 2020, e os preços do trigo aumentarão em 11% até 2010 e em 30% até 2020. Nas regiões mais pobres da África ao sul do Saara, da Ásia e da América Latina, onde a mandioca é alimento básico, as projeções quanto ao seu preço indicam alta de 33% até 2010 e de 135% até 2020. Os aumentos de preços projetados podem ser mitigados caso os rendimentos das safras se elevem de maneira considerável ou a produção do etanol baseada em outras matérias-primas (como árvores e gramíneas) se torne viável comercialmente. Mas a menos que as políticas quanto ao biocombustível sejam alteradas de maneira significativa, nenhum desses desdobramentos é provável.

A produção de álcool de mandioca poderia representar ameaça especialmente grave à segurança alimentícia dos pobres do mundo. A mandioca, um tubérculo semelhante à batata, supre um terço das necessidades calóricas da população da África ao sul do Saara, e é o alimento básico para mais de 200 milhões dos mais pobres dentre os africanos. Em muitos países tropicais, ela representa o alimento a que as pessoas recorrem quando nada mais está disponível. Também serve como importante reserva alimentar quando as demais safras fracassam, porque pode ser cultivada em terra ruim e em condições de seca, e pode ser deixada no solo para colheita no momento em que se tornar necessária.

Graças à forte presença de amido, a mandioca também é fonte excelente de etanol. À medida que melhora a tecnologia que permitiria convertê-la em combustível, muitos países -entre os quais China, Nigéria e Tailândia- estão estudando a possibilidade de usar proporção maior dessa safra para produção de etanol. Se os fazendeiros pobres dos países em desenvolvimento puderem se tornar fornecedores do setor industrial nascente, eles se beneficiariam em termos de renda. Mas a história da demanda industrial por safras agrícolas nesses países sugere que os principais beneficiários seriam os grandes produtores. O resultado provável de um boom na produção de etanol com base em mandioca seria que número cada vez maior de pessoas pobres enfrentariam dificuldade para se alimentar.

Os participantes da Conferência de Cúpula Mundial sobre a Alimentação, em 1996, decidiram reduzir o número de pessoas cronicamente famintas no planeta as pessoas que não recebem a cada dia o número de calorias necessárias a se manterem ativas e saudáveis- de 823 milhões em 1990 a cerca de 400 milhões em 2015. As Metas de Desenvolvimento do Milênio, estabelecidas pela ONU em 2000, prometiam reduzir a proporção cronicamente subalimentada da população mundial de 16% em 1990 a 8% em 2015. Em termos realistas, porém, recorrer aos biocombustíveis deve exacerbar a fome mundial. Diversos estudos de economistas do Banco Mundial e de outras instituições sugerem que o consumo de calorias entre os pobres do mundo cai em cerca de 0,5% sempre que os preços médios dos alimentos básicos crescem em 1%. Quando um alimento básico se torna mais caro, as pessoas tentam substitui-lo por produto mais barato, mas se quase todos os preços estiverem em alta, não lhes restará alternativa.

Em um estudo sobre a segurança alimentar do planeta conduzido em 2003, projetamos que, dados os ritmos vigentes de crescimento econômico e populacional, o número de pessoas famintas no mundo cairia em cerca de 23%, para 625 milhões, em 2025, desde que a produção agrícola melhorasse o bastante para manter constantes os preços relativos dos alimentos. Mas, caso tudo o mais continue igual, como sugerem as projeções do IFPI, o número de pessoas inseguras quanto ao seu suprimento de alimentos aumentaria em 16 milhões para cada ponto percentual de alta nos preços reais dos alimentos básicos. Isso significa que 1,2 bilhão de pessoas sofrerão fome crônica em 2025 600 milhões a mais do que se previa anteriormente.

As pessoas mais pobres do mundo gastam entre 50% e 80% de sua renda domiciliar em comida. Para as muitas dentre elas que trabalham como bóias-frias ou agricultores de subsistência, grandes aumentos nos preços dos alimentos básicos significam subnutrição e fome. Algumas delas cairão do patamar da subsistência para uma situação aberta de fome, e muitas mais morrerão de diversas doenças relacionadas a deficiências de nutrição.

A grama é mais verde

E com que finalidade? Na melhor das hipóteses, benefícios ambientais limitados. Ainda que seja importante pensar em maneiras de desenvolver a energia renovável, também se deve tomar cuidado ao examinar as ávidas alegações de que os biocombustíveis são mais "verdes". O etanol e o biodiesel são muitas vezes vistos como benéficos ao meio ambiente porque são extraídos de plantas e não do petróleo. Na verdade, mesmo que toda a safra de milho norte-americana fosse usada para produzir etanol, apenas 12% da gasolina em uso no mercado norte-americano hoje poderia ser substituída. Pensar no etanol como alternativa verde aos combustíveis fósseis reforça a quimera da independência energética, e desacopla os interesses norte-americanos de um Oriente Médio cada vez mais conturbado.

Será que o milho e a soja deveriam ser usados como base para combustíveis? A soja e em especial o milho são plantas de cultivo ordenado que contribuem para a erosão do solo e poluição da água, e requerem grande volume de pesticidas, fertilizantes e combustível para a semeadura e a colheita. Elas respondam pela maior parcela das infiltrações de nitrogênio os perigosos vazamentos de nitrogênio oriundos dos campos plantados, quando chove-, do tipo que causou a chamada zona morta no Golfo do México, uma área oceânica do tamanho do Estado de Nova Jersey em que a presença de oxigênio é tão baixa que mal basta para sustentar formas modestas de vida marinha. Nos Estados Unidos, o milho e a soja são tipicamente plantados em rotação, porque a soja acrescenta nitrogênio à terra, e o milho precisa desse componente para crescer. Mas à medida que o milho cada vez mais substitui a soja como fonte principal de etanol, ele será plantado em safra contínua, o que exigirá grande ampliação no uso de fertilizantes de nitrogênio e agravará o problema de infiltração de nitrogênio na água.

E o milho tampouco oferece grande eficiência como combustível. Os debates sobre o "balanço líquido de energia" dos biocombustíveis e da gasolina a relação entre a energia que geram e a que é consumida em sua produção- vêm sendo travados há décadas. Por enquanto, o etanol feito de milho parece ter vantagem sobre a gasolina ainda que a margem seja pequena. Cientistas do Laboratório Nacional Argonne e do Laboratório Nacional de Energia Renovável, nos Estados Unidos, calcularam que o balanço energético líquido da gasolina é de 0,81, o que implica consumo maior que a geração, enquanto o do etanol feito de milho é de cerca de um. O diesel de petróleo tem balanço energético líquido de 0,83, ante 1,93 a 3,21 para o biodiesel produzido com soja. (O biodiesel produzido de óleos e gorduras, como gordura de fogões de restaurantes, pode oferecer mais eficiência energética.)
Resultados semelhantes emergem quando os biocombustíveis são comparados com a gasolina por meio de outros índices de impacto ambiental, por exemplo as emissões de gases responsáveis pelo efeito-estufa. O ciclo completo de produção e uso do etanol de milho libera menos gases de aquecimento do que o da gasolina, mas a diferença é de apenas 12% a 16%. A produção e uso do biodiesel emite entre 41% e 78% menos gases do que no caso do diesel de petróleo.

Outro ponto de comparação são as emissões de gases de efeito-estufa por quilômetro percorrido, que levam em conta a eficiência energética relativa. Usando gasolina com 10% de etanol de milho, em lugar da gasolina pura, as emissões se reduzem em 2%. Se o teor de etanol for de 85% (o que só funciona com veículos flexifuel), as emissões caem em 23% no caso do etanol de milho e em 64% no caso do etanol de celulose. Da mesma forma, diesel com 2% de biodiesel emite 1,6% menos gases de aquecimento, e biodiesel puro (também para uso apenas em veículos especiais) emite 78% menos gases. Por outro lado, o biodiesel pode elevar as emissões de óxido de nitrogênio, que contribui para a poluição do ar. Em resumo, as virtudes "ecológicas" do etanol e do biodiesel são modestas quando esses produtos são feitos de milho e soja, safras muito poluentes e que requerem alto consumo de energia.

Os benefícios dos biocombustíveis são superiores quando outras plantas que não o milho ou óleo de outra fonte que não a soja são utilizadas. Etanol inteiramente feito de celulose (encontrada em árvores, gramíneas e outras plantas) tem balanço energética líquido de entre cinco e seis, e emite entre 82% e 85% menos gases de aquecimento do que a gasolina. À medida que o milho escasseia, muitos observadores apostam que o setor de etanol passará a recorrer mais a gramíneas, árvores e resíduos de plantas alimentícias, como o trigo, o arroz e o milho. Gramíneas e árvores podem ser cultivadas em terra pouco adequada a safras alimentícias, ou em climas hostis ao milho e à soja. Recentes avanços nas tecnologias de gaseificação e enzimas tornaram mais fácil romper as moléculas de celulose nas plantas com textura de madeira e palha. Experiências de campo sugerem que as gramíneas podem se tornar fonte promissora de biocombustível no futuro.

Por enquanto, porém, os custos de colheita, transporte e conversão desse tipo de matéria vegetal continuam elevados, o que significa que o etanol de celulose não é comercialmente viável, se comparado à economia de escala propiciada pelo milho, sob os métodos atuais de produção. Um executivo de uma usina de etanol no Meio-Oeste calculou que alimentar uma usina de etanol com gramíneas requereria que um caminhão de grama fosse descarregado a cada seis minutos, 24 horas por dia. As dificuldades logísticas e os custos de conversão da celulose em combustível, combinados aos subsídios e aos fatores políticos que atualmente favorecem o uso de milho e soja, tornam pouco prático esperar que o etanol de celulose se torne uma solução viável nos próximos 10 anos. Até que isso aconteça, depender mais da cana-de-açúcar para produzir etanol em países tropicais seria mais eficiente do que usar milho, e não envolveria o emprego de um alimento básico.

O futuro pode ser melhor se as medidas corretas forem tomadas agora. Limitar a dependência dos Estados Unidos quanto a combustíveis fósseis requer um programa abrangente de conservação de energia. Em lugar de promover mais uso compulsório, incentivos fiscais e subsídios aos biocombustíveis, o governo norte-americano deveria assumir um compromisso sério para com uma elevação substancial na eficiência energética dos veículos, residências e fábricas do país, promovendo fontes alternativas de energia como a solar e a eólica, e investindo em pesquisa para melhorar a produtividade da agricultura e a eficiência dos combustíveis derivados da celulose. A fixação de Washington quanto ao etanol de milho distorceu a agenda nacional, e desviou a atenção que deveria estar concentrada no desenvolvimento de uma estratégia ampla e balanceada. Em março, o Departamento da Energia norte-americano anunciou que investiria US$ 385 milhões em seis bio-refinarias projetadas para converter celulose em etanol. Esse é um passo promissor na direção certa.

C. Ford Runge and Benjamin Senauer

Foreign Affairs

TRADUÇÃO DE PAULO MIGLIACCI


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